teologia para leigos

21 de setembro de 2011

A IGREJA DEVERÁ SER NAZARENA E NÃO DAVÍDICA

O mistério de Nazaré


Nazaré



Nos começos, os primeiros discípulos de Jesus foram identificados como «a seita dos nazarenos» [Act 24:5-6 «Nós verificámos que este homem (S. Paulo) é uma peste: fomenta discórdias entre todos os judeus do mundo inteiro e é cabecilha da seita dos Nazarenos. Até tentou profanar o Templo, e então, prendêmo-lo.»] e, só ao abrirem-se ao mundo helénico, para quem o nome Nazaré nada tinha a dizer, foram chamados «cristãos» [Act 11:25-26, «Então, Barnabé foi a Tarso procurar Saulo. Encontrou-o e levou-o para Antioquia. Durante um ano inteiro, mantiveram-se juntos nesta igreja e ensinaram muita gente. Foi em Antioquia que, pela primeira vez, os discípulos começaram a ser tratados pelo nome de «cristãos»].

Nazaré marcou toda a vida de Jesus. Até José, avisado em sonhos, retirou-se para a Galileia a fim de que se cumprisse o oráculo profético de que Jesus seria chamado «nazareno» [Mt 2:22b-23].

O que era e o que significava Nazaré para Jesus? E para nós, hoje?

Nazaré era um pequeno povoado na Galileia (entre 200 e 400 habitantes?) sem importância nenhuma, nunca citado no Antigo Testamento - casas de pedra ou de adobe, tecto de colmo misturado com barro, um pátio comum, piso de terra batida… Alguns dos seus habitantes viviam em furnas escavadas nas encostas. As casas podiam ter pátios comuns, compartilhados por várias famílias do mesmo clã. [como acontecia em algumas das nossas aldeias serranas do Montemuro e não só, facto que ainda hoje pode ser comprovado]

As investigações arqueológicas na Galileia do séc. I revelaram a existência de lagares de vinho, pedras de moinho para moer grão, mós de azeite… Digamos, era uma pobre aldeia de características rurais, sem ruas pavimentadas, nem edifícios públicos, sem inscrições, nem frescos decorativos, sem mosaicos nem artigos de luxo, como por exemplo, frascos de perfume, etc. [vide: E. A. Johnson, «Nuestra hermana de verdad»; Concilium 327 (Set. 2008), 11-19]

A população habitante tinha que pagar 90% dos seus lucros sob a forma de tributo a Roma [Mt 22:15-22 - O tributo a César (Mc 12,13-17; Lc 20,20-26) - «Então, os fariseus reuniram-se para combinar como o haviam de surpreender nas suas próprias palavras. Enviaram-lhe os seus discípulos, acompanhados dos partidários de Herodes, a dizer-lhe: «Mestre, sabemos que és sincero e que ensinas o caminho de Deus segundo a verdade, sem te deixares influenciar por ninguém, pois não olhas à condição das pessoas. Diz-nos, portanto, o teu parecer: É lícito ou não pagar o imposto a César?»]

Vivia-se numa situação de opressão e de violência política: no ano IV antes de Cristo, as legiões romanas sufocaram uma revolta de judeus, crucificaram cerca de 2000 homens nas cercanias de Jerusalém e pegaram fogo a Séforis, cidade sumptuosa que ficava a 10 km de Nazaré.

Jesus passou a maior parte da sua vida em Nazaré e Nazaré acabou por ser o seu apelido: Jesus é Jesus de Nazaré, ‘Jesus, o Nazareno’ [Mc 10:47; Mt 21:9-11; Jo 19:7]. Inclusivamente, na própria Cruz onde é morto, Jesus aparece com o título de ‘Jesus, o Nazareno, Rei dos Judeus’ [Jo 19:19].

Jesus foi nazareno: esta era a sua identidade.

Era um filho do povo, um como os outros, sem privilégios, sem títulos ou distinções, levava uma vida despretensiosa, sujeito aos seus pais [Lc 2:51] como filho dum carpinteiro, família de condição modesta [Lc 2:33], família que cumpria com as suas tradições religiosas [Lc 2:21-22.41]. Segundo o evangelista Lucas, Maria, a sua mãe, recebeu a mensagem do Anjo em Nazaré e em Nazaré o Espírito a cobriu com a sua sombra para engravidar de Jesus [Lc 1:26-38], fruto bendito do seu ventre [Lc 1:41].

Foi a partir deste ângulo de visão bem peculiar de Nazaré que Jesus se abriu ao mundo, a partir dum contexto provinciano, campesino, aldeão, não a partir dum ambiente urbano, de Jerusalém, mas a partir da periferia. Consciencializou-se a partir da condição de artesão e não a partir do ponto de vista dos latifundiários ou dos membros da classe sacerdotal. Foi iniciado na fé dos pais, apreendeu a piedade simples dos anawim, e, a partir daí, descobriu o Pai, o seu Pai [Lc 2:49].

