Nunca o gesto será bastante - «às avessas da Parábola do Evangelho»
«Toda a gente que pensa e que deseja sinceramente um Portugal melhor, importa-se sobremaneira com o problema da vadiagem infantil; - aquela escola que começa por uma inocente ponta de cigarro e chega às mais ousadas formas de crime. São justamente desta escola os alunos da Casa do Gaiato; alguns tão perfeitos em seu género, que eu nem sequer posso pensar em entregá-los à família, - ninho de perversão.
«O pequenino que chega, uma vez instalado no que é seu, logo mostra o que viria a ser, se ficasse no meio onde estava. Ganha confiança, faz as suas confidências, abre o coração: - o gajo que dorme com a minha mãe é pedreiro e trata-me mal, mas eu quando for grande hei-de furá-lo com uma navalha.
A Sociedade gera monstros; estes inocentes são dos que mais tarde se sentam no banco dos réus.
Nenhum ardina me passou até hoje pelas mãos, sem a sua história, que ele conta cândidamente, ao sentir-se amado; todos se apresentam predispostos à tuberculose e dispostos à prática do mal. De sorte que a Casa do Gaiato serve dois fins: - livra-o do Sanatório e do Reformatório.» [p.64]
«Sábado é dia de limpeza geral. A escola termina às onze e após o jantar, os garotos tomam escovas e joelheiras. Os cântaros de água sucedem-se. A casa fica a espelhar. Não é para mostrar a quem venha. Que temos a casa assim limpa; é para conforto e bem-estar. É educar. É a nossa casa, onde temos a lareira. É pobre como a deles, só mais asseada. A deles podia ser assim, e devia – se tu comesses menos e poupasses mais.
Os muito pequeninos têm suas aias, que os vestem, limpam, zelam. Eles sabem quem elas são, e chamam pelo seu nome, nas emergências!
E quando, à noite, os vão deitar, as aias, tomam-lhe a mãozita e fazem-lhe, com ela, o sinal da cruz. Para ensinar crianças, não há como crianças. Como muitos dos garotos andam na casa dos sete, houve de se mandar fazer bancos, para eles chegarem às coisas da sua obrigação. É vê-los em toda a parte, empoleirados nos bancos, a espanar, - felizes.
O rapaz assim à vontade, é expontâneo, encantador. Ele é ele cem por cento, imprimindo a tudo que faz e diz, carácter infantil; espalhando na casa alegria e mocidade. Fazem mandados e recados como quem brinca, pondo em tudo a marca do seu ser. Há um que finge com muita graça as vozes dos animais, e não poucas vezes sucede enxotar a Regente de debaixo das mesas, cana na mão, o gato ou o cão da casa; e não é gato que mia nem cão que ladra, mas sim o garoto que brinca! (…) O assobio continua a chamar, mais estridente. Procura-se, pergunta-se; o rapaz, de cima espreita e goza. A Regente jura-lhe pela pele; - Deixa que tu hás-de vir.
- Já cá estou, grita o gaiato de cima da árvore!
São assim os habitantes da Casa do Gaiato. Não atrofiamos nem mortificamos os Miúdos; corrigimos como quem brinca e eles, a brincar, deixam-se corrigir.» [p.55-58]
«O ZÉ NADA morreu-nos, de combalido que vinha! O Manelsito, retirado de uma fossa onde a Mãe o lançara, escapou. O Augusto de Odemira não está contente. O Camilo e o Lisboa, da Comunidade de Miranda [do Corvo], são designados «fundadores» de Paço de Sousa. Os nossos rapazes lançam as fundações da futura aldeia. O Rio Tinto entra no que é seu. O estômago muito composto e o sol muito quente, levam os pequeninos a dormir em qualquer sítio e posição - este adormeceu no alpendre da capela.
-A gente no Alentejo não usa destas coisas, diz o Zé Carlos, apontando os bacios!
- Deixa lá, Zé Carlos, que é por pouco tempo. Chegando outro tu largas.
Neste mês de Abril são os anos de:
Leonel de Coimbra, onze anos, dia 1. Manuel de Anadia, seis anos, dia 6. Adolfo de Coimbra, 12 anos, dia 12. Carlos Alberto, 13 anos, dia 15.» [p.121]
«Deu entrada no Lar, logo no seu início, um Pupilo do Reformatório de S. Fiel, saído há muito daquele Estabelecimento, com três anos de vadiagem. Dentro em pouco houve de ser expulso, e com ele, foi igualmente o criado, iludido pelo vadio. Este, desapareceu de Coimbra; aquele, ficou.
Bateu à porta vezes sem conta, até que um dia uma comissão de rapazes pede ao Maioral que o deixe entrar.
Entrou, mediante a condição de ser considerado e tido como servo e não filho. Era uma tremenda prova. Não mais se sentaria à mesa, nem tomaria parte nos actos da comunidade, nem trataria por tu os seus antigos companheiros. Criado peco e seco. O Rapaz aceitou e cumpriu.
No fim de alguns meses, os companheiros pedem ao Maioral que lhe levante o castigo e assim se fez.
O regozijo não coube na alma da comunidade; um filho perdido volta à casa paterna.
