UM
TRATADO VAGO
COM CONSEQUÊNCIAS
CLARAS
Depois
de terem ratificado o Tratado de Lisboa,
clone da «Constituição Europeia» rejeitada em 2005, os governos da Europa
passam à aprovação do Tratado de Estabilidade, Coordenação e Governação
(TECG). Uma operação que coloca as finanças públicas dos Estados sob tutela.
«Estou convencido que dentro de vinte
anos,
a
não se dar qualquer retrocesso na evolução política,
não haverá na Europa assembleias legislativas.» [Salazar, 1932]
Não se preocupem, trata-se de um texto puramente técnico!
Foi mais
ou menos nestes termos que Jean-Marc Ayrault
apresentou ao governo, a 19 de Setembro de 2012, o projecto de lei orgânica
relativa à condução das finanças públicas. Mas este texto, que visa pôr em
aplicação os dispositivos «obrigatórios e permanentes» do Tratado de
Estabilidade, Coordenação e Governação (TECG)[1], terá
pesadas consequências políticas e sociais. Com efeito, ele coloca o Parlamento
francês sob a tutela de organismos administrativos e financeiros, acelera o
empobrecimento do Estado e anuncia um ataque cerrado contra a protecção social.
Uma vez
mais, aplica-se o nefasto «método Monnet»[2], que
consiste em conferir competências políticas cada vez mais importantes sobre
sectores essenciais a instituições ditas técnicas e que escapam a qualquer
controlo democrático. Depois do Tratado de Roma
de 1957, depois do Acto Único de 1986, depois do Tratado de Maastricht de 1992 e do Tratado de
Lisboa de 2007, eis agora o quinto
acto do desmantelamento da democracia nos países europeus.
O TECG impõe «o equilíbrio das finanças
públicas» aos Estados que o tenham ratificado. Ora, o
conceito não é claro. Apoia-se numa avaliação do «défice estrutural» de
cada país. Segundo os termos do tratado, este irá
medir o endividamento de um país, sem contar com as causas
«conjunturais». Será, portanto, cortado, ao défice anual, a parte ligada às
crises e às «despesas excepcionais e legítimas do governo». Quanto ao sentido
dos termos «excepcionais» e «legítimos», não é dado qualquer esclarecimento. A
lei orgânica francesa, recusando assumir uma posição clara no duro debate sobre
a formulação, contenta-se em adoptá-la, colocando-se, assim, à mercê da
interpretação que for importa pela Comissão
Europeia, organismo encarregado, pelo próprio Tratado, de calcular os
défices estruturais dos diferentes Estados.
Em resumo:
o governo francês, desejoso de se pôr em conformidade com o TECG, apresenta um
projecto de lei orgânica destinado a assegurar que o país vai atingir
objectivos… que tem dificuldade em identificar. E fá-lo com entusiasmo suficiente para a
si mesmo proibir o fracasso: em caso de dificuldade, as leis de programação das
finanças públicas deverão, «pelo menos durante um período de três anos»,
definir uma «trajectória de esforço estrutural» que permita satisfazer as enigmáticas exigências do TECG.
É que o carácter vago da missão é
acompanhado pela rigorosa apresentação dos meios. Assim, a lei inclui três
partes: a aplicação da famosa regra de ouro[3]
e dos meios de a pôr em aplicação; a criação de um Alto Conselho das Finanças Públicas
(ACFP);
o estabelecimento de um «mecanismo de correcção automática», destinado
a reabsorver as diferenças entre previsões orçamentais e resultados do ano. Em
suma, um «esforço estrutural» dissecado de forma precisa para cada
administração pública, com definição de objectivos e análise dos resultados
obtidos em termos de receitas e de despesas. Todos os detalhes devem ser submetidos à
apreciação da Comissão Europeia e do ACFP.
