teologia para leigos

2 de novembro de 2010

A UNIV. CATÓLICA - ESCOLA NEO-LIBERAL

Terra tombada


Ao sair para o trabalho, pareceu-me ver um rato escapulir-se entre os rodados dos automóveis na garagem do prédio. A radiofonia começava o noticiário da manhã agarrada à corrente dos ‘casos’ do dia anterior – ‘os casos’ haviam dormido mal e, por isso, acordavam mal num estúdio mal-humorado, também. O rosto dos comentadores coincidia com o rosto do governo – obtusos. Na véspera assistira a uma reunião paroquial: que fazer, agora que o advento estava prestar a entrar? Descendo a avenida, parei no semáforo: colados num poste, vários papelinhos, muito muito colados!!!, com o sorriso estranho de um Cristo esquisito - deveria estar a morrer e, ao mesmo tempo, entretido a pensar noutra coisa mais interessante. Mais tarde, um jovem haveria de me explicar que se tratava do ‘cristo do sorriso’ – ele e amigos dum centro universitário os colaram. Por cima desse cristo, em dentes de pente, pendiam tirinhas de papel com um número de telemóvel multiplicado por ene, dizendo: «compra-se ouro – cobrem-se todas as ofertas». E, sobre um outro cristo de sorriso gomado: «menina aluga quarto à rua de camões – assunto sério»… Antes de mergulhar no maior túnel da cidade (não mede mais de cem metros…), a rádio deu a conhecer a intenção do bispo em se passar a comunicar pelo iutube com o povo ‘de deus’. Na hora do almoço, dei um salto à universidade (católica) para assistir à luta (dela) contra a pobreza e a exclusão social (dela?). De tarde, ouvi, de facto, a confirmação pela rádio: o bispo tenciona fazer duas coisas inovadoras que tinha a certeza irem pôr as coisas a mexer (e isso fez-me logo lembrar o ‘bouger les choses’ do Sarkozy, no telejornal da véspera)  – promover no mês de maria, como clímax de todos os terços rezados nas paróquias, uma procissão de velas atrás duma escultura de nossa senhora de fátima, que há 50 anos já não nos visitava (a ingrata…); e dar novo fôlego à segunda fase da missionação do porto. Como? O locutor não deixou aquecer a pergunta. O senhor bispo tenciona pedir emprestado à cidade o mais antigo carro dos bombeiros que por lá houver, engalaná-lo, convidar personalidades para saírem pelas colunas de som (ao longo do trajecto da procissão) e mandar comprar muitas velas ao som do ‘enquanto houver portugueses’… Por outro lado, sugeria ao povo que em todos os recantos da cidade e no metropolitano debaixo da cidade construíssem cristos, obras a encarar quem passa.
Os jovens da paróquia, ao fim de intermináveis horas de alarido pela noite dentro, concluíram afinal que deviam escolher cânticos novos para as missas velhas – os outros já estavam muito batidos – e mandar imprimir grandes faixas de lona a afixar nas torres sineiras, dizendo: «Jesus é a resposta! Ele espera-te!». Entretanto, os noticiários da rádio desfiavam catadupas de estatísticas, milhões de valores em numerário, facturas nacionais e pessoais incríveis, grandes falências, maiores trafulhices financeiras, gigantes sacos de pecados-bolsistas desregulados, dívidas monstruosas por pagar, vindas sabe-se lá donde, que levavam ao mesmo comentário por quem passava na rua: «Mas que merda é esta! Que andamos todos a fazer estes anos todos sem ter dado por nada todos?! Que é isto, afinal? Para onde foi o nosso dinheiro? Quem é o filho da p. que se andou a abotoar com ele?» A cidade deixara de discutir futebol… Arrastava os passos. Parecia a semana santa: Braga-no-Porto (parafraseando aquele restaurantezeco à Trindade: ‘Vigo-no-Porto’).
