Marcel Légaut [1900-1990] |
A situação da Igreja no pós-Concílio
Sob o impulso do Vaticano II, a Igreja, no seu todo, tomou consciência da considerável importância das iniciativas que tinha que desenvolver e das buscas que deveria empreender para realizar, entre os homens do seu tempo, a missão que lhe advinha de Jesus de Nazaré. (…)
Há, contudo, que dizê-lo: para que a inteligência iluminada pela Fé se desfraldasse feliz e poderosa em liberdade criadora, ao Concílio faltou-lhe, indiscutivelmente, a promoção de uma autêntica renovação da vida da Fé e da fidelidade no interior da Igreja, na linha dum aprofundamento do mistério do Homem e do mistério de Deus, servindo-se de uma compreensão mais funda daquilo por que Jesus teve de passar para chegar a ser aquilo que foi.
Não é de estranhar, então, que algumas das estruturas fundamentais da Instituição continuem, tal como ontem, ainda hoje a pesar nos destinos da Igreja. Ainda que pela rama, enumeremos algumas.
1. A eleição do Papa apenas pelos Cardeais, cardeais que foram, na sua maioria, escolhidos pelo Papa antecessor, o qual, deste modo, forçosamente «propõe» o seu sucessor, favorecendo uma estabilidade demasiado rígida. Conhecem-se casos de prelados de peso que trocaram suas carreiras eminentes e fecundas para se proporem alargar o corpo dos eleitores.
2. A colegialidade dos Bispos, que o Concílio felizmente revalorizou, não foi, desde os começos, atacada em seus fundamentos quando se desviou, da sua competente apreciação, questões mais importantes por dizerem respeito à vida pessoal e íntima de sacerdotes, leigos, homens e mulheres? As decisões da colegialidade não tinham que estender-se às questões do governo e do ensino das Igrejas?
3. A eleição dos Bispos – não é criticável que tal ocorra em Roma e não ‘no local’ e que, por vezes, tal aconteça em oposição aos Bispos do lugar? Segundo referências confidenciais indiscretamente publicadas, não é verdade que se concede o mesmo valor, ou mais, à ‘doutrina’ bem aprendida e repetida e aos modos de comportamento conformes ao uso do que ao carácter e à profundidade da vida espiritual?
4. A necessária descentralização de uma instituição que, na medida em que os meios técnicos lho permitem, acentua a sua tendência à concentração do poder directo… particularmente, o poder das finanças, cuja pressão nesse sentido centralizador se pode adivinhar…
5. A necessária autonomia dos Bispos, cujo poder tinha que estar à altura das suas responsabilidades de apóstolos e pastores. Que apostolado cheio de iniciativas arrojadas os espera a eles, de facto, num futuro imediato, nas suas dioceses convertidas, na sua maioria, em desertos, onde a sede empurra as pessoas para miragens, miragens quer do passado, quer do futuro?
A ‘restauração’ que se anuncia já está em marcha.
O cardeal Ratzinger, homem inteligente e de valor, que sabe dizer claramente o que pensa, que quer firmemente aquilo que deseja, o atesta. Acreditem no que digo. Aliás, não está só. Uma equipa, praticamente toda-poderosa, constituiu-se paulatinamente segundo um projecto claramente concebido e tenazmente perseguido. A pouco e pouco, os postos de decisão mais importante vão-se ocupando, aproveitando a saída, por motivos de idade, dos seus titulares. E mais: nada faltará ao êxito da empresa, nem sequer um corpo bem disciplinado e «financeiramente» bem guarnecido que, à mistura com as multidões que se conseguem juntar, sabe arrancar a tempo os aplausos e orquestrar igualmente os protestos quando as palavras que se pronunciam – é preciso ter coragem e, para tal, escassas mulheres foram capazes de tal – não estão conformes com os textos que foram convenientemente revistos e corrigidos pelos servidores da Cúria.
Vejam-se alguns aspectos desta restauração, rapidamente enumerados. São eles:
1. Os impedimentos múltiplos a uma verdadeira pedagogia catequética e bíblica e, por oposição, o regresso às formulas rígidas.
2. A recusa de tentativas de renovação da pastoral penitencial.
3. O bloqueio de algumas questões que certas pessoas colocadas na linha da frente em diferentes regiões do mundo colocam: inculturação do cristianismo em África, na Ásia, etc., ordenação de homens casados, ministérios femininos…
4. O cavar, mais fundo ainda, do fosso que separa sacerdotes e leigos (os leigos para a acção no mundo e os sacerdotes para o culto).
5. A contradição entre o discurso público a favor dos pobres e as suspeitas que se espalham acerca da teologia da libertação.
6. O atraso táctico na nomeação episcopal para sedes vacantes para aí poder colocar um elemento predestinado vindo de fora.
7. A fundação de novos organismos os quais duplicam os que nasceram sob o espírito do Concílio Vaticano II e que, por fim, acabam por vingar à custa de uma dotação de meios muito mais forte.
Como é possível que se tenha chegado à convicção de que o regresso aos erros e aos defeitos do passado é o único modo de remediar as deformações e os desvios do presente, sendo certo que os primeiros foram a causa principal dos segundos? (…)
Por isso, o período que vivemos [o autor escreve em 1985…], marcado por um esforço de restauração, é necessário ao futuro e à fidelidade da Igreja, da mesma maneira que ao homem verdadeiro são necessárias as crises que lhe sobrevêm quando a sua vida espiritual definha, se deteriora e ele tem, de novo, que se converter. A crise é tão mais profunda e cruel quanto o futuro desse mesmo homem é grave e exigente. O mesmo ocorre com a Igreja. A História não o mostra? É nos momentos de maior desfalecimento e esvaziamento que se erguem crentes duma envergadura capazes de se anteciparem ao seu tempo preparando o futuro.
Oxalá que ninguém desanime nesta hora da verdade que, incessantemente, toca a defunto.
São tempos em que, pouco a pouco privados das abundantes facilidades duma cristandade poderosa, ver-se-ão despojados de certezas e seguranças herdadas tranquilamente quando vieram ao mundo. Por isso, os cristãos, tal como a sua Igreja e em união com ela, têm que reconhecer que cada um necessita pessoalmente de um novo nascimento, em importância comparável ao primeiro. Cada um, segundo as etapas da sua conversão, deverá trabalhar para um novo advento da sua Igreja, sendo certo que tal obra será incessantemente questionada e recomeçada.
Assim, cada um, ao longo da sua vida e em tempo oportuno, ficará a conhecer a hora que Jesus viveu e que o acompanhou até ao fim dos seus dias. Esse ponto em que a Fé desnudada, a esperança sem esperança e o amor impotente e blasfemado mesmo assim se mantêm em pé no meio do abandono absoluto: hora e pórtico que abrem para o mistério, no qual tudo principia e encontra seu fim.
Marcel Légaut, ‘Creer en la Iglesia del futuro’, Sal Terrae, col. Presencia Teologica-43, 1988 (edição original francesa de 1985, mas Prefácio da edição em castelhano muito actualizado), in Prefácio pp.7.21-24.26. ISBN 84.293.0794.X.
ASSOCIAÇÃO MARCEL LÉGAUT