teologia para leigos

8 de novembro de 2010

O ANTI-REINO NO REINO DOS MERCADOS

«tal amo, tal criado…»

ANTÓNIO BORGES (PSD) - novo gestor do FMI para a Europa


António Borges (AB), economista neo-liberal e defensor das políticas de "choque e terror", acaba de ser nomeado para o cargo de director do departamento europeu do Fundo Monetário Internacional. A escolha é consistente com a doutrina do Consenso de Washington que o FMI aplica há dezenas de anos por esse mundo fora com os resultados que se conhecem.

Não vá alguém ter dúvidas sobre a actual orientação do FMI sob a presidência de um destacado membro do partido socialista francês (Dominique Strauss-Khan), AB veio dizer-nos o que pensa sobre o papel do sistema financeiro na presente crise. Numa conferência intitulada "Reformar o Sistema Financeiro", realizada na passada semana na Fundação Calouste Gulbenkian (notícia do Expresso-Economia, p. 29), AB afirmou:

"a missão principal do sistema financeiro não é apenas canalizar poupança para investimento, essa é apenas a ponta do icebergue. Deve ser permitido aos investidores exercerem o seu poder nas empresas, o que muitas vezes só acontece através do mercado, e a sua acção deve ser mais forte e incisiva para que não se voltem a cometer os erros do passado."

Logo na primeira frase, ficamos a saber que a poupança dos agentes económicos encaminhada para o crédito à economia "é apenas a ponta do icebergue". O resto, o "corpo do icebergue", é encaminhado para aplicações financeiras à margem, e frequentemente em prejuízo, da provisão de bens e serviços de que necessitamos. É esta esfera financeira que preocupa AB a ponto de discretamente sugerir que, se pudesse ter uma acção "mais forte e mais incisiva", esse capital especulativo teria impedido a ocorrência dos "erros do passado".

AB não diz a que "erros" se refere. Os de Jardim Gonçalves e sua trupe da Opus Dei no BCP? Os do BPN e BPP? Os de Madoff e outros? Os "erros" dos gestores que nos EUA concederam crédito a quem não tinha rendimentos? Percebe-se a intenção. AB refaz a história da crise procurando reabilitar a finança especuladora sob pretexto de que esta desempenha uma função socialmente útil. Assim, com grande desfaçatez, AB apresenta a crise do ponto de vista que convém aos interesses que defende.

Vejamos. AB deixa implícito que a crise foi causada por erros de gestão e pela actuação de indivíduos de mau carácter. Na realidade, AB está a ocultar a causalidade central: o excesso de liquidez dos países com excedentes na balança de transacções correntes foi (financeiramente) aplicado nos países onde a crise rebentou. O sobreendividamento dos EUA e da periferia da Europa foi a contrapartida das aplicações financeiras dos bancos da China e da Alemanha. Todos conhecemos a força de persuasão do "marketing" que os bancos portugueses mobilizaram para que as famílias se endividassem, quer dizer, utilizassem a poupança dos segmentos sociais mais favorecidos da Alemanha. Esta dimensão estrutural da crise é ocultada pela retórica da "individualização" das causas da crise e a retórica simplista do "despesismo".

AB e os seus amigos da Bolsa revelam um enorme descaramento ao virem agora dizer que a especulação financeira é socialmente útil. Querem fazer-nos esquecer que este capitalismo financeiro é intrinsecamente gerador de crises porque baseado numa dinâmica de efeitos amplificadores, geradores de "bolhas" que, em dado momento e sob a acção de um qualquer factor externo, fatalmente explodem.

Opondo-se a AB e seus amigos da bolsa, acertadamente diz Friedhelm Hengsbach, Jesuíta e Professor Emeritus de Economia e Ética em Frankfurt:

"[No capitalismo financeiro Anglo-Americano] Os gestores trabalham exclusivamente para o interesse dos accionistas e, portanto, baseiam a suas decisões (e o seu salário) nas cotações da bolsa que supostamente traduzem o valor da empresa. Os interesses dos trabalhadores, dos clientes, da administração local e organismos do estado são vistos como secundários. ...
Tem bom fundamento a suspeição com que os cidadãos vêem a colaboração entre governo e elites financeiras."

A tal conferência em que AB discursou tinha o seguinte subtítulo: "O que sabemos e o que podemos esperar". Do centrão português (PS+PSD) já sabemos o que podemos esperar. De uma esquerda preparada para governar deve esperar-se uma política que foi bem resumida por um economista insuspeito de esquerdismo [Willem Buitter]:

"É preferível sobre-regulamentar de imediato [o sistema financeiro] e, depois, corrigir os erros, do que arriscar uma nova era de mercados financeiros, instrumentos e instituições auto-regulados e suavemente sub-supervisionados."

[Publicada por Jorge Bateira em 1.11.2010]