A democracia nunca é excessiva
- não há limites para a democracia… só para o autoritarismo!
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Assembleia Constituinte_1975 |
1.Cédric Durand e Razmig Keucheyan, dois professores universitários parisienses (respectivamente, de economia na Univ. Paris XIII e de sociologia na Univ. Paris IV-Sorbonne) afirmam que, apesar da atribuição do Prémio Nobel da Paz à União Europeia no passado dia 12 de Outubro de 2012, «o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia de Bruxelas estão a levar a cabo uma guerra orçamental contra vários países membros» dessa mesma União. A actuação destas instituições europeias assenta as suas bases, pacientemente erguidas, num «regime político autoritário susceptível de suspender os procedimentos democráticos invocando a urgência económica ou financeira». Tal actuação «reduz à condição de quase protectorados os países que se encontram sujeitos a programas de assistência».
E explicam porquê.
.«Governos eleitos obrigados a demitirem-se e a serem substituídos por tecnocratas sem legitimidade democrática;
.preeminência de instituições supostamente «neutras», como o BCE;
.apagamento do papel do Parlamento Europeu, cujo presidente, o social-democrata alemão Martin Schulz, em vão tenta fazer reconhecer o seu papel;
.anulação de referendos;
.intrusões do sector privado nas tomadas de decisões políticas…»
E concluem: «Desde a sua origem, o projecto europeu inscreve-se nessa lógica de pôr os povos à distância.»
2.O professor universitário, António Carlos dos Santos, analisa «a política fiscal» contida na Proposta de Lei de Orçamento do Estado para 2013 (POE 2013) em debate no Parlamento português. No último capítulo, «Avaliação da constitucionalidade das medidas fiscais» (os dois outros capítulos são: «Apreciação político-ideológica» e «Avaliação do quadro macroeconómico»), diz:
«Mas, talvez mais grave que isso é o facto de entrarmos num terreno em que a tributação pode ser confiscatória, por estar para além da capacidade contributiva e não ser conforme ao princípio da proporcionalidade, facto aliás, acentuado pela diminuição/ eliminação das deduções à colecta, a ponto de poder pôr em causa as necessidades do agregado familiar. É, aliás, o que, com santa ingenuidade, o próprio relatório da POE 2012 confessa quando, no intuito de defender o aumento de progressividade do IRS nos novos escalões, diz que a estrutura destes escalões «foi desenhada de modo a que o esforço contributivo cresça mais depressa do que a capacidade contributiva».
«Ora, pagar impostos acima da capacidade contributiva, tem um nome: confisco. E esta é uma fronteira que um Estado de direito não pode ultrapassar.
3.É, pois, legítimo interrogar-nos: estamos perante insanidade governamental, incompetência ou premeditação política, ideológica?
4.António Manuel Hespanha e Teresa Pizarro Beleza (professor e professora catedráticos de Direito, sendo a prof.ª Teresa P. Beleza Directora da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa) analisam as actuais relações da Política com o Direito Constitucional. É deste trabalho que retiramos os excertos, que se seguem.
«A sujeição da política à Constituição e ao direito tem sido ultimamente posta em causa, quer pelos (liberais) que crêem que o direito se reduz aos equilíbrios espontâneos de uma comunidade política que [eles] reduzem ao «mercado», quer pelos (realistas) que acham que, perante as necessidades e as urgências, a Constituição e o direito constituem entraves escandalosos às medidas que se alega serem realmente indispensáveis.» (…)
«Mesmo o argumento aparentemente final de que “não há dinheiro” para cumprir a Constituição é falacioso. Dinheiro há sempre, para umas coisas ou para outras. Se não há para umas, é porque está destinado a outras. Esta escolha entre “umas” e “outras” é o espaço da política.» (…)
«Defender que a Constituição paralisa a política,
- porque garante a igualdade ou a proporcionalidade dos encargos e sacrifícios de cada um,
- porque salvaguarda os direitos adquiridos,
- porque reserva ao Parlamento a decisão sobre impostos e encargos semelhantes,
- porque preserva a independência nacional perante ingerências externas,
é propor um regime político semelhante aos que existiam antes das revoluções democráticas ou nas ditaduras contemporâneas. Como o Estado Novo, em que, apesar de tudo, se mantiveram algumas garantias formais, frequentemente ignoradas na prática. Mesmo no auge da Guerra Colonial, o estado de excepção ou de emergência nunca foi declarado, nem formalmente, nem desta forma extra-constitucional de «ditadura financeira» em que agora se entra…
«Depois da Revolução de 1974, a Constituição configurou um Estado social e democrático de Direito, que ainda hoje mantém uma lógica de direitos políticos, civis, económicos, culturais e sociais que honraram a Declaração Universal em que se inspirou e os Pactos Internacionais de direitos que consolidou na ordem interna. Substancialmente, o regime político que emergiu da democracia exclui em absoluto processos de governação ditatorial, ou seja, regimes em que quem governa possa tratar arbitrariamente os governados, confiscar os seus bens, impor-lhes tributos não consentidos, distribuir arbitrariamente os benefícios, sujeitá-los a um estatuto de tipo colonial.»