Vale-nos que um certo senhor professor universitário francês veio ensinar à universidade católica a solução para tantas palavras descabidas: ‘a fundação danone’! Isso mesmo. A danone descobriu como combater a pobreza e promover a inclusão social. A pobreza no bangladexe foi o maior desafio para a fábrica danone. Os administradores aqueceram os fusíveis: como alterar os mecanismos de produção de iogurtes danone de modo a matar a fome a populações miseráveis? Criaram a ‘Fundação Danone’. Vendendo-lhes iogurtes bastante mais baratos, feitos com leite-biológico das suas vacas asiáticas, mungidas por mãos biológicas de miseráveis do bangladexe que, em troca, receberiam gratuitamente aulas de alimentação racional ‘como-selecionar-alimentos-correctos’. Ora vamos lá a contar: «4-em-1», não é? Genial! Como é possível que Colombo não se lembrara antes!? Teria encurtado o trajecto e engordado os cofres do estado. Até a Europa viria a beneficiar deste programa empresarial, pois a procura de iogurtes biológicos no velho continente vem crescendo neste milénio (empreendedorismo, meus senhores!!!, gritou o professor francês). Mas como o bangladexe fica muito longe, ensinou mais à universidade católica: a partir da experiência duma empresa francesa, a qual já está a vender telemóveis muito baratos aos sem-abrigo franceses. Os voluntários da católica ficaram radiantes: em 2011 (Ano Europeu do Voluntariado) serão pioneiros ! Surpreenderão todo o mundo, andando às tantas da noite, pelas ruas da cidade, com um kit de comida quente que inclui um telemóvel à prova de chuva com 1 euro de chamadas grátis incluídas… a troco de 10 euros cada kit. (Gente fina é outra coisa, os sem-abrigo franceses! Só que, se os nossos, os típicos, os únicos ômelece-meidin-portugal descobrem, fogem todos para França e, depois, que é feito dos nossos generosos jovens voluntários da católica, ehn? Perigoso…). A BASF, a Veolia, nha nha nha nah nah nha… tá tudo agora nessa! (que o velho-voluntariado-óenegê já deu, meus caros). Meus meninos: toca-a-mexer-esse-conceito, tá? EMPREENDEDORISMO, ouvirão? (O profe francês queria conjugar o verbo correctamente no passado, mas… achava que devia adicionar-lhe umas quantas tintas de futuro, pessébem? Por isso, deu nisto: ‘ouvirão(m)’). Os voluntários da católica serão pioneiros em 2011! Afinal, as coisas não estão como pr’aí se diz…
No intervalo dos colóquios na católica, o profe francês confidenciou-me: o que a danone passou para chegar aqui… É que não sabíamos o que alterar no modo produtivo da empresa para responder a tamanho desafio do mercado diante de tamanha miséria! Condoí-me. Oh espírito cristão!
Vim a casa a ver se ela ainda lá estava (ela, a casa, claro – não ouviram falar na bolha imobiliária? Não? Tá. Depois não se queixem – um dia encontram apenas a rua onde moram - casa…?!!! cadé!!!?). E não é que dei com uma gorda ratazana parada no meio do chão da garagem, inflexível, tiritando! Afinal, a minha suspeita sempre era verdade. Dei meia volta e fui à vida. A rádio transmitia uma breve entrevista do bispo a anunciar, eufórico, que estava tudo contratado – “Vamos encher a avenida! Será um espectáculo de luz lindíssimo! De luz branca… Estamos muito precisados” - acrescentou. Nesse momento, em reunião de conselho de ministros, decidiram-se as medidas de austeridade para fazer face à crise: aumentar o preço da luz. E do gasóleo, também. Meu deus, transpirou o bispo: a virgem vai-nos sair cara… No seu ar muito bonómico ou gnómico ou binómico ou optimista - (caramba: porque é que eu não escolhi logo esta última alternativa, de entre as que o dicionário do computador me ofereceu…?) – naquele seu ar só seu, o senhor bispo aliviou-se: ‘Não há crise - Santa Isabel nos acolherá nas montanhas da sé mais a sua prima Maria’! Ouvi isto e guinei para a minha aula de antigo testamento, na católica (claro!). O professor discorria sobre leitura e interpretação (bíblica, claro). Entrei atrasado. «A certeza do sentido do texto é a providência que o dá. Porém, para além do texto existe o contexto e a providência revela-se também na história. O texto não cai do céu mas ele é primeiro.» Um aluno interrompeu-o: «Ó sr professor, e nós não podemos lê-lo?». «Sim, mas convém cingirmo-nos a ele. Para isso é que estamos cá nós, os especialistas – nada de adaptar o texto às nossas circunstâncias. Isso pode ser dramático!». E o aluno de novo: «Mas o texto está acabado? Não pode ser re-escrito? Acrescentado? Relido no seu mistério não-dito e inter-dito». «Poder, pode. Até deve» «Então, em que ficamos…?» Subitamente, parece que ouvi a sineta do Miguel Torga a dizer: «tem-lêndias, tem-lêndias…», e saí. Vim pelo campo alegre e vinha a pensar: onde é que eu li que, com a leitura, a escritura cresce como um bolo no forno? Deve ter sido ao padeiro do montemuro, de alcunha ‘o marrano’.
