teologia para leigos

8 de novembro de 2012

A DEMOCRACIA «SITIADA» PELOS MERCADOS

UM TRATADO VAGO
COM CONSEQUÊNCIAS CLARAS





Depois de terem ratificado o Tratado de Lisboa, clone da «Constituição Europeia» rejeitada em 2005, os governos da Europa passam à aprovação do Tratado de Estabilidade, Coordenação e Governação (TECG). Uma operação que coloca as finanças públicas dos Estados sob tutela.



«Estou convencido que dentro de vinte anos,
a não se dar qualquer retrocesso na evolução política,
não haverá na Europa assembleias legislativas.» [Salazar, 1932]




Não se preocupem, trata-se de um texto puramente técnico!
Foi mais ou menos nestes termos que Jean-Marc Ayrault apresentou ao governo, a 19 de Setembro de 2012, o projecto de lei orgânica relativa à condução das finanças públicas. Mas este texto, que visa pôr em aplicação os dispositivos «obrigatórios e permanentes» do Tratado de Estabilidade, Coordenação e Governação (TECG)[1], terá pesadas consequências políticas e sociais. Com efeito, ele coloca o Parlamento francês sob a tutela de organismos administrativos e financeiros, acelera o empobrecimento do Estado e anuncia um ataque cerrado contra a protecção social.

Uma vez mais, aplica-se o nefasto «método Monnet»[2], que consiste em conferir competências políticas cada vez mais importantes sobre sectores essenciais a instituições ditas técnicas e que escapam a qualquer controlo democrático. Depois do Tratado de Roma de 1957, depois do Acto Único de 1986, depois do Tratado de Maastricht de 1992 e do Tratado de Lisboa de 2007, eis agora o quinto acto do desmantelamento da democracia nos países europeus.

O TECG impõe «o equilíbrio das finanças públicas» aos Estados que o tenham ratificado. Ora, o conceito não é claro. Apoia-se numa avaliação do «défice estrutural» de cada país. Segundo os termos do tratado, este irá medir o endividamento de um país, sem contar com as causas «conjunturais». Será, portanto, cortado, ao défice anual, a parte ligada às crises e às «despesas excepcionais e legítimas do governo». Quanto ao sentido dos termos «excepcionais» e «legítimos», não é dado qualquer esclarecimento. A lei orgânica francesa, recusando assumir uma posição clara no duro debate sobre a formulação, contenta-se em adoptá-la, colocando-se, assim, à mercê da interpretação que for importa pela Comissão Europeia, organismo encarregado, pelo próprio Tratado, de calcular os défices estruturais dos diferentes Estados.

Em resumo: o governo francês, desejoso de se pôr em conformidade com o TECG, apresenta um projecto de lei orgânica destinado a assegurar que o país vai atingir objectivos… que tem dificuldade em identificar. E fá-lo com entusiasmo suficiente para a si mesmo proibir o fracasso: em caso de dificuldade, as leis de programação das finanças públicas deverão, «pelo menos durante um período de três anos», definir uma «trajectória de esforço estrutural» que permita satisfazer as enigmáticas exigências do TECG.

É que o carácter vago da missão é acompanhado pela rigorosa  apresentação dos meios. Assim, a lei inclui três partes: a aplicação da famosa regra de ouro[3] e dos meios de a pôr em aplicação; a criação de um Alto Conselho das Finanças Públicas (ACFP); o estabelecimento de um «mecanismo de correcção automática», destinado a reabsorver as diferenças entre previsões orçamentais e resultados do ano. Em suma, um «esforço estrutural» dissecado de forma precisa para cada administração pública, com definição de objectivos e análise dos resultados obtidos em termos de receitas e de despesas. Todos os detalhes devem ser submetidos à apreciação da Comissão Europeia e do ACFP.






