teologia para leigos

11 de outubro de 2012

A MORDAÇA VATICANA [CASTILLO]

Há 50 anos - 11:OUT:1962
Abertura Solene do Concílio Ecuménico Vaticano II


CONCÍLIO: SOL DE POUCA DURA
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O Concílio Vaticano II:
− o facto em si mesmo


José Maria Castillo



A fim de valorizar o seu significado, quando falamos da importância do Concílio Vaticano II, o que primeiro devemos ter em conta é o facto de ele ter sido isso mesmo: um concílio. Muitos interrogar-se-ão sobre o que isso representa. Até, porque têm a ideia de que, no fim de contas, um concílio é uma reunião (mais ou menos solene) de «pessoas da Igreja», que se entretêm a deliberar sobre assuntos de religião… e é tudo! Porém, não é apenas isso, nem é, tampouco, desprovido de transcendência.

Com o objectivo de compreender melhor o que é a Igreja, para podermos fazer uma ideia do que significou o Concílio, temos que recordar que um século antes (1869-1870) se tinha celebrado o Concílio anterior, o Vaticano I. E aquilo a que este mais destaque deu foi ao poder autoritário do Papa como soberano absoluto. Deste modo, o Vaticano I queria afirmar, sobretudo, duas coisas: 1) estabelecer uma estreita relação entre soberania e infalibilidade; 2) afirmar uma profunda conexão entre poder magisterial e poder jurisdicional. Daqui resulta que (na óptica do Concílio Vaticano I), como o poder jurisdicional absoluto reside apenas no Papa, toda a autoridade e toda a verdade, na Igreja, é parte da autoridade e do poder da verdade do soberano pontífice. É certo que o Vaticano I pretendeu definir a autoridade que corresponde aos bispos, mas na realidade, por dificuldades alheias ao Concílio, esse assunto ficou por tratar. Sendo assim, a consequência inevitável foi a exaltação do poder papal ao ponto de, por exemplo, na mentalidade de Pio X (já no século XX), se poder falar, sem o menor rebuço, da identificação do Papa com Cristo: «Quando o Papa fala, é Cristo que fala; quando o Papa ensina, é Cristo que ensina». Esta maneira de pensar era a doutrina dominante nos seminários, nos livros de teologia e nos sermões ao povo cristão até aos dias em que se deu início aos trabalhos do Concílio Vaticano II.

Ora, se a Igreja estava assim organizada, para quê convocar um novo concílio? Não tinha (tem) o Papa já toda a autoridade de que, na Igreja, necessita para solucionar o que há que solucionar? A estas perguntas temos que dar toda a importância que elas merecem. Porque, por definição, um concílio ecuménico (foi esse o caso do Vaticano II) é uma reunião de todos os bispos do mundo. E, seguramente, é uma reunião em que se tratam de assuntos eclesiásticos de relevo, se tomam decisões e se promulgam orientações. Para além do mais, segundo a doutrina católica, os bispos, que num concílio ecuménico deliberam e tomam decisões em conjunto debaixo da direcção do Papa e em uníssono com ele, têm o poder supremo da Igreja e são infalíveis em todas as matérias que o concílio solenemente defina. Se é assim, o simples facto de se convocar um concílio não era, em si mesmo, um pôr em causa a doutrina anterior do poder único e supremo do Papa? É assim que se explica a surpresa e o receio que, em determinados católicos, católicos «à moda antiga», provocou a inesperada convocatória do Concílio.

Convém recordar que, nos começos, a Igreja funcionava e estava organizada de modo muito distinto daquele que acontecia no século XIX, concretamente naquilo que dizia respeito aos poderes do Papa e ao poder dos concílios. Por exemplo, o primeiro concílio ecuménico que ocorreu na Igreja, o de Niceia (ano 325), no qual se definiram coisas tão importantes como a divindade do Filho de Deus, esse concílio não foi nem convocado nem presidido pelo Papa: esse concílio foi convocado pelo imperador Constantino. Do Ocidente, estiveram presentes, para além do bispo de Córdova, Osio, três outros bispos e dois sacerdotes romanos representantes do bispo de Roma que naquele tempo não tinha o título de «Papa». Se pensarmos que o primeiro concílio ecuménico que houve na história da Igreja é tão válido como o último, o Concílio Vaticano II, a consequência lógica é: o poder, na Igreja, pode ser exercido de maneiras muito diversas. Actualmente, e tal como as coisas estão, sobretudo a partir do século XIX, o poder está centralizado no Papa, mas é do conhecimento geral que isso não ocorreu sempre assim e que a Igreja desses começos era tão verdadeira como a de hoje.

