Um programa para gerar pobres agradecidos?
[Quando o Estado recua nos apoios sociais, os direitos tornam-se ajudas e deixam de ser garantidos. Esse é o risco do recém-anunciado Programa de Emergência Social para apoiar um total de três milhões de portugueses, acreditam Villaverde Cabral e Boaventura Sousa Santos. O plano dá à Igreja Católica um papel que tinha no tempo de Salazar e é mais um passo para uma segurança social para pobres. Onde estão os protestos?, pergunta Villaverde Cabral]
Mulher urbana: "Quando tive o segundo filho, não tinha dinheiro para médicos. Fui à Misericórdia de Lisboa e lá fizeram todo o acompanhamento materno-infantil. Deram-me medicamentos que eles próprios faziam. Era tudo muito limpo, cheios de atenção. Quando faltava a uma consulta, telefonavam-me a perguntar porquê."
Mulher rural: "Lembro-me perfeitamente de ir à Casa do Povo, fingir que era pobre, pedinchar. Vivia-se da vontade de ajudar."
Os relatos são de duas mulheres sobre o Portugal de há 35 a 45 anos dados ao ‘Público-2’ (P_2). E retratam o tipo de protecção social até bem pouco antes do 25 de Abril de 1974.
Não passaram muitos anos, mas o exercício de memória é útil. Nomeadamente para avaliar o recém-anunciado Programa de Emergência Social do actual Governo. Os sociólogos ouvidos pelo P_2 notam um retorno à filosofia do Estado Novo, anterior à revolução de Abril de 1974.
No início do século XX, era escassa a intervenção pública na assistência social. Dependia sobretudo de entidades particulares, ligadas à Igreja Católica. O direito à assistência social surgiu na Constituição de 1911. Mas, como lembra a historiadora, Irene Flunser Pimentel, no artigo "A assistência social e familiar no Estado Novo nos anos 30 e 40", estava articulada com a repressão à mendicidade, que se manteve um crime até aos anos de 1960. O Estado Novo herdou um sistema de assistência incipiente e que não procurava atacar as causas da pobreza.
Em 1934, o I Congresso da União Nacional reforçou o papel "supletivo" do Estado. Era uma ajuda aos "anormais físicos, psíquicos e sociais". E o Estatuto da Assistência Social de 1944 só atribuiu ao Estado a missão de "suscitar, promover e sustentar" obras de assistência, se as privadas faltassem. Mas nunca deveria favorecer a "preguiça" ou a "pedinchice".
O diploma reflectia já as mudanças na Europa ao criticar as teorias do filantropismo do século XIX. Mas, em vez das estruturas de segurança social criadas em Inglaterra, nos anos 40, a partir do relatório Beveridge (1942) - que propôs a cobertura a toda a colectividade de protecção de riscos sociais, uma política de redistribuição de rendimento e o alargamento das coberturas já existentes (doença, maternidade, invalidez, velhice, morte e desemprego) -, o Estado Novo fixou, antes, que o esforço essencial assentava no espírito caridoso dos portugueses, uma das suas "qualidades naturais".
"Os dirigentes do regime e o próprio Salazar", sintetiza Flunser Pimentel, "atribuíam a miséria em Portugal a dois defeitos: a preguiça e a imprevidência. A assistência social, se fosse excessiva, acabava por estimular o "parasitismo"." Por isso, o Estado devia retirar-se de cena.
Para cobrir a "imprevidência", o Estado Novo criou, desde 1935, a Previdência Social. Cobria os riscos sociais e profissionais e era financiada por trabalhadores e patrões, numa lógica corporativa, de "associação" de interesses.
Mas a articulação com a assistência social funcionava mal e a previdência era ineficaz. Não abrangia o meio rural e só lentamente foi cobrindo a massa trabalhadora. Segundo Henrique Medina Carreira, em O Estado e a Segurança Social, em 1942, havia 77 mil beneficiários em 2,8 milhões de activos. Os pescadores tinham a «Casa dos Pescadores» e, no mundo rural, as «Casas do Povo», mas tudo numa lógica assistencial. Em 1960, dos 3,3 milhões de activos, só 879 mil eram abrangidos. O verdadeiro Estado social, nos moldes europeus, apenas nasceu a seguir ao 25 de Abril de 1974.
Retrocesso europeu
Mais recentemente e através da Lei de Bases da Segurança Social, o Estado passou a assumir - através de impostos - um conjunto de encargos com prestações sociais que não resultam das contribuições directas dos seus beneficiários (rendimento social de inserção, complementos solidário de idosos, complementos sociais, pensões não contributivas ou custos da acção social). As políticas sociais reforçaram o rendimento dos cidadãos e atenuaram a pobreza.
Mas o caminho europeu também sofreu revezes. Boaventura Sousa Santos lembra que a "questão social" foi tratada pelos Estados europeus "no seguimento de lutas sociais muito fortes e sempre perante o fantasma da alternativa comunista". E, "para isso, teve de "expropriar" os ricos (era assim que se dizia no virar do século XX) de uma pequena parte da sua riqueza através dos impostos progressivos".
