teologia para leigos

12 de junho de 2011

ESPIRITUALIDADE INDIVIDUAL - AS 5 TENTAÇÕES

«sou novamente presa da ilusão» [Fausto, v.1526]


Fausto & Mefistófeles


AS MINHAS TENTAÇÕES
NO DESERTO DO HOJE



Primeira tentação - querer partir do ponto zero. Esqueço-me que a experiência e a tradição contam, pesam, ocupam e estruturam quem sou, mesmo que eu as rejeite ou as deseje rejeitar. Reagir por oposição ao passado em geral e ao meu passado em particular pode ser necessário, mas a minha postura face à tradição e à experiência é que é decisivo daquilo que quero construir. Viver lutando contra a tradição não será continuar a ser refém da tradição que se combate? Pelo menos, no que diz respeito à estratégia ou à metodologia, isso poderá ser pura perda de energia e perda de oportunidade para criar uma alternativa livre, verdadeiramente nova. Acho que avançarei mais leve se aceitar que o caminho se faça sobre a humilde aceitação dos tesouros do passado: o resto, são desvarios mais ou menos votados ao fracasso. Não querer ser uma igreja (católica, luterana, evangélica, etc) é já ser uma igreja, como Derridá o demonstra. Não querer ser um partido (pré ou pós 25 de Abril) é já ser um certo tipo de partido. Não querer ser é já ser um ‘não querer ser’ (o que é uma certa forma de ser).

Segunda tentação – “transformar uma contingência numa eternidade”. [‘Mitologias’, R. Barthes] O voluntarismo é uma forma de decadência. Quando a vontade de superação se torna cega fica às ordens das nossas forças interiores, que a nós, também nos cegam. Sim, Mefistófeles é o Outro, mas esse Outro habita dentro de nós; ele nos explica que, mesmo o que supúnhamos ultrapassado e morto de vez, volta a mexer [Fausto,  «e era ilusão, aquilo voltava a mexer!», v. 11635]. Não podemos parar de pensar. O «esforço do conceito», de que falava Hegel, é inevitável. Quem pretenda criar uma esperança (como dizem os castelhanos, «una ilusion») lavada de qualquer contextualização histórica e social sofrerá uma grande decepção: reconhecerá, à força, que embarcara numa ilusão. A realidade dos sonhos TAMBÉM exige uma certa dose de racionalidade lógica. Viver um momento de felicidade e de paz não nos permite generalizações generosas: tudo tem que passar pelo crivo da conceptualização; até o dom gratuito deve passar por esse crivo sob pena de, ao programatizar-se, se segregar e se constituir numa seita ou num exótico criado para me servir só a mim, no interior dos aposentos da minha cápsula egotista. Transformar uma contingência boa num programa geral é pura alienação adolescente.


