teologia para leigos

4 de setembro de 2011

A FIGURA DE JOÃO XXIII 1/2

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João XXIII [1958-1963]


Papa João XXIII



Ângelo Roncalli nasceu em Sotto Monte, no Norte da Itália, numa humilde família camponesa, que permaneceu assim toda a vida. Constituiu a mais sonora antítese do culto de personalidade estabelecido durante o pontificado anterior.

No conclave participaram 55 cardeais, dos quais 24 tinham mais de 77 anos. Italianos eram 18, e não-italianos 37. A média de idade era, pois, altíssima, e pela primeira vez mais de dois terços do total não eram italianos. O novo papa contava 78 anos de idade.

Com João XXIII mudamos de registo e de atitude na história do pontificado. Na sua vida e na sua actuação manifestou um novo conceito e uma nova atitude na convivência eclesial. Outros papas foram estimados e admirados, mas este foi querido, seguido, acompanhado por toda a espécie de pessoas. Três meses depois, o Vaticano deixou de ser uma corte para se converter na «casa do pai». Não há dúvida que foi muito pouco convencional: conhecia o mundo moderno e não o temia, não escondia o seu amor à vida e esforçava-se por não perder o contacto com os homens.

Tinha nascido no dia 25 de Novembro de 1881. Foi professor de História da Igreja no seminário da sua diocese, secretário pessoal do seu bispo, e, entre 1921 e 1925, exerceu a direcção da Obra da Propaganda da Fé na Itália. O seu pontificado fica marcado pela surpreendente e decisiva convocação de um concílio. No âmbito italiano tentou libertar a Igreja dos anexos condicionantes temporais e políticos que tanto a tinham marcado. À comunidade eclesial universal ofereceu uma nova, esplêndida e luminosa imagem do pontificado.

Em 1925, Pio XI enviou-o à Bulgária, país de religião ortodoxa. Da Bulgária transferiram-no para a Turquia (1934) como delegado apostólico da Turquia e da Grécia, lugar afastado mas nem sempre à margem dos acontecimentos europeus, e, ao mesmo tempo, administrador do vicariato apostólico de Istambul. Roncalli, no entanto, acolheu a mudança, que não era uma ascensão, com a sua habitual serenidade: «Muita gente das duas costas da Europa e da Ásia tem compaixão de mim e chamam-me desafortunado. Não compreendo porquê. Cumpro a obediência que se quer de mim. Nada mais.» Não em vão o lema que tinha escolhido para o seu escudo episcopal: o do historiador Barónio, Obedientia et Pax.

Em 1942, Pio XII nomeou-o núncio em Paris. O núncio anterior teve de abandonar esta capital pressionado pelo governo do general De Gaulle, o qual além disso pretendeu a demissão de um bom número de bispos, todos acusados de terem aceitado e reconhecido o governo colaboracionista de Vichy. De Gaulle parecia inflexível a este respeito. Roncalli, por ofício e convicção, tinha de defender estes bispos. Como? Com diplomacia? Seguramente, mas também com a fé simples e sem complicações.

Pode comprovar-se que uma constante da sua vida foi a incompreensão do seu trabalho pela Cúria Romana, tanto durante as suas delegações, como durante o seu pontificado. Maritain, embaixador junto da Santa Sé, refere ao seu governo que «monsenhor Tardini (…) não escondeu a sua pouca estima pelas qualidades diplomáticas de monsenhor Roncalli». Provavelmente, uma das causas desta incompreensão deveu-se à sua maneira de ser pouco diplomática segundo os usos mais tradicionais. «Com monsenhor Roncalli, o papel religioso do núncio apostólico em França transformou-se publicamente e eclipsou o seu carácter diplomático junto do Governo», escreveu François Mejan, chefe do Gabinete de Cultos do Ministério do Interior francês.




