teologia para leigos

4 de novembro de 2010

JOÃO PAULO II - UM PAPA PERIGOSO

Carol Wojtyla...


João Paulo II (1978-2005), o primeiro papa polaco da história depois de uma tradição de quatro séculos de papas italianos, nasceu no dia 18 de Maio em Wadowice. O seu pontificado foi complexo, exuberante, contraditório, de um protagonista que influiu na marcha da Igreja como poucos antes dele e que ocupou com frequência os espaços informativos. Foi o papa mais universal e mais conhecido de todos os tempos. Pelas suas viagens, encontros, discursos e documentos esteve presente tanto no campo eclesial como no moral, cultural, social e político. De carácter inconformista, pródigo em gestos pouco convencionais, desmitificou o pontificado, como antes o fez João XXIII, convencido de que o carisma pontifício não depende de gestos nem de ritos teatrais nem de aparências sobre-humanas e pouco convincentes.
A Igreja actual é mais aberta e mais livre do que antes, mas esta atitude complicou e ampliou os seus próprios problemas. Saiu da reclusão em que se encontrava, do estado de auto-satisfação provocado pela convicção de que só ela possuía a verdade, e pôs-se a caminho lado a lado com os demais mortais. Esta mudança é meritória, mas o que ganhou em universalidade perdeu em tranquilidade interior. Num mundo tão inter-relacionado, os problemas alheios acabam por ser também os próprios.
Em 1978, depois da morte inesperada de João Paulo I, os cardeais decidiram uma viragem histórica, um pouco por necessidade e, sobretudo, porque consideraram que os tempos estavam maduros para eleger um cardeal não-latino. Estavam convencidos que a universalidade da Igreja exigia uma inculturação maior nas diversas regiões, histórias e culturas. Mas o facto de eleger um polaco significou também uma opção por um modelo e uma atitude muito concretos. Na Polónia a secularização e a descristianização tinham sido impostas por decreto, mas quase não tinham chegado às massas católicas, ao contrário do que tinha ocorrido nos países ocidentais. A Igreja mantinha a solidez e a credibilidade da sua mensagem e a sua liderança era reconhecida inclusive entre o proletariado. Não esqueçamos o grito lançado por João Paulo II na sua primeira viagem como papa ao seu próprio país: «Ninguém tem o direito de expulsar Cristo da história.» Os cardeais consideraram que os católicos polacos tinham vencido o trauma da secularização e quiseram beneficiar desta experiência. Naturalmente, tratou-se de uma ilusão.
Frente a uma Igreja que parecia desmoronar-se optou-se por um pontificado forte, muito seguro de si mesmo, muito convencido de que a manutenção das próprias raízes cristãs fortalece a personalidade dos povos e a solidez do cristianismo. O papa polaco esteve marcado não só pelo seu carácter e a sua língua, mas sobretudo pela sua decisão de integrar o ambiente eslavo na história e na dinâmica do mundo ocidental. A sua actuação na Polónia, tão pessoal, directa e eficaz, não pode ser considerada unicamente como a tentativa de um polaco libertar a sua pátria, mas também como o desejo de um eslavo de libertar uma parte importante da Europa da sua opressão histórica, tanto ideológica como geopolítica. No seu pontificado conjugaram-se os interesses universais com os regionais do Leste Europeu. Poucos dias depois da sua eleição, recebendo bispos polacos, disse-lhes: «Considero-me um bispo da Polónia. Sou polaco: amo a Polónia.» Poucas vezes na história estas igrejas eslavas e em geral as do Leste da Europa se teriam encontrado mais integradas no tronco comum cristão.
Não sabemos se João Paulo II recebeu um mandato concreto do conclave a propósito das necessidades mais urgentes e de uma «modernização responsável» da Igreja, mas depois de mais de vinte e cinco anos de pontificado parece que podemos afirmar que Wojtyla se via a si mesmo como um novo Gregório VII, com a missão de reformar resolutamente a Igreja, considerada em situação de grande decadência. Isto levou-o a exercer o poder com vontade inflexível, actuando frequentemente com dureza, quando o considerava necessário, sem grande respeito pelas pessoas ou pelos seus itinerários eclesiais, exigindo aos teólogos uma estreita colaboração com o magistério o que, de facto, significou maior controlo da liberdade teológica da Igreja.
