DOIS TRATADOS
PARA UM
GOLPE DE ESTADO EUROPEU
O povo português já vive um estado de estonteamento muito semelhante ao que acontece ao touro diante do ‘hombre de luces’ no fim da faena, naquelas touradas em que o animal, em breve, será apunhalado no cachaço antes de vergar de vez a espinha.
Bombardeado por hiper-repetíveis telejornais carregados de percentagens acerca de taxas de exportações, taxas de desemprego, défices vários, acompanhados de uma miríade de siglas (eurobonds, benchmarking, competitividade, procura agregada, custos de contexto, política monetária, política orçamental, AA, AME, CEIES, CPCS, MEE, TECG, regra de ouro, défice estrutural, revisão da Constituição, etc.), o bom povo português anda à roda ─ a classe média-baixa está prestes a desmaiar.
Portugal vive um cenário de angústia e, apesar de saber que todos o andam a tourear/tanguear, não consegue traduzir para uma língua prática aquilo que os políticos e os comentadores televisivos debitam. A única realidade palpável, e essa o povo português já consegue incorporar (há muito que, nos Fórum das manhãs radiofónicas, já não destila ódio aos beneficiários do Rendimento Mínimo…), aquilo que o povo português sente é que circula no ar uma brisa que lhe diz que, com toda a certeza!, e apesar de tudo o que já aconteceu, a sua vida vai piorar muitíssimo mais. Na feliz expressão de Costas Lapavitsas, professor de economia na School of Oriental and African Studies (SOAS), da Universidade de Londres, «os deuses começam por enlouquecer todos aqueles que desejam destruir». (‘Grécia, saída da crise, saída do euro’, Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Junho 2012)
Ao fim de mais de um ano a destilar medo, a construir cenários catastróficos (exemplo: não vai haver dinheiro para as reformas dos que hoje trabalham), e a despejar decálogos e mais decálogos de culpas sobre governos passados (Sócrates e as PPP’s, a Parque Escolar, o desperdício dum Estado gastador e ineficaz, etc.), é bem compreensível que o povo português se sinta triste, vulnerável, prestes a quebrar, e até deprimido. E conclua: de facto, Passos, Borges, Relvas, Álvaro SP e Gaspar têm razão ─ não há alternativa… e, sair do Euro, seria ainda pior, seria o fim! Estamos perdidos!!!
Do interior deste matagal semântico que nos cerca por todos os lados, elaborado por um discurso tecnocrático a que só uma elite muito restrita tem acesso, e onde preponderam figuras subitamente fleumáticas, (Bagão Félix, Marques Mendes, José Gomes Ferreira, Medina Carreira, etc.), é impossível deitar a cabeça de fora e procurar perceber porque é que, lá no alto, lá bem no alto! as copas das árvores baloiçam tanto (metáfora para o Conselho Europeu de 20:XI:2012, que interrompeu os trabalhos às 5h da noite sem acordo quanto ao novo resgate para a Grécia…). Até essa imagem ─ o baloiço dos ramos tocando os raios solares numa tarde de poente outonal ─ até isso pode ser pura ebriedade de difícil descodificação para o comum dos mortais ─ nem todos sabemos que é assim a aproximação dos tornados…
Acoado, ─ e usando uma célebre expressão bíblica, que condiz com a de «Portugal, o altar do mundo» há bem pouco tempo relembrada pelo Patriarca de Lisboa ─ o povo português caminha como ovelha muda para um matadouro travestido de altar sacrificial. Por causa dos seus «crimes» e «iniquidades», o povo português sente que é «levado ao matadouro»: sente-se «como uma ovelha emudecida nas mãos do tosquiador. Sem defesa, nem justiça, levaram-no à força.» (profeta Isaías 53:7-8)
Com o apagar da última luzinha europeia, que ainda fez erguer alguma esperança a alguns comentadores de fim de linha aprisionados na sua própria gaguez, ─ refiro-me à derrota de N. Sarkozy e à eleição François Hollande ─ o mundo português mergulhou de novo na escuridão da sua solidão! Escuridão reforçada pelo frágil resultado eleitoral nos EUA e corroborada aquando da estranhíssima atribuição do Prémio Nobel da Paz deste ano de 2012. Tentando vislumbrar a Europa, a estátua de Eiffel, luz da liberdade, fica longe e já nem para alumiar a Nova York de Barack chega. A Europa está amarrada ao seu leito de morte – Portugal definha e prepara-se para atravessar o inverno mais gelado.
Porque será que tudo está atado e tão bem atado, assim?
Como se tece tal trama tão bem tecida?
Rato algum roerá esta rede, a tempo?
Pacientemente, pé-ante-pé, abrigados pela cerração da noite mais negra das nossas vidas, os homens de cara tapada urdem sua teia, confiantes que não haverá volta atrás depois desta guerra de Tróia por eles programada. O desânimo é tanto que nem por sombras colocamos a hipótese Penélope, a que desfaz de noite o que o ‘crime anti-soberano’ e ‘a ausência de alternativa’ tecem de dia.
Dois Tratados mais ─ (clicar aqui) Mecanismo Europeu de Estabilidade [MEE] e (clicar aqui) Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e Governação [TECG] ─ acrescentam mais malhas à malha bem cerrada com que se agrilhoa a civilização que outrora foi mãe da insurreição, da democracia, da liberdade, da justiça, da solidariedade e da cidadania.