Um pároco da periferia do porto resolvera passar a explicar às santas e queridas velhinhas da sua paróquia (aquelas como a minha santa mãezinha que mora na amieira com os seus oitenta e sete e um cão e é mais santa que os seus  seis  filhos todos juntos e ao quadrado, mais uma matilha como hipotenusa da dita raiz) pois resolveu o santo pároco que a partir de hoje já não se marcam mais missas-por-alma. Nenhuma das santas mulheres percebeu nada. Perceberam apenas que a nova escadaria da Igreja Nova era muito íngreme como ó caraças e muito desajeitada para os seus reumáticos e que doravante havia apenas ‘marcações de intenções’: pagavam na mesma, tinham a agenda das intenções, na mesma, e, nela, uma data específica para a sua intenção na mesma, e sabiam em que dia exacto podiam ir à missa-por-alma e que nessa-missa-por-alma (à mesma) lá se anunciaria a sua intenção (como sempre). Quanto ao resto do sermão… nicles! ‘Num entendi onde o senhor-abade queria chegar – quereria ele implicar?’, dizia uma daquelas piedosas senhoras. Cá para nós que ninguém nos ouve, a subtil e bondosa piedade do pároco é que irá para o céu: convenhamos que teria sido muitíssimo mais torturante, para as santinhas – para estas devotas do sagrado e gotejante coração de Cristo – perceberem o que diz o código do direito canónico, nos seus aditamentos da conferência episcopal portuguesa, quanto à contabilidade por cada missa-por-alma (se 1ª intenção X, se for 2ª X+, se cliente antigo -X, se em caso de muitas intenções juntas X+Y, se missa-exclusiva-e-particular por alma de quem lá tem XXL, etc etc…). Em minha opinião, foi melhor assim. O pároco, afinal, em sua infinita e pacientíssima pedagogia, encobria uma piedade beatificável - e eu que não o adivinhara! Até ao dia em que lhe vi aflorar, ao bolso de trás da batina-de-ganga-pedro-del-hierro à maneira dos caubóis, um livrinho que dizia: «Quero passar mais além, Filoteca, e dizer-te que em tudo e por tudo ames a tua própria abjecção; mas talvez me perguntes que quer dizer isso de amar a própria abjecção? Em latim, abjecção quer dizer humildade, e humildade quer dizer abjecção, de tal sorte que, quando Nossa Senhora, no seu sagrado Cântico, diz: ‘Porque olhou para a humildade da sua serva, todas as gerações me chamarão bem-aventurada’, quer dizer que Nosso Senhor viu com bons olhos a sua abjecção, vileza e baixeza para cumulá-la de graças e favores. Há, porém,» - mas eu já não fui capaz de mais poréns, e fiquei-me por aqui para que, no fundo do meu coração (que quero acreditar que ainda esteja lá) nada obstaculizasse ao risonho futuro da beatificação do meu querido e bondoso pároco que tanto estimo (agora é a sério que o digo; acreditem – a sério.).
Porémnumgestodepurificaçãointeriorabjectante,decidiiràmissadeleaversemeamavamaisqueestoumesmoprecisadinhodetodo.Entrei quandoelejáianatransubstanciaçãosantomasdeaquinoqueéaquelemomentoluísdematosemquetudotombadejoelhosaomesmotempo. Proclamava, então, solene: «Pode ser que o mesmo suceda a muitas pessoas hoje em dia. Mas também a estas, Jesus diz, tal como disse aos judeus que tinham dificuldades em o aceitar: “A minha carne é verdadeira comida e o meu sangue verdadeira bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue, vive em mim e Eu nele”. Pois - o termo ‘sangue’ recorda-me fortemente cenas brutais nas quais é derramado sangue. Em certa ocasião, uma mulher confessou-me (e eu nem sequer sacerdote sou…) que não conseguia beber do cálice quando o sacerdote lho entregava com estas palavras: «o Sangue de Cristo». Isto recordava-lhe a matança do porco na casa dos seus pais. Agoniado, saí. Ao descer o escadório da nova igreja, senti-me um objecto, logo um cão, logo um pulha, logo insuportável, logo um suíno, logo arrependi-me (seriam já efeitos da abjecção?!) e logo voltei atrás… mais segurado. De novo lá dentro, ajoelhadinho que é para saber como elas doem, continuei a ouvir: «A linguagem de Jesus não é uma ‘linguagem sangrenta’, mas uma linguagem de amor. Na linguagem de amor, também hoje costumamos dizer que alguém dá o seu sangue pelo outro». - (menos os jeovás, resmunguei injustamente eu) - «Ambos os termos, «carne» e «sangue», são, para Jesus, …». Bom – num pulo, cuidei que havia entrado num talho, e vim à rua apanhar ar fresco e respirar fundo para não desmaiar.