A Segunda Guerra Mundial foi um momento de viragem. Os impostos progressivos e o intervencionismo do Estado legaram às sociedades ocidentais, nas décadas a seguir a 1945, algo importante, segundo o professor de História Tony Judt (1946-2010): "Segurança, prosperidade, serviços sociais e maior igualdade." Mas "à medida que os beneficiários envelheceram e a memória foi desaparecendo, a atracção dos états providenciaux diminuiu".
Os benefícios sociais tornaram-se "excessivos" para quem nunca beneficiou deles e só os teve de pagar. Um processo que se acentuou nos anos de 1980 e 1990. "Os regimes neoliberais da época tributaram selectivamente benefícios universais: uma reintrodução sub-reptícia da condição de recursos foi concebida para reduzir o entusiasmo da classe média por serviços sociais, agora vistos como benefício só para os muito pobres."
Dr. António Arnaut |
"Como tudo acontece tarde entre nós, este espaço só com Passos Coelho e a troika se abriu e se abriu escancaradamente", diz Boaventura. "Os partidos socialistas europeus começaram por desmobilizar ao acreditar que os direitos eram irreversíveis e, a partir da Terceira Via de Blair (Zapatero, Sócrates, etc.), começaram a aceitar que a perda de direitos era irreversível." E tudo parece resvalar para isso. "Houve apenas duas gerações de trabalhadores portugueses que, depois do 25 de Abril, puderam planear a sua vida", conclui Boaventura Sousa Santos. "A terceira geração é a geração à rasca."
Mas, em Portugal, em todo o processo, o sector particular nunca perdeu peso. Em 2010 - como o PÚBLICO noticiou no final da semana passada -, o sector particular era constituído por 7752 instituições, detinha 95 por cento dos equipamentos sociais nacionais (como creches, centros de dia ou lares de idosos), com 659 mil lugares. Desses, mais de 80 por cento eram de instituições particulares de solidariedade social (IPSS) e três quartos delas de inspiração religiosa, ligadas à Igreja Católica. A maioria funciona com acordos com a Segurança Social.
Lógica assistencialista
E foi a pensar nas IPSS que o Governo lançou o denominado Programa de Emergência Social (PES). Disse o ministro da Segurança Social, o centrista Pedro Mota Soares: "É um programa que não significa mais Estado, significa, sim, mais IPSS e melhor política social." O PES prevê a passagem de 40 equipamentos públicos para as IPSS. O plano deverá "vigorar, pelo menos, até Dezembro de 2014". E visa ajudar "muitas famílias" que "vivem hoje momentos difíceis".
Enquanto o Governo estuda reduzir o montante e a duração do subsídio de desemprego (para desincentivar o ócio), o ministro anuncia uma benesse de dez por cento do subsídio para os casais em que os dois cônjuges estejam desempregados. Vai criar-se um microcrédito para promover o empreendorismo dos endividados e dar-se-lhes-á formação para não se reendividarem.
O Governo quer reduzir as indemnizações laborais, mas o Ministério da Segurança Social estuda - para as famílias em dificuldades - "uma oportunidade baseada no valor do trabalho", porque "a sociedade portuguesa (...) não quer que o dinheiro dos seus impostos seja permeável à fraude e ao abuso". Aos desempregados de longa duração e beneficiários do rendimento social de inserção (RSI) vai dar-se "trabalho activo e solidário". Vai haver reencaminhamento de produtos alimentares não desejados dos restaurantes ou dos "excedentes" da produção agrícola. As autoridades sanitárias serão aí menos exigentes. O P2 procurou ouvir Isabel Jonet, do Banco Alimentar, mas sem sucesso.
As IPSS encarregar-se-ão de tudo coordenar, porque, segundo o Governo, são quem melhor conhece o terreno. Medicamentos quase fora de prazo vão para os necessitados. Um mercado à parte de arrendamento de casas desocupadas. Tarifas diferentes na electricidade, gás e transportes. (…)
Ao todo serão abrangidos três milhões de portugueses, dos quais um milhão de pensionistas. Prevê-se gastar 400 milhões de euros só este ano.
A origem dos pobres
Mas de onde vêm todos estes pobres?
A pobreza - cujo limiar é 60 por cento do rendimento monetário mediano (após transferências sociais) -tocava em 2008 cerca de 18 por cento da população. Mas, segundo os sociólogos, deverá ter-se agravado. Em parte essa realidade deve-se aos baixos níveis de rendimento. A uma década sem crescimento. Em 2008, o limiar de pobreza situava-se em 414 euros mensais, pouco abaixo do salário mínimo desse ano (426 euros). Nesse ano, o salário base médio foi de 891 euros e os ganhos salariais ficaram em 1063,4 euros.
Depois, a pobreza deve-se à relativa juventude da protecção social em Portugal e à ausência de descontos suficientes para se beneficiar de pensões condignas. Finalmente, deve-se, nos tempos mais próximos, ao corte de prestações sociais.