Preparar a opinião pública

Neste aspecto, o artigo 3 do projecto vai muito longe: o «esforço» dirá respeito às colectividades territoriais, mas também a «despesas dos regimes obrigatórios de base da segurança social, bem como ao objectivo nacional de despesas com a saúde destes regimes no seu conjunto». Identificando antecipadamente as áreas a cortar, o Ministério da Economia francês ultrapassa as expectativas do TECG, que não exige a identificação de alvos permanentes. Estranho acaso: a lei orgânica fala de protecção social exactamente quando o Conselho de Análise Económica sublinha o atraso de Paris em relação a Berlim neste domínio e quando o Tribunal de Contas publica um relatório que denuncia o custo do sistema francês de pensões. Enquanto a comunicação social dominante detalha os «despesismos» dos reformados, a opinião pública é preparada, a pouco e pouco, para as reformas «necessárias».

Na audiência de reabertura do ano no Tribunal de Contas, a 7 de Setembro último, o próprio presidente François Hollande anunciou a criação do ACFP, peça fundamental do dispositivo. A sua missão será aprovar as previsões macroeconómicas que sustentam as leis das finanças (que definem o orçamento do Estado), bem como o financiamento da segurança social. Irá avaliar o respeito pelos objectivos fixados, a «trajectória do esforço estrutural», a necessidade de desencadear os «mecanismos de correcção» e as «circunstâncias excepcionais» invocadas pelo governo. O ACFP, instalado junto do Tribunal de Contas, será composto por um Conselho de Previsão Macroeconómica e por um Conselho Orçamental cujos membros serão designados pelo presidente da República após parecer das comissões competentes do Parlamento e pelos presidentes das assembleias parlamentares. Estes conselheiros, não exoneráveis, serão nomeados por seis anos e o seu mandato não será renovável.

«Puramente técnico»?
Raramente uma peça legal terá contribuído tanto para o desmantelamento das instituições democráticas. Dotado de poderes reais, o ACFP vai ser erigido em árbitro das escolhas políticas. As grandes orientações económicas e sociais terão de se moldar aos constrangimentos determinados por outros que não os eleitos pelo povo.



Rótulos das garrafas: «Constituição Europeia 2004» e «Tratado de Lisboa 2007»

 Esperávamos que o Conselho Constitucional – obrigatoriamente consultado – recordasse que a livre administração das colectividades locais é um princípio constitucional (artigo 72). Mas será que ainda é de esperar que esta instância proteja a Constituição?

Em suma, irão os limites do défice estrutural autorizado cercear os investimentos públicos e, com eles, os horizontes do voluntarismo político expressos no acesso universal à educação, à saúde, à cultura, à habitação, aos transportes, à água e à energia? «Sim, mas sem gastar um euro!», dir-se-á.

E o que irá acontecer à transição ecológica e à luta contra as alterações climáticas? A obrigação de atingir o equilíbrio financeiro vai encerrar, na prática, o caminho do crédito, que é uma outra forma de fazer com que a acção pública desapareça em benefício do sector privado.

Raoul-Marc Jennar
Ensaísta

in Le Monde Diplomatique – edição portuguesa, Outubro de 2012, p. 13.





[1] Debatido na Assembleia Nacional francesa a partir de 2 de Outubro, a sua adopção não parece oferecer quaisquer dúvidas no momento em que redigimos.
[2] Jean Monnet, comissário-geral do Plano em 1950, defendia o chamado método dos «pequenos passos» ou da engrenagem que teria como consequência, entre outras, um certo segredo e a ausência de debate político.
[3] Raoul-Marc Jennar, «Dois tratados para um golpe de Estado europeu», Le Monde Diplomatique – edição portuguesa, Junho de 2012, «DOSSIÊ: CRISE NA EUROPA», p. 16-17. O Tratado, assinado a 1 de Março de 2012, por 25 dos 27 Estados-membros, inclui 8 Disposições principais, que este artigo de R.-M. J. sintetiza numa ’caixa’. No ponto §2, refere: «Deixarão de ser os representantes eleitos da nação e passará a ser o Conselho Constitucional a zelar pela conformidade dos orçamentos com esta nova regra.»