«paz, pão, habitação, saúde, educação…»
O país onde crescemos decidiu manter-se mais meio século isolado do resto do mundo, mesmo depois da irrupção da República em 1910. Por isso, até à «Revolução dos Cravos», o poder pôde desprezar VERGONHOSAMENTE os pobres e a pobreza. Por isso, hoje, somos o que somos: um país amputado e com medo que alguém descubra que não sabe fazer contas de cabeça, reproduzir ou ter ideias próprias. Somos meio-país, movido a álcool, e ainda não nos libertamos dos nossos dois pais castradores: a religião e a política. Só quem nunca trabalhou de muito perto com pessoas das aldeias, vilas e cidades (cidades de segunda e de terceira) é que não compreenderá o que eu sinto. A minha mãe (nossa, já que somos 6 filhos) ainda nos recorda o motivo de pândega popular que era ver, na sua aldeia, uma criança de muito poucos anos aos ziguezagues, intencionalmente embriagada pelos pais: «Vais p’a Manel ou p’a Jaquim?!!!» - gozavam os familiares. «Um copo de vinho é já meio sustento» - frase que, habitualmente, se atribuiu a Salazar. Quando uma rapariga se casava, nascia, então, a esperança duma vida melhor: com um homem em casa, sempre se podia pensar na possibilidade de virem a ser ‘caseiros’ de algum senhor; e, com ele, o sonho de se poder ter trabalho e renda, por magra que fosse. Hoje, em finais de 2010, nada se alterou (só a moldura) – continuamos a ter pobres, bêbados e drogados ao pontapé. Em Portugal nada de consistente mudou ao longo de muitos séculos em matéria de pobreza. Ao recusarmos a industrialização na altura em que a Europa, no pós-guerra, se começou a industrializar, atrasamo-nos desastrosamente e perdemos a oportunidade de nos precavermos face ao que, inevitavelmente, haveria de vir: as alterações do povoamento do território com a consequente irrupção da «questão urbana», da «questão habitacional», ou seja, da questão social em geral. Agora , que decidi vir viver para o centro da cidade, resido mesmo em cima destas questões, deste pesadelo que é ‘este povo’. «Uma moedinha, uma moedinha…» - é o grito que se ouve por todo o lado, e dificilmente não deixo de dar «a moedinha» porque me sinto muito mal com a insistência. As desgraças (ressacas evidentes, magreza de osso, bebedeira, jovens semi-amputados, a visibilidade extrema da falta de saúde ou higiene, o aluguer do corpo, a fome, etc.) estão à distância de um (a)braço (quanto mais, ‘à vista’…).
Eu sei muito bem que há dois sóis: a «moedinha» apenas abre uma frincha… à nesga de sol. Sempre que damos esmola, abrimos uma nesga de sol. Sempre que ajudamos no Banco Alimentar contra a fome, abrimos uma nesga de sol. Sempre que distribuímos refeições aos ‘sem-abrigo’, abrimos uma, apenas uma nesga de sol (uma ‘nesga de sol’ de cada vez que saímos à rua, pela noite fria). Sempre que ajudo o João Paulo nos deveres, lhe dou lanche e o levo a casa para dormir já jantado, estou apenas a afastar as cortinas para que o sol aqueça a vidraça fria da viela onde o sol nunca entra, ali onde o João Paulo mora – abro, tão só, UMA NESGA DE SOL COADO. Mas é verdade que, mal o sol nos proporciona (a nós que somos ricos) nem que seja uma fugaz ‘nesga-de-calor’ pelo inverno, vamos de imediato a correr colhê-la. Este é aquele sol imediato, aquele a que posso deitar a mão - o meu sol próximo. A Caridade sempre teve também duas dimensões: a mediata e a imediata. A «moedinha» é a caridade imediata, o «sol-próximo» dos miseráveis, a pequena estrela que pouco aquece, mas de cuja órbita nunca saltarão fora para não morrerem de vez ‘de frio’ - uma questão de sobrevivência instintiva. Uma amiga minha afirmava, há tempos: «Falta-lhes capacidade de iniciativa…». «-Onde é que isso se compra?» - respondi-lhe eu - «…que vou já a correr a comprar um litro dela.» Porque é que um pobre nunca se aventura, porque é que um pobre não arrisca, porque é que um pobre não se torna «empreendedor»? (soou-me tão ridículo, na Universidade Católica do Porto-«Focus-Week», repisar-se neste conceito do «empreendedorismo» como via de combate à pobreza e exclusão social) Porquê não se aventuram? Porque são tudo menos ‘um calhau com dois olhos’… É pobre, sim - perdeu quase tudo, mas não perdeu o ‘instinto de sobrevivência’ (o qual está dependente da ‘animalidade visceral’ e não da ‘consciência racional’). O pobre já não é pessoa, mas ainda sabe rosnar, ferrar, esgadanhar e matar. Um pobre já não é um ser humano, mas ainda é «um cão» …
Ironicamente, recordo a exclamação daquele deputado francês, aquando dum debate parlamentar sobre a criação de um imposto sobre animais domésticos: ‘Pobres cães!, querem tratá-los como seres humanos’, [«Contribuição para a crítica da filosofia do direito de Hegel», K. Marx e F. Engels]. Parafraseando a ideia dos ricos sobre os pobres de hoje, diria: «Pobre pobre/cão, querem tratar-te como um ser humano…».