Preparar a opinião pública
Neste aspecto, o artigo 3 do projecto vai muito longe: o «esforço» dirá respeito
às colectividades territoriais, mas também a «despesas dos regimes obrigatórios
de base da segurança
social, bem como ao objectivo nacional de despesas com a saúde destes
regimes no seu conjunto». Identificando antecipadamente as áreas a cortar, o Ministério da
Economia francês ultrapassa as expectativas do TECG, que não exige a
identificação de alvos permanentes. Estranho acaso: a lei orgânica fala de
protecção social exactamente quando o Conselho de Análise Económica sublinha o
atraso de Paris em relação a Berlim neste domínio e quando o Tribunal de Contas
publica um relatório que denuncia o custo do sistema francês de pensões.
Enquanto a comunicação social dominante detalha os «despesismos» dos
reformados, a
opinião pública é preparada, a pouco e pouco, para as reformas «necessárias».
Na audiência de reabertura do ano no
Tribunal de Contas, a 7 de Setembro último, o próprio presidente François Hollande
anunciou a criação do ACFP, peça fundamental do dispositivo. A sua missão será
aprovar as previsões macroeconómicas que sustentam as leis das finanças (que
definem o orçamento do Estado), bem como o financiamento da segurança social. Irá avaliar o
respeito pelos objectivos fixados, a «trajectória do esforço estrutural», a
necessidade de desencadear os «mecanismos de correcção» e as «circunstâncias
excepcionais» invocadas pelo governo. O ACFP,
instalado junto do Tribunal de Contas, será
composto por um Conselho de Previsão Macroeconómica
e por um Conselho Orçamental cujos membros
serão designados pelo presidente da República após parecer das comissões
competentes do Parlamento e pelos presidentes das assembleias parlamentares.
Estes conselheiros,
não exoneráveis, serão nomeados por seis anos e o seu mandato não
será renovável.
«Puramente técnico»?
Raramente uma peça legal terá
contribuído tanto para o desmantelamento das instituições democráticas. Dotado
de poderes reais, o ACFP vai ser
erigido em árbitro das escolhas políticas.
As grandes orientações económicas e sociais terão de se moldar aos
constrangimentos determinados por outros que não os
eleitos pelo povo.
Rótulos das garrafas: «Constituição Europeia 2004» e «Tratado de Lisboa 2007» |
Esperávamos que o Conselho
Constitucional – obrigatoriamente consultado – recordasse que a livre administração
das colectividades locais é um princípio constitucional (artigo 72).
Mas será que ainda é de esperar que esta instância
proteja a Constituição?
Em suma, irão os limites
do défice estrutural autorizado cercear os investimentos públicos e,
com eles, os horizontes do voluntarismo político expressos no acesso universal à educação, à saúde, à cultura, à habitação,
aos transportes, à água e à energia? «Sim, mas sem gastar um euro!», dir-se-á.
E
o que irá acontecer à transição ecológica e à luta contra as alterações climáticas? A obrigação de atingir o equilíbrio
financeiro vai encerrar, na prática, o caminho do crédito, que é uma outra forma de fazer com que a acção pública desapareça
em benefício do sector privado.
Raoul-Marc Jennar
Ensaísta
in
Le Monde Diplomatique
– edição portuguesa, Outubro de 2012, p. 13.
[1]
Debatido na Assembleia Nacional francesa a partir de 2 de Outubro, a sua
adopção não parece oferecer quaisquer dúvidas no momento em que redigimos.
[2] Jean
Monnet, comissário-geral do Plano em 1950, defendia o chamado método dos
«pequenos passos» ou da engrenagem que teria como consequência,
entre outras, um certo segredo e a ausência de debate político.
[3] Raoul-Marc
Jennar, «Dois tratados para um golpe de Estado europeu»,
Le Monde Diplomatique – edição portuguesa,
Junho de 2012, «DOSSIÊ: CRISE NA EUROPA», p.
16-17. O Tratado, assinado a 1 de Março de 2012, por 25 dos 27 Estados-membros,
inclui 8
Disposições principais, que este artigo de R.-M. J. sintetiza numa
’caixa’. No ponto §2, refere: «Deixarão de ser os representantes eleitos da nação
e passará a ser o Conselho Constitucional a zelar pela conformidade dos orçamentos com
esta nova regra.»