teologia para leigos

4 de setembro de 2011

A FIGURA DE JOÃO XXIII 2/2

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João XXIII [1958-1963]


Papa Joao XXIII



Um mês depois de ser eleito, João XXIII escreveu que tinha um programa de trabalho bem decidido e, no seu diário, aponta com satisfação como ao princípio «se difundiu a convicção de que seria um papa provisório, de transição. Pelo contrário, eis-me aqui na vigília do quarto ano de pontificado e com a visão de um robusto programa que há que desenvolver diante do mundo inteiro que observa e espera». O conceito «sinais dos tempos» representou um novo enfoque: acabava-se a Igreja imóvel, conservadora por instinto, ancorada no passado e desconfiada da história, para se converter numa Igreja disposta a repensar os temas e as questões antigas, centrada no serviço ao homem no seu conjunto e na difusão do Evangelho.

João XXIII pôs o acento na sua função de Bispo de Roma. Obviamente, todos estavam conscientes de que o papa tinha esse papel, mas esta função episcopal tinha sido tradicionalmente relegada, transferida para subalternos. Ao tomar posse da sua catedral, S. João de Latrão, explicou que «já não é o príncipe que se adorna com sinais de poder exterior que agora se observa, mas o sacerdote, o pai, o pastor […], que funde na mesma pessoa duas dignidades e duas missões incomparáveis: a de bispo da diocese de Roma e a de pontífice da Igreja universal». Esta atitude sublinhava a importância da função episcopal e das Igrejas locais, dois temas essenciais na vida eclesial, que se convertiam em protagonistas teológicos por causa do concílio e que seriam causa da posterior multiplicação de sínodos diocesanos.

O sínodo de Roma manifestou que esta cidade era uma diocese e que o papa era o seu bispo. É verdade que o desenvolvimento do sínodo constituiu objectivamente um fracasso. Os padres presentes mantiveram-se passivos e aceitaram umas constituições sinodais em cuja elaboração não participaram, manifestando uma atitude tradicional e pouco de acordo com o que sentiam e viviam os romanos do momento. Apesar disso, o mero facto de ser celebrado recordou que Roma era uma diocese normal e que tinha de a dirigir e evangelizar como as outras. Mais adiante: pelo facto de ser a diocese do papa, João XXIII pensava que devia dar exemplo e converter-se em guia e espelho do mundo cristão. […]

Perante um grupo de cardeais que o consideravam um pontífice ancião, o papa anunciou, apenas três meses depois da sua eleição, a celebração de um sínodo romano, a revisão do Código de Direito Canónico e a convocação de um concílio ecuménico. O dia escolhido para o anúncio não foi casual: o dia 25 de Janeiro, festividade de S. Paulo, apóstolo que o papa quis relacionar permanentemente com S. Pedro, segundo uma antiquíssima tradição.

Parece que se pode afirmar que grande parte da Cúria era contrária à celebração deste concílio, e hoje sabemos que Roncalli estava consciente desta reacção negativa: «Humanamente podia supor-se que os cardeais, mal escutada a alocução, se congregariam à nossa volta para expressar a sua aprovação e bons votos. No entanto, produziu-se um impressionante devoto silêncio.» A preparação do concílio, por parte da Cúria, foi rejeitada em grande parte já desde as primeiras sessões. Não houve sintonia, nem podia havê-la, entre uma Cúria esclerosada e um episcopado que, em grande parte, precisava de responder às inquietações contemporâneas. Para muitos membros da Cúria, depois da definição da infalibilidade pontifícia, julgava-se que já não eram necessários concílios. No entanto, para João XXIII a amplitude e a novidade dos problemas presentes no mundo contemporâneo exigiam a colaboração e a co-responsabilidade de todos os bispos da Igreja reunidos em concílio, uma das formas mais antigas de exercer a autoridade na tradição eclesial.

Outro objectivo do concílio era evidenciar a substância do cristianismo, às vezes opaca por causa de tantos revestimentos e acrescentos acidentais. O papa estava consciente desta necessidade, não só pelos seus conhecimentos históricos, mas também pelo seu trato frequente com as Igrejas orientais. Para o papa, devia tratar-se de um novo Pentecostes, de uma efusão do Espírito Santo capaz de reanimar a riqueza interior da Igreja. Isto explica o perfil de um concílio que se apresentou como um acontecimento pastoral, centrado no anúncio da Boa Nova de Jesus Cristo.

O período de preparação deu a entender que as Igrejas cristãs, de maneira especial as ortodoxas, iam responder positivamente ao convite de enviar observadores aos trabalhos conciliares. Nem o Vaticano I, nem Trento o tinham conseguido, mas, neste caso, era o fruto do novo clima instaurado pelo papa e conseguido também graças à atitude conciliadora demonstrada pelo cardeal Bea. O ecumenismo deixava de ser uma palavra vazia para se converter num espírito e num desejo partilhado. Durante os trabalhos conciliares, mais de cem observadores de comunidades não-cristãs tomaram parte activa. As relações pessoais com o patriarca Atenágoras e o encontro com o arcebispo de Cantuária, Geofrey Francis Fisher, inauguraram uma época de diálogo e convergência entre as Igrejas cristãs.