Terceira tentação – querer ’resolver’ a dramaticidade e a tragédia. Há que lutar contra a(s) tragédia(s) hodierna(s). Quais são elas? Quantas tragédias existem? O drama do mundo ocidental em sofrimento por um sentido … A tragédia da Igreja cristã, cadáver em decomposição … Ou será que, para além das tragédias, ainda há, a sobrepor-se-lhe, ‘a leitura’ da tragédia, a qual ainda cava mais fundo a tragédia e o drama de existir?! A Igreja e o Mundo Ocidentais sempre foram trágicos, porque filhos do judeo-cristianismo. No Budismo não há tragédia; só no helenismo; só no cristianismo. A tentação que sinto, à minha volta, é a de se querer gerar, na inocência edénica, um espírito a partir dum ponto meio essénico – isso, pressinto-o como irresponsabilidade e cegueira. ‘Querer resolver’ a dramaticidade e a tragecidade da vida é coisificar o ideal e a utopia, e isso confirma-se quando há que programar essa resolução, essa ’solução’. Custa ver onde vai desaguar o rio da ‘leitura da tragédia’: ao mar do desânimo, onde os colectores da raiva e da empertigação despejam o vazio. E, como todos temos horror ao vazio, é inevitável que a tragédia e o drama sejam insuportáveis. Há, portanto, que os ‘resolver’. Há que os evacuar. Há que os esvaziar, enchendo. Enchendo de quê? É aqui que o desânimo se revela como ‘um outro modo de vazio’, quando, lamentavelmente, expressa apenas raiva, ódio, desespero, urticária, ‘botabaixismo’. Não é de admirar que tal desespero seja presa fácil de qualquer proposta quietista, de qualquer espiritualidade que se aproxime de nós a oferecer Paz, Amor, Felicidade, Harmonia, um Coração Novo e tudo de mão-beijada. Diante da oferta grátis (e gratuita…) de tais «realidades cume», quem não se sentirá esmagado por tanto fascínio junto?! Aparentemente, a tragédia abeira-se, assim, de ser resolvida… Diante da necessidade, por todos nós ansiada, do «divino prazer da glória», Mefistófeles diz a Fausto: «Tal incumbência fácil se me antolha, e não temo dar-te riqueza dessa. Mas há um tempo, amigo, vai por mim!, em que só queremos paz e boa mesa.» Fausto responde: «Se um dia a tua lisonja me cegar (…) se com gozos me puderes enganar, que seja esse o meu último dia!» (…) «Então, está dito! Se alguma vez ao momento disser: Fica, tu que és tão belo!, serás então livre de me prender (…)» [Fausto, v.1688-1701].
Aí está: face à nossa incapacidade de organizar o desânimo, não faltam mefistófeles… Eles sabem bem a hora e o momento, eles prenunciam o exacto «momento» [v.1699] do (des)ânimo e sabem que a exaustão é a melhor antecâmara para o desejo, para o  frágil e doente desejo. Porque desarmado, a atitude do desanimado será render-se: «Fica, tu que és tão belo!» [v.1700]. É assim que os mefistófeles agem, de modo a que nós aprisionemos e ‘solucionemos’ toda a tragédia e drama de existir que nos figuram demasiado insuportáveis. Fica momento belo, fica que és belo! – é o melhor grito do que, sem o saber, já está escravo. «Serei escravo no dia em que parar» [v.1710] No dia em que tudo se tornar insuportável, me sentir soçobrar e me surgir, diante do LCD, as miragens: Amor, Felicidade, Harmonia, Sucesso, Anti-qualquer-coisa, em suma, o meu momento zen, eu direi: arrebata-me, pois já não aguento mais tanto drama e tragédia. Desarmado, aceitarei todo o tipo de discurso que me soe a anti tudo o que já vivi.Anti’ funcionará como o irresistível isco. Deixará tudo na mesma, mas isso deve ficar para depois, pois, agora, o ‘momento’ [v.1699] é de ‘paz’ [v.1690] e ‘belo’ [v.1700].