11 Out 1962 - Abertura do Concílio Ecuménico Vaticano II



Roncalli escreveu, em 1928, estando em Sofia: «Nada há de heróico em tudo o que me aconteceu e em tudo o que julguei que tinha de fazer. Uma vez que se renunciou a tudo, exactamente a tudo, qualquer audácia resulta a coisa mais simples e natural do mundo.» Aqui encontramos o segredo da sua profunda espiritualidade e da sua liberdade interior. A sua audácia não provinha de uma ideologia, nem de um carácter determinado, mas da simplicidade de quem se entregou directa e totalmente a Deus. Por esta razão podia compatibilizar uma atitude conservadora com uma actuação inequivocamente revolucionária. É de 1932 esta anotação significativa: «Tempos novos, novas necessidades, formas novas». E a propósito da morte de Pio XII escreve no seu diário: «Estamos na Terra não para guardar um museu, mas para cultivar um jardim cheio de vida e destinado a um futuro glorioso.»

Em 1953 foi elevado a cardeal e três dias mais tarde a arcebispo e patriarca de Veneza. Nos cinco anos de estância na cidade dos canais visitou todas as paróquias da sua diocese, fundou cinquenta e nove paróquias e um seminário menor, seguindo sempre o exemplo de S. Carlos Borromeu, ao qual dedicou o seu tempo e o seu estudo.

Apoiou-o, ao longo do pontificado, o consenso da Igreja, que ir muito mais além da mera simpatia pelos seus actos: era o apoio à sua maneira de exercer o cargo e à sua visão da Igreja. É simplificadora a ideia de que este papa concitou fundamentalmente simpatia e ternura. O povo crente identificou-se sobretudo com um modo de actuar que era, também, uma forma de conceber a Igreja e uma espiritualidade.

João XXIII significou o início de uma nova era e não só em formas e fórmulas, mas, sobretudo, em atitude e concepção global. Começou restabelecendo o ritmo da Cúria, recebendo regularmente os cardeais prefeitos das congregações romanas, todos eles de muita idade e que, por serem poucos, tinham acumulado postos e presidências. Anunciou que pensava criar vinte e três novos cardeais, entre os quais o primeiro seria Montini (futuro papa Paulo VI). Ultrapassava-se, assim, o número de setenta estabelecido por Sisto V, em 1586. No próprio dia da sua eleição, João XXIII nomeou Tardini seu secretário de Estado, apesar de estar consciente de que este, que tinha sido seu superior, nunca tinha tido boa opinião a respeito das suas capacidades. Uma vez mais demonstrou que só buscava o bem da Igreja e não a satisfação da sua vaidade.




Este Papa deu com a fórmula de escapar de uma reclusão católica secular.

Abriu as portas pelas quais se precipitou uma corrente de vida que estava ali, mas detida por muitos medos, por tentativas erradas e circunstâncias adversas. No final do seu pontificado, duas semanas antes de morrer, insistiu em que tinha de servir o homem enquanto tal e não apenas os católicos, que havia que defender em toda a parte os direitos do homem e não só os da Igreja. Estava consciente que a Igreja devia preferir a medicina da misericórdia à da severidade.

Em 1911 alguns, em Roma, já suspeitaram do seu possível modernismo. Esta dolorosa experiência ajudou-o a reflectir sobre o método de funcionamento dos serviços centrais eclesiásticos. Através do seu trato e dos seus actos, das suas palavras e da sua atitude, pretendeu transformar em serviço pastoral e em obra de caridade, a dignidade papal. A Igreja convertia-se num espaço aberto a todos, e ele era o pai comum. Na Itália, com as suas palavras e actos, procurou a autonomia de uma Igreja demasiado enfeudada num partido e numa política concretos, insistindo na nítida distinção existente entre fé e política. Esta decisão de colocar o Evangelho acima dos partidos e opiniões explica o respeito com que foi acolhida a sua actuação durante a crise dos mísseis de Cuba (Outubro de 1962).


Juan María Laboa Gallego, ‘HISTÓRIA DOS PAPAS – Entre o Reino de Deus e o poder terreno’, Esfera dos Livros, Abril 2010, pp. 431-434, ISBN 978-989-626-213-6, 548 p., 35 euros.