«Por isso é que, nesta altura, é necessário voltar às coisas mais básicas das ideias políticas ocidentais e defender que faz absolutamente sentido que
- por cima das vontades das pessoas, dos grupos e dos governos,
- por cima das concepções que cada um tenha acerca daquilo que é indispensável, urgente, vantajoso,
haja princípios e processos a que mesmo os mais fortes, mesmo as maiorias, mesmo os mais iluminados e os super-dotados, tenham que se sujeitar. E que ─ como esta ideia não é auto-executável ─ faz perfeito sentido, tanto a garantia do cumprimento da Constituição, como a existência de órgãos de vigilância constitucional independentes das maiorias parlamentares.»(…)
«O que estes improvisados reformadores constitucionais têm proposto não se limita, de facto, a alterar meros tecnicismos constitucionais ou mesmo as secções “políticas” da Constituição, como a tendencial gratuidade dos serviços nacionais de saúde ou de educação, as garantias dos direitos dos trabalhadores, as exigências de protecção da infância, da juventude, ou da deficiência. Não. O que eles têm atacado são coisas tão fundamentais como o primado do direito sobre a mera oportunidade, a natureza constitucional da Constituição, o respeito pelos direitos sociais, laborais e patrimoniais adquiridos, a igualdade de tratamento dos cidadãos e das situações jurídicas. Ao mesmo tempo que atacam o Tribunal Constitucional como um órgão cuja liberdade de opinião se basearia na irresponsabilidade de quem não tem de governar.»
«Um destes princípios constitucionais definidos como particularmente invioláveis foi o da garantia dos direitos adquiridos. O acórdão do Tribunal Constitucional evoca-o claramente na discussão acerca da possibilidade de reduzir salários, reformas ou pensões sociais. É este princípio que consagra a propriedade de cada um, a validade dos contratos livres e legalmente estabelecidos, a proibição do confisco, o princípio da legalidade dos impostos, o direito às prestações públicas de natureza contratual. Enfim, coisas básicas, sem as quais dificilmente se concebe que se possa viver numa sociedade civilizada. Que os salários contratados ou as pensões ─ em que os pensionistas até já pagaram a sua parte ─ sejam direitos adquiridos é algo que poucos ousam discutir. Sobretudo quando, por outro lado, defendem a intangibilidade de outros rendimentos também pagos pelo Estado a particulares, em virtude de outros tipos de contratos (como as parcerias, as concessões, os contratos de compensação de riscos ou de prestações de serviço público).» (…)
«Realmente, se se enveredasse por esta via da violação de direitos em nome da extrema necessidade, haveria três coisas que teriam sempre que ser claramente demonstradas:
(1) que a necessidade era tão extrema que justificava medidas também extremas;
(2) que essas medidas iam resolver o problema;
(3) e, que não havia medidas alternativas.
Provar isto cabalmente é muito mais do que repetir, com cara compungida, as litanias que ouvimos todos os dias sobre a inevitabilidade da política de austeridade que tem sido adoptada.» (…)
«Sem o princípio da igualdade, desaparece o Estado constitucional. (…)
«A igualdade é um princípio universal, que se aplica a todos os sacrifícios. Ou seja, se estamos em guerra, todos têm de contribuir para esta guerra de todos. Distribuindo o sacrifício, por igual, por todos os rendimentos, de modo a ofender minimamente cada um deles: salários, lucros de empresas, dividendos distribuídos, remunerações de parcerias público-privadas (PPP), ganhos de mais-valias, rendimentos exportados para paraísos fiscais, activos de grandes fortunas, consumos sumptuários, juros de credores, etc. Para não falar da enormidade da fraude fiscal e da cada vez mais florescente economia paralela. Se a uns se impõem finanças de guerra, têm de se impor igualmente a todos. Desta realização do princípio da igualdade pouco se fala, apesar de ela apontar para soluções muito mais justas, economicamente mais razoáveis e muito mais adequadas ao objectivo de suster a crise.»
«A tarefa do Tribunal Constitucional é bastante difícil, sobretudo quando se cobre o país de um fogo cerrado de medos e de ameaças catastróficas. No entanto, perante uma governação leviana, democraticamente deslegitimada pela violação contínua das promessas eleitorais mais centrais, e perante o seguidismo da maioria parlamentar, só parece restarem duas formas de pôr termo ao experimentalismo, à incompetência e à teimosia de um governo que esbraceja para provar que vive: ou o veto político do presidente da República ou a cassação constitucional.» (…)
E, para terminar, os autores concluem que, caso o Tribunal Constitucional falhe na sua função de garante da ordem constitucional, «sela a sua inutilidade no nosso sistema político-constitucional, transformando-se de um contra-peso ao voluntarismo tenaz das maiorias num reforço inesperado de maiorias de vocação autoritária.
«Teríamos, então, mais do que algum partido alguma vez pediu entre nós: “um Governo, um Parlamento, um Presidente e um Tribunal Constitucional”». [António Manuel Hespanha e Teresa Pizarro Beleza, «Sair da crise sem sair da cultura constitucional», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Novembro de 2012, pp.6-8]
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