Que década queremos?
Rui Tavares |
Vi a década a que tínhamos chegado em Janeiro de 2010.
Semanas antes, em Detroit, na véspera de Natal, um terrorista nigeriano já identificado tinha tentado rebentar um avião com explosivos que trazia dentro das cuecas.
Em Bruxelas, a indústria dos body scanners (que usam radiação para "despir" as pessoas à entrada do aeroporto) não perdeu tempo e, mal entrou o ano, mandou os seus lobistas visitar o Parlamento Europeu. Quando me bateram à porta ouvi-os longamente e perguntei quanto custava cada body scanner. Disseram-me: cerca de 150 mil euros somente. E foi aí que percebi a década que tínhamos criado.
Dias antes, a 12 de Janeiro, um sismo medonho tinha destruído a capital do Haiti. Centenas de milhares de pessoas morreram; muitas estavam ainda debaixo do entulho, mas a engenharia e a indústria moderna não tinham máquinas capazes de detectar os sobreviventes soterrados. Não porque fosse impossível criá-las, mas porque não se investia nisso.
Sob o choque, todos prometemos ao Haiti ajuda na reconstrução. Só uma pequena fração do dinheiro prometido chegou a ser enviado. Veio a crise, saía muito caro, ninguém se lembra disso agora. E ali em Bruxelas aqueles lobistas queriam vender scanners a 150 mil euros cada um. Em breve, dezenas daquelas máquinas poderão lotar cada aeroporto de um continente que tem centenas de aeroportos. Centenas de milhões de euros, a pagar por você.
E os lobistas pareciam confiantes que ninguém lhes diria "não". Pronunciavam as palavras mágicas - segurança, terrorismo - e os mesmos governos que cortam fundos a escolas ou hospitais abriam imediatamente os cordões à bolsa. Porquê? Porque o terrorismo mata? Mas as catástrofes naturais também matam - muito mais. Porque os eleitores pedem? Não, o que eles pedem é empregos. Porque ficamos seguros? Nem por isso, basta o terrorista atacar noutro lugar. Porquê, então? Porque, simplesmente, cada época tem a oportunidade de se definir.
Os anos 60 quiseram chegar à Lua. Nós quisemos ceder ao medo. E que década queremos ser agora?
Na Europa já não seria mau sobrevivermos aos próximos dez dias. A Grécia está a colapsar, há bancos alemães provavelmente insolventes, temos o euro à beira do precipício.
Nesta situação, o comissário europeu escolhido pela sra. Merkel, Guenther Oettinger, não teve ideia melhor senão sugerir que as bandeiras dos países devedores ficassem a meia haste nos edifícios europeus, ideia que subscreveu por ser um "símbolo" com "grande efeito dissuasor". Seria um símbolo, sim - de uma União que perdeu os seus valores. E com grande poder dissuasor, sim - para nos afugentar de uma UE aplicada num ritual de humilhação simbólica que faz lembrar a Idade Média - quando os endividados usavam roupa diferente, e eram escravizados ou presos por dívidas - ou pior.
Um comissário europeu dizer coisas destas era suposto ser impensável. Mas na Europa de hoje o impensável virou normal. Um europeísta só pode desejar ver todas as bandeiras europeias à mesma altura, com a mesma dignidade, nos bons e nos maus momentos. Ao propor o contrário, o sr. Oettinger demonstrou que não entende o Ideal Europeu e que não tem condições para ser comissário da UE. Deve retractar-se ou demitir-se.
Que década queremos?
Uma década para uma Europa livre e unida, ou ignorante e populista? Essa escolha faz-se. E é agora.
Rui Tavares
Euro-deputado
Jornal «Público», 12:IX:2011