A «moedinha» é a caridade imediata. Então, e a outra, quem é? A «caridade mediata», mediada, implica um verbo à A. O’Neill. Sem dúvida.
«Ó Portugal, se fosses só três sílabas (…) a muda queixa amendoada duns olhos pestanítidos, (…) se fosses só três sílabas de plástico, que era mais barato!
«Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo (…), meu remorso, meu remorso de todos nós…»
Porém, só poesia não chega. Uma hipotética saída pode ser: Devemos acreditar no diabo? Dos que ‘lançam sortes’ aos que ‘escutam segredos’, é toda uma sociedade que se estrutura possuindo um dom, encantando com a cura, atraindo para dentro da boca do abismo. O feiticeiro domina a realidade, exercita, exerce. Segrega temor e auxílio. Revela mistério, oculta o medo, envolve e protege. Na relação vítima/ feiticeiro o que domina é o poder mágico atribuído ao feiticeiro. E este poder mágico, espécie de depósito sagrado nas mãos do feiticeiro, é entendido como ambivalente - para o mal e para o bem, velha intuição da humanidade que sabe que o mal e o bem se incluem ambos no sagrado. Portugal tem um medo raro, medo-do-escuro, medo de criança de aldeia, amedrontada de ainda ir para pior – não é para menos. Sabe que não sabe – por isso, perde o pio. Defende-se, como uma criança se defende, mentindo e negando. Denegando. Cuida que resiste entregando-se às mãos daqueles que usam dos paramentos próprios: palavras exóticas, discurso descobre-e-encobre, tapa e destapa, gestos distantes, roupas sui generis, apelos apocalípticos, em suma, sombras chinesas de gente que aparece e desaparece, fala metade e some-se. Devemos acreditar no diabo ou
A saída é: «Ladrar não é morder!» Proponho, por hipótese, e para começar, que analisemos a decomposição da pobreza, por exemplo, em função do nível de educação! «Em primeiro lugar, de acordo com o “Inquérito às Despesas das Famílias” [IDEF – 2005-2006], cerca de 60% dos portugueses com mais de 14 anos tinha, no máximo, seis anos de escolaridade completa. Esta observação apenas confirma a existência de baixas qualificações médias em Portugal, nomeadamente quando confrontadas com as dos restantes países da União Europeia. Em segundo lugar, a taxa de pobreza tem uma relação monótona com o nível de escolaridade completa, diminuindo consistentemente à medida que aumenta o número de anos de escolaridade. É particularmente assinalável que cerca de 40% dos indivíduos sem formação escolar vive numa situação de pobreza. Estes indivíduos situam-se maioritariamente nos escalões etários mais elevados. Em contraste, os indivíduos com 12 ou mais anos de percurso escolar completo registam taxas de pobreza claramente inferiores a 10%, as quais são próximos de zero naqueles com o ensino superior completo. Em terceiro lugar, e em resultado dos factos acima descritos, conclui-se que cerca de dois terços dos indivíduos pobres em Portugal em 2005 tinha, no máximo, 4 anos de escolaridade completos.» [Nuno Alves, “A relação entre educação e pobreza em Portugal”, in “O que sabemos sobre a pobreza em Portugal?”, em memória de Leonor Vasconcelos Ferreira (1960-2008), vv.aa., VIDA ECONÓMICA, Porto, Junho 2010, p.105, ISBN 978-972-788-351-6, ‘www.vidaeconomica.pt’] E que dizer da absoluta ‘não-distribuição equilibrada’ da riqueza nacional? E que dizer do impacto da atribuição de ‘prestações sociais’ às classes mais desfavorecidas? E das implicações negativas (dessas disparidades) no âmbito das relações afectivas, constituição de família, cuidados de higiene, maternidade adolescente, nível educacional, consumo de estupefacientes, perda da dignidade e auto-estima, etc. etc.? Tudo isto relembra o «25 de Abril» e as canções de José Mário Branco: «paz, pão, saúde, educação…». De muito nos adiantou cantá-las… A coisa já lá não vai só com guitarradas!
Os estudos de Carlos Farinha Rodrigues (ISEG-UTL), Maria do Pilar González (FE-UP), Virgílio Pereira (FL-UP), Nuno Alves (Banco de Portugal), Ana Cardoso (CESIS), Manuela Silva (ISEG-UTL), Aurora Teixeira, Sandra Silva e Pedro Teixeira (FE-UP) – obra da Vida Económica citada acima – permitem, com Nietzsche, poder acordar da noite profunda e dizer: «Alerta, humanidade! Despertei de um sonho profundo.» Quando deixaremos de ser cães… de Pavlov? Que nos falta para isso? Contentar-se com ‘nesgas de sol’ ou fazer como Josué (10:13; Sir 46:4): pará-lo com as mãos e escancarar as portadas da Grande Luz?
O povo da minha aldeia – proverbial de gema! - costuma dizer: «O abade, onde canta aí janta». Será por isso que «nunca se viu um porco engordar com água limpa»? De facto, «nunca ninguém enriqueceu a fazer trocos» … Muitas vezes «paga o justo pelo pecador».
Como dizem os homens da minha aldeia, deixo aqui um conselho saudável, em que é impossível - Portugal! - maior ligação à terra e ao ar, maior ecologia: «mijar claro e falar direito.»
É o que faz falta – ao som de tambores.
Graça & Justiça para todos!