Às avessas da parábola do Evangelho, aqui, os irmãos, pediram a entrada dele e fizeram a festa.» [p.85]
«Todos quantos sinceramente nos quiserem auxiliar, não devem trazer para aqui o empenho do menino muito bonzinho que ficou ontem sem Mãe e que nunca levantou a mão para ninguém, coitadinho. Não devem, que a nossa especialidade é justamente receber e amparar o que há de mais agressivo, de mais reles, de mais repugnante, de mais vicioso. Rapaz em bruto, sem carinhos, nem cuidados, nem família, nem amor de ninguém, para ser transformado a seu tempo pelos nossos carinhos, pelos nossos cuidados e pelo nosso muito amor. Sim, leitor do Porto, coloca noutros organismos o menino desamparado e aqui, o mestre de vícios.
Se salvares um, - salvas-te.
Há dias cheguei de fora e topei um pequenino na casa onde habito, em Coimbra, mai-los rapazes saídos do nosso Reformatório, ao deus-dará. Indaguei. Tinha vindo de véspera pela mão do Pai, a quem se dissera que viesse no dia da minha chegada e o homem fingiu ir a um recado e não voltou. Não gostei e decidi conduzir o pequeno a casa, mas ele roubou dinheiro e uma corrente de prata nas horas que esteve em nossa casa. Recomendou-se.
É meu.
Sentei-o no meu regaço. Confessou com lágrimas: pediu perdão. O amor é eloquente.
Encontra-se hoje aos cuidados do mestre de moral da Casa do Gaiato. O pequenino ladrão, ocupado como anda com os trabalhos da quinta e alegre no convívio dos irmãos, cura-se sem dor.
Assim se furta um homem aos laços de justiça que por cega e não compreender, tantas vezes erra.» [p.148-149]
«Ora é precisamente neste mesmo espírito, que eu venho contar ao mundo, como os montes marcham e os elementos obedecem; − fareis prodígios maiores do que eu, se tiverdes fé em mim. (…) É a voz de um coração que vive e que sente a vida e a sorte das chusmas infantis, a vender jornais nas ruas, a tirar lixo das latas, a guiar cegos nas feiras, a ir pela sopa aos quarteis; e, sobretudo, os dados à moinice, viciados, pervertidos pela família e pela sociedade, a chupar pontas de cigarros − o prólogo dos grandes crimes. Eles, património da Nação, os predilectos de Jesus, que se morressem naquela idade iriam vestidos de branco com sinos a repicar.» [p.5-6, ‘Memorare’].
«Foi no Beco do-Moreno, em Maio de trinta e cinco, que o miúdo me apareceu. Enquanto que as grandes artérias das grandes cidades mudam frequentemente de nome, consoante as paixões mai-los acontecimentos do tempo, os becos e vielas das mesmas, tomam a sorte de quem lá mora; nem nome, nem condição. Ninguém faz caso.
«Passava eu por ali, naquele mês e ano, quando um garoto da rua embarga o meu caminho num angustioso e imperativo venha ver o meu pai que está na cama e a gente passamos fome.
«O casebre era ali mesmo. Subi a escada apoiado ao corrimão e aos ombros do rapaz, sempre a dizer-me baixinho − não caia meu senhor; que se os perigos dos Alpes são grandes, pela altura, aqui não são menores, pela escuridão.
«Entrei no cubículo. Coisas e formas emergiam da sombra, lentamente. Reconheci o homem com quem falava. Tratava-se de um tipógrafo da Imprensa da Universidade, mandada fechar, ao tempo, por ordem superior e hoje abrigo de pombas nos buracos das paredes. Quantas vezes não fui eu assobiado às portas daquela casa, só porque uso batina e digo missa no altar, − quantas! Nós éramos conhecidos. O padre é o grande mal do mundo, assim diziam os companheiros, mai-los livros que ele compunha; corrê-los da sociedade, é um grande benefício. Muitos por causa do meu nome, hão-de julgar fazer bem ao mundo, perseguindo-vos até à morte, ensinara Aquele que vê tudo no presente. Tinha chegado a este homem o feliz momento de ouvir estas verdades e a mim, o de me vingar dele à maneira do Evangelho!
«Este foi o terceiro tipógrafo encontrado no meu giro, que teve a sorte de compreender, antes de morrer. Antes dele, um seu colega, recebera-me na trapeira, com uma pedra na mão; enganou-se padre, aqui não há dinheiro. Morava numa rua antiga da Alta [de Coimbra], casa de degraus até ao céu, íngremes, carunchosos, sem luz. O homem era de idade em flor e tinha saído das oficinas para a casa onde morreu, com sangue pela boca. Os colegas visitaram-no, fizeram uma subscrição, indagaram das melhoras; e por fim, esqueceram-no. O tempo tudo gasta, até as maiores simpatias.
«Começa ele a viver do que é seu. Primeiramente o relógio, a seguir os trastes, depois as roupas − tudo. Só tinha os olhos da cara quando na mansarda entrei. O padre, corrido ontem, volta no dia seguinte com mimos e tabaco, arrisca duas palavras e some-se nos degraus, −para vencer.
«Muitas vezes convém recuar para atacar com mais força. Pai Celeste, perdoa-lhes, que não sabem o que fazem.
«Com estas armas na mão, nestes campos de batalha, contra inimigos assim, nunca ninguém naufragou. Este, caiu varado, dentro de pouco tempo; e sobre o leito da morte, na maré dos sacramentos, fez o seu testamento deixando-me herdeiro universal de tudo quanto possuía: um filho, mai-la a viúva.» [p.7-10]
«Ai cidade do Porto, quão tarde te conheci!»
Pe. Américo
[excertos de ‘Obra da Rua’, Pe. Américo Aguiar, Paço de Sousa, 1965 – reportam-se a um Portugal dos anos 30-40; respeitou-se a grafia]
Graça & Justiça para todos…