teologia para leigos

20 de junho de 2011

ANTÓNIO MARUJO - 50 ANOS

Evangelho das bem-aventuranças
[Mateus 5]






Gostaria de saudar o contexto em que estamos aqui reunidos, na memória de Jesus, celebrando a alegria da nossa vida, o seu júbilo, o seu sentido, celebrando na vida do Tó as nossas próprias vidas, aquilo que na vida uns dos outros se faz pão, se faz alimento, se faz palavra. Ele é um artesão da palavra e muitas vezes nos alimentamos da palavra publicada, da palavra dita, dele. E isso também é aquela eucaristia comum, diária, a eucaristia do mundo, como dizia o padre [Teilhard de] Chardin. E que nos ajuda a vislumbrar o Reino de Deus.


Há uma ritualidade no quotidiano, no presente, que, não sendo explicitamente sacramental, é sacramento de Jesus. É muito belo, nos evangelhos, valorizarmos aquelas coisas que, em princípio, são apenas o traçar narrativo de um cenário. Mas depois, quando pensamos nelas, são coisas tão intensas, tão fundas…


Por exemplo: Jesus que sobe ao monte. Podia ser apenas uma deslocação ocasional. Mas nós sabemos que é muito mais que isso. Porque é que nós subimos aos montes? Subimos aos montes, mesmo sem o dizermos, à procura de outras visões, à procura de outros pontos de vista, de outras perspectivas sobre a realidade. E os nossos caminhos são sempre essa procura, a procura de uma outra evidência, de um outro observatório de nós próprios e da vida.


Jesus sobe ao monte e essa subida faz eco com tantas outras subidas humanas e religiosas. Nomeadamente com aquela de Moisés, que também sobe ao monte num momento paradigmático de construção da vida do povo de Deus. E, Moisés, sobe ao monte solitário. E essa subida ao monte exigia uma purificação, uma purgação da sua humanidade para, nesse lugar, ele ter a visão de Deus.


Os evangelhos como que secularizam as visões, tornam-nas quotidianas. Nos evangelhos há como que uma banalização do religioso. O religioso deixa de ser apenas um momento separado da existência e, pelo contrário, torna-se a respiração da vida. Jesus sobe ao monte e, ao contrário de Moisés, os discípulos aproximam-se. Jesus não está só. E essa comunhão, essa possibilidade que o próprio Jesus abre a uma vizinhança, a uma fraternidade com os homens, faz com que aquele momento que, em Moisés, era quase um legislador que estava a proclamar uma lei a um povo que a devia cumprir, aqui Jesus está sentado a fazer conversa.


Esta banalização que, no fundo, nos entreabre às categorias do presente, às categorias da vida como lugares de revelação de Deus. Deus já não se diz de uma forma unívoca. Deus já não é o legislador solitário, que nos manda uma mensagem por um mediador. Mas Deus palpita naquele rosto, naquela conversa, naquela vizinhança, naquela proximidade e também naquilo que no alto daquele monte se deu.


Jesus, aos discípulos, diz as Bem-Aventuranças. É interessante também comparar com os Dez Mandamentos, que eram sobretudo normas para cumprir e eram sobretudo prefiguradas na negativa: “Não farás isto, não farás aquilo…” Jesus não usa a lei como forma de expressão do Reino de Deus e da sua proposta. Jesus usa sim a capacidade de cantar o humano e o humano mais frágil, o humano mais incompleto, o humano a caminho, precisamente naqueles momentos de tensão, que diríamos até de ruptura, como as lágrimas, a dor, a sede de justiça, a perseguição…


Esses momentos, que humanamente são momentos de grande tensão, de imperfeição, Jesus é capaz de os cantar, é capaz de os redizer e de ligar o passado e o presente a um futuro. Esta nova visão que Jesus abre no discurso do monte é uma visão utópica, porque é capaz de ler o presente em chave de futuro, é capaz de descobrir dinamismos e dinamismos de bem-aventurança, dinamismos de jubilação.