Regressei à católica. Pelo caminho, um filho meu telefonou-me para dizer que tinha visto uma ratazana muito gorda a cambalear na garagem do prédio. ‘Tá, filho; já sei – aos poucos começo a habituar-me a coisas dessas… Obrigado pelo teu cuidado. Adeus. Olha, olha – não desligues já! É só para te dizer que não sei se hoje janto. Não me sinto bem…’-‘Mas sentes-te doente, pai?’ –‘Nem sei – talvez não. Ou sim. Nem sei bem… Talvez não.’
O reitor da católica acabara de subir ao palanquim para encerrar os colóquios que durante dois dias e meio lutaram contra a pobreza, contra a exclusão (de quem?). Em primeiríssima mão, anunciava que iria estabelecer uma parceria com a universidade do profe francês para se iniciar já no próximo semestre uma cátedra sobre ‘negócios e pobreza’ – um bruá pelo auditório (com 12 pessoas)! As palmas irromperam como quando se abrem as comportas do carrapatelo para deixar subir os iates até barca d’alva. E imediatamente me senti transportado ao sul do bangladexe, a Kutupalong, um dos dois campos de refugiados administrados pelo alto comissariado das Nações Unidas para os refugiados (ACNUR), esses refugiados que atravessaram a fronteira  da Birmânia para o bangladexe - os rohingya. Finalmente, chegara o reino de deus aos refugiados da Birmânia e àquele horror de barracas de zinco em que, quem morre, é colocado num rego a céu aberto ao lado da barraca, reserva para quando já não há mais nada que comer. Agora, Noor Ayesa Begum, mulher rohingya refugiada da Birmânia, velha e cheia de rugas, já pode ter a resposta ao seu lancinante apelo que rezava assim: «Atirem-nos ao mar ou disparem sobre nós. Sobretudo, tirem-nos deste inferno». Calma Noor, calma: também não é motivo para tanto! Calma. Mais um pouco e receberão iogurtes danone com fartura (campanha sazonal – módico preço e biolóóógicos). Calma! Roma e Pavia não se fizeram num dia! (revoltados e mal-agradecidos, ehn! Vivem da caridade e ainda acham que podem fazer o que lhes apetece… Chiça! Eles deviam é vir à católica ouvir o testemunho daquela ex-assessora do conselho de administração duma multinacional farmacêutica sobre os truques que inventou para sair da crise quando ficou no desemprego. Até tijoleira assentou… na empresa de construção civil do marido… com a ajuda do microcrédito. Tremendistas e mal agradecidos, ehn!).
As novíssimas obras missionárias do senhor bispo da cidade já davam frutos temporãos. Passando diante da frontaria de uma igreja, vi um espantalho vestido de frade capuchinho agarrado a uma cruz feita de lousas de ardósia como aquela que tive na escola primária em cinfães – assustei-me! Era uma imagem sinistra. Dependurado da corda cintural teria tido um telemóvel engatilhado e um letreiro: “Prima a tecla verde, Deus atende-o! JESUS É A RESPOSTA!” Em apenas dois dias, era já o segundo telemóvel que desaparecera. Ah, mas há mais! Em são bento, há cristos feitos de garrafas de plástico cobertas de areia… A chatice foi que choveu e a areia…’, disse-me um amigo meu. Obrigado caro amigo; caríssimo, obrigado.
Agoniava. Foi quando tocou o telefone: «Pai, vem depressa…». Entrei na garagem. Outra vez a ratazana gorda, agora estendida, morta, cauda afilada, atravessada mesmo no meio do meu caminho. Jazia.
E, na minha cabeça, sempre a mesma pancada, sempre a mesma pancada: ‘Jesus é a resposta. Jesus é a resposta’. Mas - desculpem – qual era mesmo a pergunta…?
«As medas de trigo desta paisagem tombada, os campos ceifados, a terra espantada.» [Marcos Menéndez]