Restringiu a possibilidade de secularização dos padres, impôs um delegado pessoal aos jesuítas e interpretou a evolução do atentado que sofreu como uma intervenção especial da Virgem de Fátima. Confiou nos movimentos e em algumas instituições, como a Opus Dei ou os Legionários de Cristo, sem ter em conta o parecer dos bispos nem, evidentemente, dos fiéis, convencido de que eles são chamados a regenerar o tecido eclesial, devolvendo à Igreja segurança em si mesma e uma consciência clara da sua função religiosa. Não há dúvida que era profundamente autoritário, mas, ao mesmo tempo, o mais popular da história.
João Paulo II foi fundamentalmente um papa viajante, escreveu muito, gostava do contacto directo com as pessoas e recebeu permanentemente em audiência grupos e pessoas individuais, visitou sem descanso as paróquias romanas, uma a uma, e, com frequência, as dioceses italianas, onde falou sem papas na língua sobre os pontos débeis da complicada situação nacional. Depois do Vaticano II as dioceses adquiriram mais consciência da sua autonomia, e as conferências episcopais nacionais tiveram, ao menos em aparência, capacidade e meios suficientes para orientar a marcha das suas respectivas igrejas. Por outro lado, durante o seu pontificado, Roma passou a dirigir mais do que nunca a vida imediata das dioceses, limitando as capacidades das conferências episcopais.
O papa, ocupado nas suas viagens e preocupado com os grandes temas de carácter global, deixou nas mãos da Cúria boa parte do controlo habitual que, por exemplo, Paulo VI exercia em pessoa. Isto significa que a Cúria do papa Wojtyla se fortaleceu na sua burocracia e nos mecanismos de controlo sem que, por sua parte, tenha sido fiscalizada nem limitada. Nos últimos anos, de enfermidade e ancianidade, esta realidade foi-se agravando consideravelmente.
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Em 1596 uma parte do clero e do povo ortodoxo oriental escolheu unir-se a Roma, embora mantendo o rito litúrgico bizantino. Os uniatas − do latim uno e do russo uniat − viveram submetidos a russos e polacos, em situação frequentemente difícil. Em 1946 Estaline suprimiu sem mais a Igreja uniata e incorporou-a na Igreja ortodoxa. Depois da queda do regime soviético, este acontecimento continuou a ser motivo de confronto entre a Igreja ortodoxa e a católica. Aquela não queria perder os fiéis adquiridos indevidamente e esta exigia a devolução dos bens confiscados e o reconhecimento pleno de uma realidade existente apesar da perseguição e das intolerâncias: ou seja, milhões de cidadãos continuaram a considerar-se católicos apesar da perseguição. Além disso, para os católicos, o facto de os uniatas manterem a liturgia, a língua, a tradição e a ordenação canónica próprias constitui a demonstração da possibilidade de distintas tradições conviverem em comunhão numa mesma Igreja.
Para João Paulo II a Igreja uniata deveria constituir a ponte entre católicos e ortodoxos, mas na realidade, dada a intransigente posição dos ortodoxos russos, converteu-se num muro que piorou ainda mais as relações mútuas. Além disso, os uniatas ucranianos, que são a maioria e contam com dois milhões de membros nos Estados Unidos, defendem a independência da Ucrânia de toda a ingerência russa, de forma que, uma vez mais, o nacionalismo influi e conforma uma Igreja oriental. João Paulo II, ao decidir a criação do patriarcado de Kiev, deu origem a uma rejeição de consequências imprevisíveis no patriarcado de Moscovo. Esta é a razão por que o papa não pôde visitar a Rússia, como era seu mais vivo desejo, e por que as relações entre ambas as Igrejas se encontram abaixo dos níveis mínimos.
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Numa das suas mais claras propostas, João Paulo II convidou todos os chefes religiosos do mundo a reunirem-se em Assis (1986) para rezarem juntos num momento em que as religiões pareciam viver um dos seus momentos mais baixos. A reunião constituiu um autêntico golpe nas consciências religiosas, embora nos ambientes mais conservadores tenha produzido o temor de um irenismo incontrolado, capaz de relativizar e igualar todas as doutrinas.