Sobre estes dois tratados, apresentarei em ANEXO (como link) a opinião de Raoul-Marc Jennar, do qual, neste blog, se editou já um outro texto (Clicar aqui: «Um Tratado vago com consequências claras»).
Mas, antes de passarmos à análise dos tratados, reproduzo as «Oito disposições principais» que o TECG inclui, aquilo que R.-M. J. designa por o «cadeado que tranca o acesso aos recursos públicos nacionais»…
1. Os orçamentos dos governos têm de ser equilibrados. São autorizados temporariamente défices devido a circunstâncias económicas excepcionais ou em períodos de recessão grave. Considera-se que esta regra está a ser respeitada se o défice estrutural não ultrapassar 0,5%, segundo as estimativas da Comissão Europeia. A título de exemplo, segundo o Tribunal de Contas, em 2010, o défice estrutural de França era de 5% do produto interno bruto (PIB), ou seja, 96,55 mil milhões de euros. Diminuí-lo até aos 0,5% implicaria uma poupança de 87 mil milhões de euros.
2. Os Estados terão de introduzir esta regra, chamada «de ouro», na sua Constituição e implantar um mecanismo automático de correcção «que não será sujeito a deliberação parlamentar». Deixarão de ser os representantes eleitos da nação e passará a ser o Conselho Constitucional a zelar pela conformidade dos orçamentos com esta nova regra.
3. Quando a dívida pública ultrapassa 60% do PIB, os Estados têm de proceder à sua reabsorção, em três anos, ao ritmo de um vigésimo por ano. No caso da França, cuja dívida atinge 87% do PIB, isso significa que deverá reduzir a diferença entre 87% e 60% em um vigésimo por ano, ou seja, 1,35% do PIB, o que representa, sem qualquer crescimento, 26 mil milhões de euros.
4. Quando um Estado regista défices que ultrapassam as regras instituídas (3% do PIB de défice, 60% do PIB de dívida), tem de apresentar à Comissão e ao Conselho um programa de reformas estruturais obrigatórias.
5. Os Estados têm de submeter à Comissão Europeia e ao Conselho os seus projectos nacionais de emissão da dívida.
6. Quando a Comissão afirma que um Estado está em situação de infracção, as sanções propostas são automáticas. Os outros Estados têm de as apoiar, a menos que se forme uma maioria qualificada que se lhes oponha.
7. Qualquer Estado que considere que um outro Estado não cumpre as regras deste tratado pode apresentar queixa ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE). A Comissão designará o ou os Estados que devem ser levados pelos outros Estados a este tribunal.
8. Este tratado entrará em vigor quando doze dos vinte e cinco Estados signatários o ratifiquem, o mais tardar até 1 de Janeiro de 2013. (síntese de Raoul-Marc Jennar, in Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Junho 2012)
Se nada mudar, muito em breve estaremos todos enjaulados, peludos e bem enjaulados, uma espécie de evolução darwiniana às arrecuas... involução fantasmaticamente prevista por Teixeira de Pascoaes.
Há culpa e há culpados. Ao contrário das narrativas lixiviantes (um bom exemplo delas foi a intervenção do Dr. Guilherme de Oliveira Martins na Fundação António de Almeida, dia 20 Nov. 2012, 21h), ao contrário dessas narrativas lixiviantes, há políticas culpadas planeadas por homens públicos culpados. Não foram anjos: há nomes, sim. Não somos/fomos todos culpados, não. A História os julgará, sim. Ficarão para sempre inscritos no Livro da Morte, sim, por mais que isso custe ao católico Dr. Guilherme Oliveira Martins e quejandos.
O seu silêncio cúmplice ao longo deste já vasto percurso político das instâncias da União Europeia, o seu silêncio diante dos atropelos vários à soberania popular, a sua colaboração institucional com os governos nacionais identifica, com bastante rigor, culpa e culpados. O texto de Raoul-Marc Jennar, (que segue no link de acesso), liga mais umas quantas luzes acusadoras no coração da nossa noite de impotência. Para que morra de vez a narrativa lixiviante e a estátua da liberdade volte de novo a alumiar.
pb\
«Os europeus ainda mandam na Europa?»
«(...) A abolição do Estado de direito aparece de forma clara no tratado que institui o MEE (Mecanismo Europeu de Estabilidade). As decisões dos pesos-pesados desta sociedade de resgate entram imediatamente em vigor no direito internacional sem aprovação dos Parlamentos. Denominam-se governadores, como nos antigos regimes coloniais, e, tal como estes últimos, não têm justificações a dar à opinião pública.
«Em contrapartida, não podem comunicar qualquer informação. O que faz lembrar a Omertà [lei do silêncio] do código de honra da Máfia. Os nossos "padrinhos" estão isentos de controlo judiciário ou legal. E desfrutam de um privilégio que nem um chefe da Camorra [máfia napolitana] tem: imunidade penal absoluta (em conformidade com os artigos 32 a 35 do MEE).
«A espoliação política do cidadão começou com o euro, ou mesmo antes. Esta moeda é fruto de negócios políticos ilícitos que não tiveram em conta as condições económicas necessárias.(...)»
Hans Magnus Enzensberger
Der Hauptstadtbrief, Berlim, 12:X:2012.
in Courrier internacional - edição portuguesa, Novembro de 2012, p. 32.
[tradç. de Rita Azevedo]