Aquele termo tão extraordinário cunhado pelo irmão Roger, de Taizé, a peregrinação de confiança na terra, na humanidade, é isso que Jesus começa. E esta subida ao monte é uma peregrinação de confiança.


Certamente, com estas Bem-Aventuranças, Jesus não quer esgotar todos os caminhos de bem-aventurança. É um discurso incompleto. Os discursos de Jesus são incompletos. Jesus diz metade. E há uma outra metade. Os discípulos, gente activa que se esforçava, como nós nos esforçamos, para conseguir, para fazer, para dizer, para reunir,…


Jesus, aqui, faz o elogio de uma certa passividade: não é aquilo que nós conquistamos, é aquilo que nós somos. E, muitas vezes, somos no não-ser. Jesus começa pelos pobres, por aqueles que têm sede, pelos mansos, pelos puros de coração. Não é uma coisa acrescentada à nossa humanidade. É a nossa humanidade que, muitas vezes, segundo o olhar do mundo, está numa situação diminuída. Mesmo aí, nós podemos colher a bem-aventurança. No fundo, Jesus des-fataliza a vida, des-fataliza a história humana e abre-nos a essa pulsão de esperança.


Quando é que subimos ao monte? Tantas vezes, todos os dias. Subimos também em certos momentos da nossa vida. E há momentos redondos, momentos panorâmicos, especialmente panorâmicos daquilo que nós vivemos. Estes 50 anos, que o Tó quis assinalar de forma fraterna e solene com todos nós, é um desses momentos, é um momento para nos vermos, para nos olharmos, é a possibilidade de nos olharmos em chave de bem-aventurança, para nos dizermos uns aos outros: bem-aventurado, bem-aventurada. Para sentirmos que a nossa vida, que às vezes é penosa e às vezes nos dói, às vezes é demasiado abstracta, demasiado absurda ou incompleta ou insuficiente, podermos dizer “bem-aventurado” e sentirmos que o olhar uns dos outros e a presença uns dos outros nos confirma nessa bem-aventurança, que Deus, em Jesus, faz brilhar o coração de cada um de nós. Sintamo-nos, por isso, bem-aventurados, neste encontro de amizade e de amizades.


No seu trabalho, o Tó também faz isso. O trabalho do jornalista é um trabalho complexo. Aparentemente, o jornalista afunda as suas mãos e o seu esforço, o seu amor, em coisas com uma pequeníssima validade. Parece que as notícias só valem um dia. Outros que são professores ou engenheiros ou médicos, se calhar trabalham temas que se prolongam um pouco mais – uma semana, um semestre. Mas trabalhar cada dia, encontrar a matéria na ganga dos acontecimentos, encontrar a chave, o fio condutor, mas fazê-lo dia-a-dia, com a pressa, com a tensão de responder àquele presente… E fazer isto como o Tó faz, sem esquecer o fundamental, sem esquecer que a nossa vida fica por fazer, fica por dizer, fica por compreender se nós não a ligamos ao futuro utópico, se nós não usamos o verbo no futuro e só usamos o verbo no passado e no presente, como normalmente os jornais pedem…


O jornal não é um laboratório para visionários, é para gente que tenta tornar simplesmente legível ou relatar o presente. E, contudo, nesta auscultação da vida religiosa, na sua pluralidade e diversidade que o Tó faz, tantas vezes nós sentimos que ele é uma antena, que ele é um radar para esse futuro. E que ele, no quotidiano cinzento como é aquele em que tantas vezes nós comprámos o seu jornal, ele de repente nos levou ao monte e nos disse coisas que nos transportam mais além. E isso também nós agradecemos.




José Tolentino Mendonça
Homilia na Capela do Rato
10 de Junho de 2011

 [texto gentilmente cedido por António Marujo, a quem agradecemos enternecidamente]