Um pontificado iminentemente peregrino

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João Paulo II fez das viagens um instrumento permanente de evangelização. Dedicou-se a visitar sistematicamente as diversas Igrejas dos cinco continentes, em mais de cento e quarenta viagens a Itália e mais de cem a outros países. (…) −  corria-se o risco de que as massas se entusiasmassem com a sua pessoa mas continuassem sem ser atraídas pela mensagem cristã; [podia acontecer] que tudo se convertesse numa imensa montagem na qual a substância religiosa fosse acidental.
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No entanto, estes encontros frequentes não tiveram como consequência uma maior co-responsabilidade dos bispos na caminhada da Igreja. João Paulo II manteve o controlo do episcopado próprio da época moderna, seguindo um estilo mais rígido e uniforme. Mudou hierarquias inteiras sem ter em conta o parecer do povo crente nem dos bispos do país, e nomeou bispos de uma linha, sempre a mesma, para mudar maiorias nas conferências episcopais. Em certo sentido, o papa itinerante converteu-se numa espécie de super-bispo, capaz de exercer de forma nova um primado mais sufocante. As conferências episcopais nacionais não conseguiram actuar autonomamente e aos sínodos episcopais não foi permitido que se convertessem num órgão participativo de conselho e de governo.
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Matrimónio e família

Estes dois valores, fundamentais para o cristianismo, parecem encontrar-se em profunda crise na sua concepção tradicional dentro da sociedade ocidental. O tema está a provocar uma polémica generalizada e azeda em numerosos países por causa das propostas que equiparam as uniões de facto às famílias institucionais. O papa, que dedicou a este tema mais tempo do que a nenhum outro, chegou a definir a união de facto como uma desordem, embora insistindo na protecção jurídica dos mais débeis, isto é, dos filhos frutos destas uniões. A experimentação da engenharia genética aplicada ao homem constitui nestes anos um tema extraordinariamente árduo, no qual o compromisso se torna sempre mais difícil.
No mesmo âmbito da moral, uma das principais preocupações de João Paulo II foi a batalha contra a legalização do aborto nas sociedades avançadas. Na sua encíclica Evangelium vitae, na qual convidava a uma nova cultura de amor e respeito pela vida, atacava a cultura da morte, que considerava característica das sociedades materialistas, e das quais o aborto e a eutanásia constituem as principais expressões. A instrução «Sobre o respeito da vida humana nascente» (1987) anunciava que a Igreja se propunha como objectivo imediato obter dos Estados a reforma de leis civis moralmente inaceitáveis, utilizando a opinião pública mundial e qualquer outro meio de pressão legal. Nas conferências e nas instituições internacionais, os representantes da Santa Sé mantiveram uma atitude crítica neste tema, frequentemente em colaboração com alguns países islâmicos.

