teologia para leigos

14 de setembro de 2011

AS NOSSAS REFORMAS E O DISCURSO CATASTROFISTA

O Essencial sobre -  «A ECONOMIA DAS PENSÕES» [Angelus Novus]

Segurança social

Contra a economia do medo


Profª Mª Clara Murteira



Se há um tema socioeconómico em que a economia do medo é mais intensa nos seus investimentos dramáticos é a Segurança Social, em geral, e as pensões em particular. O objectivo do discurso catastrofista sobre a pensão pública deve ser claro e os interesses que dele beneficiam também: esfarelar o laço social (que tem no sistema de repartição pública uma das suas mais importantes expressões e na confiança social dos trabalhadores assalariados o seu cimento) e substituí-lo por esquemas privados de capitalização (intrinsecamente regressivos e promotores de um ensimesmamento possessivo, mas potencialmente lucrativos para quem tem poder nos mercados financeiros liberalizados, cuja expansão é, assim, politicamente organizada).

Perante o fracasso desta última instituição, perante a mediocridade de um regime macroeconómico assente na economia de casino, o discurso normativo sobre a bondade da capitalização é hoje muito mais problemático. Daí que só reste, aos neoliberais, um discurso determinista, assente em evoluções demográficas apresentadas como inelutáveis, que condenariam os sistemas públicos de repartição ao definhamento.

O contexto intelectual e político é, assim, ainda marcado por uma grande intoxicação da opinião pública, exposta à ciência oculta das previsões e vulnerabilizada por políticas públicas neoliberais que asseguram uma certa performatividade ao discurso catastrofista (criando a realidade, que este supostamente se limita a descrever, através, por exemplo, das reduções das contribuições para a Segurança Social), de reformas que reforçam o assistencialismo onde devia vigorar a solidariedade e, sobretudo, de políticas de austeridade que geram desemprego e definhamento da capacidade de produção.

Neste contexto adverso, o livro da economista Maria Clara Murteira, professora na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e estudiosa destes temas, é um muito bem-vindo contributo, sereno, informado e informativo sobre o tema das pensões, combinando factos e valores judiciosamente entrelaçados (…).

Os dois capítulos mais importantes do livro − a discussão comparativa dos sistemas de repartição e de capitalização, as duas formas radicalmente distintas de organizar as pensões, cuja essência é muito bem exposta e contrastada.

O primeiro sistema cria laço social e exprime, em variados graus, a solidariedade entre os trabalhadores que estão no activo e os trabalhadores que estão na reforma, em cada momento do tempo forjando um salário indirecto − a pensão − que é suportado pelas contribuições dos que estão no activo, os quais, por sua vez, confiam na continuidade do laço social. As potencialidades redistributivas entre trabalhadores que tiveram diferentes oportunidades laborais são bem vincadas.

O segundo esquema tem o condão de transformar os trabalhadores em especuladores passivos, expondo-os às oscilações dos mercados, eximindo-os de tomar o «outro» em consideração e nem sequer eliminando o impacto das variáveis macroeconómicas. De facto, colocando a questão firmemente no campo macroeconómico (da sociedade no seu conjunto), explica-se, de forma pedagógica como, por exemplo, a tendência para o envelhecimento da população tem impactos semelhantes (tudo o resto constante) nos dois sistemas, com a diferença crucial de que, no sistema por repartição, esta diferença é visível e as escolhas políticas, para confrontar o aumento do peso do consumo na riqueza gerada por parte dos reformados, também o são.

Aqui chegados, a autora consegue fazer-nos sair dos dois lados do «triângulo maldito», em que a sabedoria económica convencional nos quer colocar, ou seja, do aumento da idade de reforma e da redução do nível de vida dos reformados, defendendo a possibilidade de se aumentarem as contribuições (o terceiro lado), e, sobretudo, a possibilidade de sairmos deste triângulo através do aumento da produção e do emprego.

Estas últimas variáveis macroeconómicas foram propositadamente esquecidas no debate internacional, sobre as pensões, liderado pelos neoliberais consensos de Washington e de Bruxelas, e nas suas declinações políticas nacionais, como na última e regressiva reforma das pensões de 2007, bem descascada pela autora.

Sendo uma boa introdução à «economia das pensões», a autora não podia deixar de concluir com uma mensagem de economia política: «Os esquemas de pensões definem a parte da riqueza originada em cada período, que reverte a favor dos reformados. Essa é uma escolha de natureza política, que depende da repartição do rendimento entre lucros e salários e da repartição da massa salarial entre activos e reformados» (p. 118).

Será que isto sugere a possibilidade de um futuro livro sobre a economia política das pensões, talvez com uma perspectiva comparada dos resultados que os capitalismos aí geraram historicamente e do tipo de ideias e interesses, do conflito e da cooperação intelectuais e políticos, que os forjam?

João Rodrigues
Economista

Coluna «Escritos do Mês», Le monde diplomatique, Set 2011, p.8 (ed. portuguesa)