Isto vem a propósito de que, quando João XXIII convocou o Concílio, no fundo, o que ele fez foi afirmar algo que é muito importante para a Igreja: o Vaticano II foi um acontecimento que pôs em evidência a ideia de que o poder e o governo da Igreja não está concentrado apenas no Papa, mas que esse poder o Papa o tem partilhando-o com todos os bispos do mundo. E, como os bispos representam os fiéis cristãos a que cada bispo preside, de aí resulta uma maneira de entender a Igreja não só de cima (o Papa) para baixo (ou fiéis), mas de modo circular, na medida em que todos participamos e todos temos responsabilidade. Claro que não temos todos o mesmo papel e a mesma importância: cada um ocupa o seu lugar e tem o seu simbolismo. No entanto, um concílio sugere claramente que a Igreja é o resultado da participação de todos, apesar de haver sempre muto caminho a fazer até ao dia em que todos os fiéis cristãos tenham a possibilidade de dizer a sua palavra de modo a que a Igreja possa ser efectivamente a comunidade de todos os crentes, presididos pelo Papa e pelos bispos, de acordo com a estrutura que Deus quis para a sua Igreja.

Devemos reter o seguinte: João XXIII, ao convocar o Concílio, entre outras coisas, aquilo que fez foi dizer claramente que o Papa sozinho não era bastante para dirigir a Igreja. Estava convencido que a Igreja não era uma instituição jurídica na qual apenas manda o Papa e os restantes obedecem, mas que é uma grande comunidade de crentes em que, cada um no seu lugar, todos somos responsáveis pela totalidade do Corpo de Cristo, que é a Igreja. Ao mesmo tempo, um concílio oferece a oportunidade de mostrar claramente a unidade da Igreja, ao mesmo tempo que permite que se tome mais consciência do pluralismo dos bispos e do pluralismo das suas igrejas locais.

Não se pense, porém, que, a convocação por João XXIII do Concílio, foi partilhada sem dificuldade por todos os altos mandatários da Igreja. Sabe-se que, quando o cardeal Martini pediu veladamente a convocação de um novo concílio durante o Sínodo dos Bispos europeus em 1999, isso produziu um sério mal-estar em determinados meios da Cúria romana. Mas, mais importante do que isso, foi, muitos anos depois do Vaticano II, se ter legislado o actual Código de Direito Canónico. Segundo o cânon 338, o pontífice romano é o único que tem o direito de «convocar» o concílio, de o «presidir», de o «trasladar», de o «suspender», de o «dissolver», de «aprovar os seus decretos», de «determinar as questões a tratar» nele e até de «estabelecer o regulamento» a que todos se têm que submeter. Isto é: um concílio, segundo a legislação eclesiástica, (por mais ecuménico que seja) está totalmente nas mãos do Papa. Já disse que isto não acontecia nos primeiros séculos da Igreja. Inclusivamente, mais recentemente, o Concílio de Trento elaborou e aprovou os seus decretos como assembleia de bispos. E só depois disso, com o Concílio já encerrado, o próprio Concílio pediu para ser «confirmado» pelo Papa, ao que Pio IV anuiu com a bula Benedictus Deus (ano de 1564). Mais: os documentos do Vaticano II foram «aprovados, decretados e estabelecidos» pelo Papa Paulo VI «juntamente com os veneráveis Padres». Isto é, os documentos conciliares foram aprovados pelo Papa e pelos bispos conjuntamente. Na legislação eclesiástica estabelecida depois do Concílio, o que está escrito é que «compete exclusivamente ao Pontífice Romano… aprovar os decretos» (c. 338). É evidente a tendência para concentrar cada vez mais o poder nas mãos do Papa. O que quer dizer que o poder dos bispos e o poder do resto da Igreja está cada vez mais limitado. Que se tenha presente que o que aqui se trata é de uma medida disciplinar, e que outra coisa é o problema teológico de fundo que, a tudo isto, subjaz. (Mas dele falaremos mais adiante.)

José Maria Castillo

“La Iglesia que quiso el Concilio”
PPC, Madrid 2002.