Beatificações e canonizações

João Paulo II quase canonizou e beatificou mais pessoas do que o resto dos papas no seu conjunto, com o consequente perigo de desvalorização e de uma certa perda de estima do tema. O papa, no entanto, estava convencido de que as jovens gerações e as sociedades em geral necessitam mais do que nunca de modelos de vida cristã. Nas suas viagens a diferentes países beatificou filhos destas comunidades, conseguindo que os povos considerem como algo próprio pessoas que de outro modo teriam ficado no anonimato. Noutras ocasiões estas cerimónias provocaram reacções negativas que transtornaram algumas Igrejas, como em Espanha, por ocasião dos mártires da Guerra Civil ou da causa de José Maria Escrivá.
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Provavelmente a página mais sugestiva e incisiva do jubileu do ano 2000 foi o pedido de perdão por parte do papa em nome da Igreja pelos «erros, infidelidades, incoerências e lentidões» e pelas formas de «anti-testemunho» e de «escândalos» de que se fizeram protagonistas «os seus filhos» ao longo dos últimos mil anos. (…) Numa sociedade na qual ninguém pede perdão, a actuação pontifícia representou uma interpelação, embora muitos cristãos tenham expressado que seria mais eficaz se a insistência incidisse mais nos pecados actuais. (…)

Pensamento social

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João Paulo II era moderno, protegeu os «movimentos», novos grupos de leigos presentes na Igreja com um verniz exterior mais progressista do que o seu interior oculta, mas não há dúvida que a sua teologia neste campo era profundamente tradicional. O papa engrandeceu o papel da mulher na Igreja mas não lhe reconheceu o acesso ao sacerdócio, argumentando que há muitas outras funções importantes na Igreja. Embora o documento Christifideles laici disponha que as mulheres devem participar na vida da Igreja no que se refere a consultas e à elaboração de decisões, essa participação é limitada, ao menos no que toca a cargos ligados ao sacerdócio.
Nos Estados Unidos e noutros países foi mal recebida esta decisão pontifícia. Não há dúvida que se falseia o problema se se reduz tudo a um problema de feminismo ou machismo, mas o debate existe. Cada dia há mais mulheres a estudar teologia, a dirigir instituições eclesiais, exercendo o apostolado, mas a sua participação continua limitada segundo a sua condição, mesmo num tempo em que as vocações sacerdotais escasseiam e a média de idade dos sacerdotes é muito alta.
[“História dos Papas”, Juan María Laboa Gallego, A Esfera dos Livros, Lisboa 2010, p. 449-459]

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«O apóstolo S. Pedro era casado, vivia em Cafarnaum e era pescador no lago de Tiberíades, na Galileia. Num momento da sua vida encontrou-se com Cristo, ficou subjugado pela sua pessoa e pela sua doutrina, e a sua vida posterior ficou marcada por este acontecimento. Os bispos de Roma até ao actual, Bento XVI, sempre defenderam que são seus sucessores, que herdaram todas as atribuições que Cristo lhe concedeu e que mantêm a sua especial autoridade sobre a Igreja.» (…)

«As vidas dos papas não constituem a história do cristianismo, embora estejam localizadas dentro da mesma. A experiência religiosa cristã, continuamos a encontrá-la em Jerusalém, onde a maioria dos cristãos são pobres e marginais, sem poder, porque vivem em terra estranha, embora seja a sua. Ao passo que em Roma, misturada com uma história belíssima de martírio, santidade e generosidade, descobrimos a limitação das mediações, as misérias do poder e da ambição, a mesquinhez das inteligências, a força da rotina e do formalismo, a repugnância pela mudança. Às vezes pode dar a impressão de que em Jerusalém ficou a coroa de espinhos e em Roma a tiara.» (…)

«O protestante Ranke escreveu no prólogo à sua clássica História dos Papas: “Quão insignificante aparece um grande mortal perante a história universal!”» [da Introdução, p/ 9.11 - aconselha-se vivamente a leitura desta obra, que tem 548 páginas]

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Juan María Laboa Gallego é licenciado em Filosofia e Teologia e doutor em História da Igreja pela Universidade Gregoriana de Roma. Foi professor durante quinze anos na faculdade de Ciências Políticas da Universidade Complutense e professor ordinário da Universidade de Comillas durante trinta anos. Foi professor convidado de diversas universidades europeias e americanas. Fundador e director da revista XX Siglos de Historia de la Iglesia, é autor de vários livros dos quais destacamos: La Larga Marcha de la Iglesia (1985), Atlas Histórico del Cristianismo (2000) e Atlas Histórico del Monacato (2003).