De 2008 até agora, o número de desempregados cresceu 65 por cento, mas as despesas com o subsídio de desemprego aumentaram 37 por cento. Em Junho de 2011, 55 por cento dos desempregados não tinham subsídio. Num ano, 595 mil crianças e jovens perderam o abono de família. O número de beneficiários do RSI passou de 75,9 mil, em Dezembro de 2004, para 323,4 mil, em Junho de 2011. E o valor médio da prestação baixou de 198,3 euros para 89,7.
O sistema fiscal tem sido ineficaz para cumprir a sua função de redistribuição. Os salários e as pensões pagaram 68 por cento da receita de IRS em 1998, mas em 2009 já correspondiam a 88 por cento. O IRS é um imposto progressivo (quem mais tem paga uma maior taxa de imposto), mas o Governo quer reduzir o seu número de escalões.
em memória da profª Leonor Vasconcelos, FEC-Porto |
"O problema do IRS não é tanto o dos escalões, mas sobretudo o das isenções e fugas mais ou menos consentidas, sobretudo em grupos como as profissões liberais, os comerciantes e os agricultores", observa Villaverde Cabral. A tendência tem sido a de excluir da tributação fontes de rendimento onde se concentra a riqueza. Pouco se fez para criar uma política de quebra do sigilo bancário, que contou sempre com a oposição dos partidos da actual maioria. Contudo, os beneficiários de apoios sociais são obrigados, desde 2010, a mostrar os seus bens e saldos bancários, para o Estado aferir se têm direito a apoios universais.
Nas últimas duas décadas, a evasão fiscal nas empresas manteve-se elevada e, ano após ano, acumulam-se prejuízos fiscais que, no futuro, irão reduzir o IRC a pagar pelas empresas.
A figura do Estado é pintada pelo actual Governo como alguém gordo e viciado, que não tem em conta como gasta os impostos de todos. Mas essa mensagem segue a par com a intenção de baixar o esforço fiscal e, como lembram Villaverde Cabral e Boaventura, de reduzir a dimensão da intervenção do Estado. E de a entregar a particulares.
"As chamadas IPSS", segundo Manuel Villaverde Cabral, "só distribuem aquilo que o Estado lhes dá; nem um tostão mais. A sua vantagem (será?) é terem custos laborais mais baixos do que os do Estado, mas isto faz parte do mesmo pacote de redução dos custos directos e indirectos do trabalho."
«Protecção Social» - foi para 2 gerações, apenas... |
Só que, quando isso acontece, algo muda. "Só o Estado garante direitos", defende Sousa Santos. "A diferença entre o Estado e os agentes privados é que a estes não é possível exigir o cumprimento dos direitos dos cidadãos e muito menos os direitos universais. Os agentes privados não actuam com base em critérios de cidadania; actuam com base em critérios de carência que não são sujeitos ao controlo democrático dos cidadãos e do Parlamento."
No caso português, "há um factor adicional de anti-cidadania: a presença maciça da Igreja Católica nas IPSS faz destas um instrumento de evangelização - bem conservadora, aliás - financiada por um Estado supostamente laico".
Villaverde Cabral contrapõe: "A ideia de a Igreja Católica voltar a ter o papel que tinha no tempo de Salazar já me preocupou mais, embora me custe no plano intelectual, depois de mais de 50 anos a lutar contra a influência perniciosa dessa instituição na sociedade portuguesa. Preocupam-me, e muito, os favores feitos pelo Estado - PS ou PSD/CDS, não são muito diferentes - às escolas, creches e infantários de marca católica, pois isso afecta a formação das crianças e adolescentes, quanto a mim, de forma negativa; sou a favor de uma instrução laica." Mas "o problema é que as necessidades, a este nível, são crescentes e vai ser preciso ir buscar recursos não se sabe onde".
A tendência, parece, é o Estado financiar-se nos próprios beneficiários do sistema, que dessa forma se inter-ajudam sem se aperceberem, mas cada vez com menos recursos. Isso conduzirá o Estado para um sistema minimal de protecção social. "O futuro das políticas sociais é, pois, a sua "minimização" e a assunção do resto das despesas (saúde e reforma) por parte de quem puder; quem não puder terá a assistência mínima", continua Villaverde Cabral. "Há mais do que o risco; há a certeza de que é isso que irá acontecer."
Boaventura é mais directo: "Não é um risco: é o objectivo central da política em curso." Cabral continua: "A igualdade está a fazer-se, sim, mas por baixo! Não é assim que pensávamos que seria, mas não deixa de ser uma forma de equidade!" Boaventura é pessimista: "Estamos perante um sistema de controlo social que existiu sempre e que o breve tempo histórico da social-democracia europeia interrompeu. Em Portugal, só começou com o 25 de Abril e está a terminar agora."
E Manuel Villaverde Cabral acrescenta quase irónico: E "onde estão os protestos?"
Por João Ramos de Almeida
«Público», 23:VIII:2011