11 Out 1962 - Abertura do Concílio Ecuménico Vaticano II


O concílio constituiu o eixo vertebral deste pontificado, tanto na sua preparação, como no seu desenvolvimento, tanto na elaboração da sua fisionomia, como na fixação dos seus objectivos. Três mil bispos reuniram-se para dialogar sobre os problemas mais urgentes do cristianismo e da humanidade. Provavelmente, João XXIII pensou que o concílio duraria só uma sessão. Com um optimismo invejável, mas que se revelaria infundado, acreditava que «o consentimento dos bispos não seria difícil e a sua aprovação seria unânime». Não era o corpo eclesial assim tão homogéneo, nem concordava em tantos temas importantes... Pelo contrário: por trás de uma fachada de calma e de conformismo existia uma forte crise interior e, sobretudo, a convicção de que tinham de mudar muitas coisas no seio da instituição. Como clamorosamente aconteceria alguns anos mais tarde na Igreja em Espanha, o concílio foi a ocasião e não tanto a causa da aparição de correntes de mal-estar, renovação, confronto e reestruturação.






Pela primeira vez, em séculos, a Igreja reunia-se, não para condenar ou atalhar uma heresia, mas para se examinar e renovar, e a realidade demonstrou que o tempo era propício. O papa animou a escolher uma atitude de misericórdia e não de condenação.

No início das sessões apareceram com clareza quais iam ser as finalidades do concílio: a participação da Igreja na busca de uma humanidade melhor, o pôr em dia as estruturas e a apresentação da mensagem da Igreja, bem como a preparação dos caminhos para a unidade entre os cristãos. É verdade que estes fins não eram privativos deste concílio, mas da Igreja de todos os tempos, mas não há dúvida que nesse momento foram enfrentados com uma nova atitude e entusiasmo. Algo parecido aconteceu com o papa: obviamente, não podia saber como é que o concílio ia desenrolar-se, mas não há dúvida que traçou as suas linhas mestras através de uma obscura intuição que não poucos definiram como profética.



No discurso inaugural sublinhou que continuava a ser Cristo o grande problema colocado diante do mundo e diante do qual os homens tinham de tomar posição. Rechaçou a atitude pessimista e as nostalgias do passado dos profetas da desgraça. Indicou que o nosso dever não se reduz unicamente a guardar este tesouro precioso, como se apenas nos preocupássemos com a antiguidade, mas devíamos dedicar-nos com vontade e sem temor à obra que o nosso tempo exige, prosseguindo assim o caminho que a Igreja percorre há vinte séculos. O papa afirmou que o objectivo do concílio não era realizar uma obra intelectual ou de técnica teológica, mas tinha de centrar a sua atenção em como anunciar o Evangelho e como estruturar a vida cristã. De facto, o concílio converteu-se no mais revolucionário acontecimento cristão desde a época da Reforma.


Com João XXIII iniciou-se um autêntico e real diálogo entre as chamadas «religiões do livro», o qual prosseguiu com altos e baixos durante os pontificados seguintes. A declaração católica de 1998, sobre a responsabilidade histórica dos católicos na posição antijudaica, vai nesta mesma direcção. Em 1960, o movimento para a independência de boa parte do continente africano obteve o apoio e simpatia da Santa Sé, que favoreceu a passagem da Igreja missionária para as Igrejas indígenas.

João XXIII escreveu oito encíclicas não só de temática religiosa, mas também social, dirigidas a todos os homens de boa vontade e que abordaram temas urgentes do momento. No dia 11 de Abril de 1963, Quinta-Feira Santa, apareceu a Pacem in Terris, uma encíclica que foi acolhida na Igreja como uma lufada de ar fresco e que, em Espanha, se tornou num autêntico marco no caminho da renovação eclesial. Abandonando a retórica anti-comunista da Guerra Fria, esta encíclica constitui uma viragem revolucionária na cosmovisão cristã dos problemas temporais. Faz da dignidade humana o centro de todo o direito, de toda a política, de toda a dinâmica social e económica. Utilizando a categoria evangélica d’o sinal dos tempos, mostra como a promoção económica e social dos operários, o ingresso da mulher na vida pública, a organização jurídica das comunidades políticas, os organismos de projecção internacional nos campos político e social, e o fenómeno da socialização são sinais que indicam modos possíveis da presença do Reino de Deus na história. Na Pacem in Terris, o papa chega a afirmar que, na era atómica, não pode dar-se a guerra justa.

A morte de João XXIII provocou uma comoção generalizada. A Praça de São Pedro converteu-se numa capela, num imenso espaço religioso no qual toda a espécie de pessoas se reunia para rezar, olhando com angústia para a janela do terceiro andar, no qual se encontrava o papa. Esta morte produziu um assombroso e vasto sentimento de aflição pessoal.

Talvez o seguinte parágrafo dos seus escritos explique, melhor do que muitos comentários, a atitude e a posição deste papa:

«Agora, mais do que nunca, certamente mais do que nos últimos séculos, devemos dedicar-nos a servir o homem enquanto tal e não só os católicos; a defender, sobretudo e em toda a parte, os direitos do homem e não somente o da Igreja católica. As circunstâncias actuais, as exigências dos últimos cinquenta anos, o aprofundamento doutrinal conduziram-nos a novas realidades, tal como afirmei no discurso de abertura do concílio. Não é o Evangelho que muda: somos nós que começamos a compreender melhor. Quem viveu mais tempo encontrou-se, no princípio do século, com tarefas novas de uma actividade social que se relaciona com todo o homem; quem viveu, como foi o meu caso, vinte anos no Oriente, oito em França e pôde confrontar culturas e tradições diversas, sabe que chegou o momento de reconhecer os sinais dos tempos, de acolher a oportunidade e olhar para longe


Juan María Laboa Gallego, ‘HISTÓRIA DOS PAPAS – Entre o Reino de Deus e o poder terreno’, Esfera dos Livros, Abril 2010, pp. 434-438, ISBN 978-989-626-213-6, 548 p., 35 euros.