as grandes fortunas são suspeitas…
Durante onze anos, João, apodado de Crisóstomo («boca de ouro») pela sua eloquência, reúne em Antioquia uma multidão ávida de escutar suas pregações e catequeses baptismais. Nomeado bispo de Constantinopla no ano de 397, converte-se em defensor dos pobres e denuncia os açambarcadores.
Chega a suscitar a questão da origem das riquezas. Admite a honestidade de bens adquiridos pelo trabalho e pela criação de gado. Jacó recebera a recompensa dos seus esforços. Também Abraão fora enriquecido pelo próprio Deus.
Porém, a acumulação de bens procede muitas vezes da injustiça. De facto, no princípio Deus criou a terra para todos. Hoje, alguns possuem imensas propriedades ao passo que muitos outros não têm nada; e isto é inadmissível. João Crisóstomo reprova as fortunas consideráveis que não se ergueram com critérios justos, as quais se tornam impedimento para que o pobre possa, ao menos, possuir um pequeno lote de terra. Condena a propriedade que se baseia no roubo e não na bênção de Deus. Bem pelo contrário - dia a dia se renova a espoliação dos pobres.
Ambrósio, antigo governador de Milão, estava bem colocado para saber que era assim. Nomeado bispo, quando ainda era apenas catecúmeno, trata de começar a estudar para poder ensinar aos outros. Independente face ao poder, toma a defesa dos pequenos contra as imposições dos poderosos. O seu opúsculo Nabot, o pobre, comenta a passagem do 1º Livro dos Reis (cap. 21) - a história de Nabot assassinado pelo rei Acab, porque desejava possuir a sua vinha. O começo da obra dá o tom: «A história de Nabot é velha no tempo, mas também é uma história dos dias de hoje.» O Bispo de Milão socorre-se da escola de Basílio de Cesareia; inspira-se nele para descrever os apuros do pai de família que já não sabe que há-de vender primeiro para pagar as suas dívidas. [Ambrósio, Nabot, o pobre, 5, 21-24: PL 14,736-737]
Ambrósio defende aqueles que, apesar das suas posses muito escassas, atraem, mesmo assim, os olhares cobiçosos dos poderosos. Procura proteger os pequenos proprietários contra aqueles que acumulam terras e não se cansam de açambarcar.
Aos ricos deste mundo, o bispo de Milão recorda-lhes que, pelo contrário, deveriam repartir os seus recursos pelos pobres, já que não são mais do que administradores dos mesmos: «Não distribuis os vossos bens aos pobres – apenas retribuis aquilo que lhes pertence! Pois vós sois os únicos a aproveitarem-se daquilo que foi destinado ao uso de todos. A terra pertence a todos e não aos ricos…»
«Não vos contentais em possuir alguns bens úteis, como também enxotais os outros. Estais mais ocupados em despojar o pobre que com as vossas vantagens. Considerais uma injúria pessoal que o pobre possua alguma coisa que possa parecer digna de ser possuída pelo rico. Pensais que qualquer posse por estranhos é prejuízo vosso. Por que será que atraem tanto as riquezas da natureza? O mundo foi criado para todos e vós, os ricos, apesar de serdes um número pequeno, esforçai-vos por ficar com tudo.»
Ambrósio de Milão, Nabot, o pobre, Livro II
«Agrada-vos certificar-vos do pedigree da raça dos vossos cães como se de uma árvore genealógica de ricos se tratasse. Proclamais a nobre descendência dos vossos cavalos, como se se tratasse de cônsules… Agasalhais pedras e despojais seres humanos… Um homem pede-te um pão enquanto o teu cavalo terrinca freios de ouro.»
Ambrósio de Milão, Nabot, o pobre [13, 54-56: PL 14,748]
«Que irás responder ao juiz, tu que revestes a ouro as paredes e não vestes o ser humano? Tu, que adornas os cavalos e desprezas teu irmão coberto de farrapos? Tu, que deixas que apodreça o trigo e não alimentas os famintos? Tu, que enterras o ouro e abandonas o oprimido? (…)
«Diz-me: para que servem as camas de ouro e as mesas de prata, as liteiras e os carros de marfim, impedindo que as riquezas passem à casa dos pobres que, sem dúvida, se amontoam aos milhares à tua porta e te fazem ouvir suas vozes de miséria? Porém, negas-te a dar-lhes dizendo que te é impossível ajudar a todos quantos te pedem. Tua língua jura-o, mas tua mão te condena, pois, ainda que te cales, a tua mão proclama a tua mentira, iluminada pelos reflexos dos diamantes da tua bracelete. A quantos devedores teus poderias livrar com o valor da tua bracelete? Quantas casas em escombros tu poderias erguer com ela? Tua arca cheia de vestidos poderia cobrir a todo um povo que tirita de frio!, e tu atreves-te a despedir o pobre de mãos vazias sem temor do justo castigo do juiz. Não tiveste piedade – não se terá piedade para contigo. Não abriste as portas da tua casa – serás excluído do reino. Não deste do teu pão – não receberás a vida eterna.»
Basílio de Cesareia, Homilia 7 contra os ricos, 4