Há 50 anos - 11:OUT:1962
Abertura Solene do Concílio Ecuménico Vaticano II
LEIGOS E CLÉRIGOS
Papa João Paulo II admoesta padre Ernesto Cardenal (Nicarágua) |
«(…) Segundo a linguagem que o Concílio utiliza, quando fala de «secular» está a falar de «assuntos temporais» (res temporales), expressão que se repete duas vezes no mesmo contexto (LG 31, 2), ou de «assuntos profanos» (prophanis disciplinis) (LG 36, 2).
No fundo, esta forma de falar quer dizer que, no mundo, existem duas categorias de coisas e de situações, ou, se se quiser, dois tipos de assuntos. Por um lado, estão os assuntos «temporais» e «profanos», por outro, estão os assuntos «eternos» ou «sagrados». O Concílio Vaticano II não usou esta expressão, tal e qual, mas que o dá a entender, dá. É com este tipo de distinções que se explica e justifica que «o próprio e peculiar» dos leigos seja «o secular», isto é, «o temporal» e «o profano». Ao passo que, aquilo que caracteriza os sacerdotes, é o facto de «eles serem ordenados à perfeição da vida através das acções sagradas que realizam cada dia» (per ipsas enim cotidianas sacras actiones… ad vitæ perfectionem ordinantur) (PO 12, 3). A divisão está claramente estabelecida. Aos sacerdotes está destinado «o sagrado». Aos seculares, pelo contrário, «o secular, o profano». É por isso que o Concílio disse que «os leigos são chamados, particularmente, a tornar presente e operante a Igreja nos lugares e nas condições onde ela não pode ser sal da terra a não ser através deles» (in eis locis et rerum adiunctis ubi ipsa nonnisi pêro eos sal terræ evadere potest) (LG 33, 2). Isto é, existem lugares e condições onde somente os seculares podem tornar a Igreja presente. Portanto, nesses sítios, e nessas condições os clérigos não podem intervir.
(…)
«É do conhecimento geral os problemas que tiveram os sacerdotes que aceitaram ser ministros no governo sandinista da Nicarágua. A fotografia do Papa João Paulo II, de dedo espetado, admoestando o padre Ernesto Cardenal deu a volta ao mundo. O seu irmão, Fernando, foi expulso da Companhia de Jesus após pressões do Vaticano. Outro tanto aconteceu ao presidente Aristide, no Haiti, um sacerdote salesiano que foi eleito democraticamente pelo povo e que, pouco depois, foi deposto por um golpe de Estado organizado pelos militares. Para surpresa nossa, o Vaticano apressou-se a reconhecer o governo dos golpistas quando nenhum país em todo o mundo o reconheceu. Como se vê, a hierarquia eclesiástica não tolera que os sacerdotes aceitem actividades «seculares», como é o caso da acção política. Mas, se quisermos levar a sério esta postura, teremos que perguntar porquê os núncios da Santa Sé podem aceitar ser decanos do corpo diplomático em inúmeros países. E, radicalizando, também teríamos que nos interrogar porquê o Papa, de facto, aceita ser um Chefe de Estado a quem são tributadas honras equivalentes a esse estatuto político quando visita países por esse mundo fora.
Ao reconhecer estes factos, torna-se difícil evitar a suspeita de que o governo da Igreja católica quer, a todo o custo, manter e salvaguardar um determinado tipo de sacerdócio.»
(…)
«Uma outra questão é o espinhoso problema da participação em cargos políticos. Nas Cortes Gerais da ditadura franquista, havia bispos, facto que não causou problemas em Roma. Mas , porquê é problema quando um sacerdote «se mete em política», no caso de ser um partido de esquerda e, pior, se aceita um cargo governamental com essa orientação política? Para fazer política ─ diz-se ─ estão aí os leigos! Evidentemente, entramos numa problemática que o Concílio Vaticano II não pretendeu resolver quando elaborou a sua teologia da Igreja. No entanto, é claro que a distinção entre leigos e clérigos, na Igreja, exprime questões teológicas por resolver. Ao mesmo tempo, coloca problemas práticos que necessitam ser articulados com mais coerência.
(…)
«Mas, rapidamente nos damos conta de que, neste ponto, tropeçamos com um problema que a teologia ainda não resolveu. Podemos formulá-lo através duma pergunta: do único sacerdócio de Cristo, derivam dois sacerdócios distintos? Esta pergunta, obviamente, arrasta outras que não é possível evitar: com que argumentação bíblica se fundamenta a distinção entre esses dois «sacerdócios»[1] essencialmente distintos? Existem, na tradição do primeiro milénio, argumentos para justificar tal distinção? Que entendimento acerca da Igreja subjaz a esta «ontologia» das diferenças, numa comunidade de iguais que o Concílio tão fortemente defendeu? Quais são as consequências práticas que daqui derivam para a vida duma comunidade cristã, no que se refere à celebração dos sacramentos, concretamente a celebração da eucaristia?
É claro que o Concílio não resolveu nem poderia (…)»
José Maria Castillo
‘La Iglesia que quiso el Concilio’
PPC, Madrid 22002, pp. 124-131.
[7 pp.]