A partir de Nazaré, Jesus viu de perto o sofrimento do seu povo, as injustiças, o desemprego, o abandono e a marginalidade a que estavam submetidos os enfermos, considerados impuros. Descobriu a prepotência dos ricos e o peso da ocupação romana, à base de elevados impostos. Viveu a condição de nazareno, suspeito e desprezível. Apercebeu-se de que a fé fora traída por um legalismo que impedia se descobrisse o rosto misericordioso do Pai. Mas, também, pode presenciar gestos de amor e solidariedade por parte de pessoas tidas como pecadoras e marginais. É todo este contexto que faz com que Jesus amadureça a sua vocação profética: que fazer para anunciar um Deus que salva, para anunciar o Reino de Deus?

Ainda que os profetas tivessem dito que o Messias seria chamado «Nazareno» [Mt 2:22b-23], os contemporâneos de Jesus afirmavam que, de Nazaré, não podia sair nenhum profeta [Jo 7:52]. E, quando Filipe encontra Natanael e lhe diz que encontraram aquele de quem Moisés e os profetas haviam escrito, Jesus de Nazaré, Natanael exclama com muita segurança: «De Nazaré poderá sair alguma coisa boa?» [Jo 1:46; o texto grego diz textualmente: «De Nazaré poderemos ter alguma coisa boa?»]

Mas, Nazaré não é somente um lugar geográfico – é um lugar teológico, um «estilo de vida»! [cf. J. Alvarez Calderón, «Nazaret: su significado para Jesus y para la Iglesia», Páginas 105 (Lima, Oct. 1990), 15-31]

A presença de Jesus em Nazaré não é casual, mas ela corresponde, por parte de Jesus, a uma opção por uma encarnação pobre (Kenótica). A Palavra fez-se carne nazarena: hoje diríamos, encarnou no mundo dos pobres, dos excluídos, dos insignificantes. A Palavra falou em dialecto galileu.

Jesus podia ter-se servido da sua ascendência davídica, mas nunca o fez. Denominou-se a si mesmo «o filho do homem», o que, ainda que possa ser referido a Daniel 7, em linguagem usual quer significar homem comum, homem vulgar. No evangelho de João, quando os guardas, enviados pelos sumos-sacerdotes e pelos fariseus, se dirigem ao horto para o prender e este lhes pergunta ‘a quem buscais?’, eles respondem: ‘A Jesus de Nazaré’. Então, Jesus confessa abertamente: «Eu Sou» [Jo 18:1-8] Jesus é o Nazareno, Jesus de Nazaré. Em Lucas, os discípulos de Emaús, quando pretendem explicar a um acompanhante estranho de quem estão a falar e porque estão tristes, começam a falar-lhe do que acontecera com Jesus o nazareno [Lc 24:13-19].

Em Nazaré, Jesus leva uma vida oculta, monótona, anónima, própria do filho do carpinteiro [Mt 13:55], ele próprio carpinteiro durante muitos anos [Mc 6:3]. Vive como a maioria da humanidade. A sua vida é vida de um ser humano que não se destaca, é um vizinho mais, um como muitos [ Flp 2:7 - «Tornando-se semelhante aos homens e sendo, ao manifestar-se, identificado como homem»], um número censitário, apenas. Aprendeu da universidade da vida. Retirou da vida campestre e do povo a maioria dos seus exemplos com que compôs as parábolas e os sermões: o joio e o trigo, o grão de mostarda, as aves e os lírios do campo; as raposas; as galinhas que protegem os pintainhos; os trabalhadores desempregados que esperam ser contratados; pessoas endividadas; os banquetes dos muito ricos que excluem os pobres; os casamentos populares; as crianças que tocam flauta nas praças para que outras brinquem; as mulheres que perdem moedas, amassam o pão com o fermento e remendam roupa velha; os pastores com as suas ovelhas; os filhos que resolvem abandonar a casa paterna e ir pelo mundo rebentar a fortuna herdada nas grandes cidades; pessoas que, de noite, batem à porta de vizinhos na urgência de algum pão; os criados que se emborracham na ausência do dono…

Em Nazaré, Jesus aprendeu a dureza da vida, uma vida de camponeses que semeiam, mas pouco colhem, que observam como o joio se mistura com o trigo, uma vida de homens que ‘dizem mas não fazem’, que preferem enterrar os seus talentos em vez de os pôr a render, que não são precavidos, mas estúpidos, que constroem celeiros ainda maiores sem pensar na sua pequenez, na sua própria morte, que se metem a edificar sem primeiro pararem para pensar se terão dinheiro para levar até ao fim a obra planeada. No entanto, em Nazaré, Jesus não fez apenas a experiência da desilusão, da amargura, mas sentiu, também, a proximidade do Pai que faz chover indiscriminadamente sobre bons e maus, que perdoa o filho pródigo, que vai no encalce da ovelha perdida, que faz com que a semente cresça, quer de noite, quer de dia.



Lago de Tiberíades [ao longe] ou Mar da Galileia


Esta proximidade filial para com o Pai, o Abba, experimentada em Nazaré, forneceu-lhe valentia profética para anunciar um Reino que não assentasse na riqueza, na honra, no poder, mas no esquecimento de si, no serviço desinteressado aos outros, especialmente aos pobres e aos excluídos. Um Reino de perdão, de confiança em Deus, que faz com que cada um não se apoie nos seus próprios meios, como os fariseus, mas que confie na intimíssima misericórdia do Pai de todos. [J.I. González Faus, «La “filosofía de la vida” de Jesus de Nazaret»: Terrae 76/4 (Abril 1988), 275-289]

Todas estas experiências, de cerca de 30 anos, serão o núcleo da sua pregação, da sua espiritualidade, do seu profetismo, das suas tensões com as autoridades religiosas e civis do seu tempo, das suas opiniões, da sua paixão e da sua morte de cruz.

Os quatro evangelistas mencionam Nazaré como o ponto de partida da sua vida pública: Jesus veio de Nazaré até ao rio Jordão para ser baptizado por João [Mc 1:9-11]. Depois do baptismo e das tentações, ao ouvir dizer que João Baptista havia sido preso, Jesus retira-se para a Galileia e, deixando Nazaré, vai para Cafarnaum, onde desenvolverá o seu ministério, para que se cumpra o oráculo de Isaías [Is 8:23-9:1] e para anunciar que o Reino de Deus está próximo [Mt 4:17]. Lucas liga, o Seu programa messiânico, a Nazaré, programa que será incompreendido pelos seus conterrâneos que o rejeitam, porque nenhum profeta é bem recebido na sua pátria [Lc 4:16-24]. O relato lucano, da rejeição de Jesus por parte dos seus compatriotas nazarenos, antecipa, profeticamente, o ministério da paixão e morte de Jesus. O evangelista João apresenta-nos Filipe que identifica o Messias, não pela sua descendência davídica, mas por ser o filho de José, de Nazaré [Jo 1:45], facto que provocará estranheza em Natanael [Jo 1:46].

Paradoxalmente, enquanto os sacerdotes, os escribas e os fariseus rejeitam um Messias nazareno, o cego de Jericó descobre, em Jesus de Nazaré, o Messias, filho de David [Mc 10:47], e as pessoas simples são as que reconhecem o Messias, filho de David naquele nazareno que entra em Jerusalém no lombo dum jumentinho [Mt 21:9-11].

Tudo isto significa que, se queremos falar de Jesus, temos de ir a Nazaré. Se a Igreja quer ser fiel a Jesus terá de ser Igreja nazarena e não davídica. E, já que o mundo dos pobres, no qual Jesus de Nazaré encarnou, possui uma especial densidade humana e teológica para compreender a Palavra de Deus, a própria teologia tem de ser nazarena.

Dito de outro modo, Nazaré constitui um lugar teológico e hermenêutico privilegiado para se compreender a história da salvação. Nazaré é includente de pobres e de diferentes, diferentes quanto à língua e quanto à mentalidade. Nazaré influencia Maria, a mulher simples de Nazaré, que conta com José, o carpinteiro e homem fiel. Nazaré pressupõe a presença salvífica e vivificadora do Espírito que actua em Maria e comanda toda a vida de Jesus. Nazaré significa a vida e o estilo de Jesus de Nazaré, aquele que morre na cruz sob a inscrição de «Nazareno» e que ressuscita convocando os seus discípulos à Galileia [Mt 28:7.16].

Os sermões de Pedro, que os Actos nos relatam, fazem contínua referência a Jesus de Nazaré, a quem os judeus dirigentes mataram, mas a quem Deus ressuscitou [Act 2:22-24]. Em nome de Jesus de Nazaré, Pedro e João põem de pé o coxo que pedia na Porta Formosa [Act 3:6]. Diante do Sinédrio confessam que Jesus de Nazaré, morto e ressuscitado, é a pedra angular, pois não existe outro Nome dado aos homens no qual se possam salvar [Act 4:10-12]. E, Pedro, em casa de Cornélio, anuncia-lhe a Boa-Nova de Jesus de Nazaré, o qual, ungido pelo Espírito, passou no mundo fazendo o bem e livrando a todos de todo o tipo de opressão maligna [Act 10:38].

Nazaré é um mistério, um sinal de contradição: para uns, é sinal de escândalo, para outros, é Boa Nova da salvação.


Víctor Codina, SJ - «Una Iglesia nazarena – teologia desde los insignificantes»,  Sal Terrae, col. Presencia Teológica nº177, 2010, p.11-16

Victor Codina [Barcelona, 1931-], teólogo jesuíta, vive, desde 1982, na Bolívia. Alterna a docência teológica universitária com o trabalho pastoral em Comunidades Eclesiais de Base, nas localidades de Oruro, Santa Cruz e Cochabamba.