Quarta tentação – separar os traços psicológicos dos traços histórico-sociais. Recordo o relato dos discípulos de Emaús [Lucas 24:13-35]. Aquilo que naquele momento, e hoje mais do que nunca, urgia/urge é organizar o desespero e o desânimo. Virámos as costas à utopia, deixamos de acreditar ser possível o que quer que seja, tudo que nos acena nos recorda o passado e, portanto, enraivece, decidimos ir ficar onde a vida não mexe – Emaús, lugar bucólico, símbolo da paz imediata, da paz e da felicidade JÁ HOJE, AGORA, PRONTA A SER SERVIDA, à mão de semear… Que grande tentação! «E, começando por Moisés e seguindo pelos Profetas, explicou-lhes…» (v.27). «Explicou-lhes»: Jesus, partindo dum facto pontual e integrando-o no seu correcto contexto («explicou»), oferece-lhes a leitura sistémica, a leitura global, a leitura ‘científica’ para o ‘facto pontual’ que acontecera. «Então, os seus olhos abriram-se» (v.31). «Levantando-se, voltaram imediatamente para Jerusalém e encontraram reunidos os Onze e os seus companheiros» (v.33).
Jesus propõe uma alternativa aos refúgios, aos «aqui-tá-se-bem»: Jesus propõe-se organizar o desânimo, combate as respostas fragmentadas para problemáticas sistémicas e sugere respostas globais e científicas. Jesus recusa-se cavar ainda mais fundo o desânimo com discursos do bota-a-baixo ou do «comamos e bebamos que amanhã morreremos». Jesus não vai em purismos: isolados, não seremos diferentes daqueles que criticamos - e regressaram atrás, «a Jerusalém». Para Jesus, a crítica purista, essénica, só dá armas ao adversário. Aquela que verdadeiramente desarma o adversário, é a leitura correcta das causas do mal e a proposta dum espaço grupal que alimente a esperança num mundo outro. A primeira permitirá uma acção política não-ingénua, ridícula e evitará ser fomentadora de novas frustrações [ex.: movimento «15M» em Madrid e outros, Público, 08:VI:2011, p.15]. A segunda, permite-nos a robustez de quem já não quer ir atrás de ‘coros místicos’ ou poéticos e se meta a «drenar o charco», «a última e grande obra» [v. 11561], que é «Abrir o espaço e a esperança a muitos» [v.11563]. Jesus arma os desenganados e desarmados da vida madrasta, oferecendo-lhes uma ferramenta intelectual: «e seus olhos abriram-se» e eles recobraram a vontade e a força de lutar… Leituras individualistas e fragmentadas da realidade fragilizam-nos e aumentam a impotência (porque fragilizam os nossos argumentos). Leituras sistémicas aligeiram-nos de eventuais impotências e culpas e mobilizam-nos para os combates. Leituras que separem os traços históricos dos traços psicológicos das crises fazem o jogo do sistema. A partir de K. Marx, todos os enfoques absolutizadores dos traços espirituais e psicológicos são pura alienação (religiosa, psicológica, política, etc.): insistir que tudo passa pela conversão do coração e que as mudanças sociais e os movimentos político-partidários são secundários e menores é não perceber que o ser humano é um ser AO MESMO TEMPO social e individual. As transformações fazem-se em simultâneo, num vai-vém entre o Mundo e a Igreja, vai-vém, esse, animado pela Utopia do Reino, que tanto sopra no mundo como na igreja e em doses iguais.


Quinta tentação – Babel ou Pentecostes? A Igreja Católica permite-nos não morrermos, nem numa historicização de mármore gelado, nem numa psicologização introspectiva da nossa fé tão ao gosto de frustrados: estes dois grupos sempre acabam isolados e resignados. A Catolicidade é um tesouro! Mas, por favor, não confundam catolicidade com ’os católicos’, nem com ‘a igreja católica’. Porém, não tenhamos medo de molhar as mãos, pois Mefistófeles está por todos os lados… O limite de uma utopia é o limiar de outra! «Que nada ao homem de perfeito é dado, sinto-o agora!» [v.3240-3241] «e assim salto do desejo para o gozo e no gozo aspiro a novo desejo» [v.3249-3250] Porventura, eu desejaria uma «caverna segura» [v.3232], onde o olhar não fosse frio, mas de espanto. O relato da Transfiguração já há muito nos ‘desiludiu’ quanto a isso e os dois anónimos discípulos que residiam em Emaús se encarregaram de nos ensinar que o mesmo caminho que vai para lá também nos pode trazer de volta: verdadeiramente não há dois caminhos – há apenas um caminho! Colocar a questão ‘Babel ou Pentecostes?’ é uma falsa questão, hoje em dia, porque o limite de uma utopia é o limiar de outra! E nós somos apenas ‘vagabundos sem descanso nem ensejo, queda de água rugindo lá no fundo dos escarpados abismos do desejo’ [v. 3348-3351]. Quantas vezes nos dilaceramos em guerras com outros que não passam da 2ª via de uma guerra maior, a que nos faz arrancar penedos de dentro para os despedaçar fora de nós. No Fausto, de Goethe, na Primeira Parte da Tragédia, em Floresta e Caverna, Fausto diz: «Quiseste, Inferno, esta vítima ter! Vem, diabo, a esta angústia pôr fim. O que há-de ser, que seja agora mesmo! Que o seu destino desabe sobre mim e rolemos juntos para o abismo!» [v.3361]

Alto diante da afirmação: «só se é homem no delírio da acção.» [v.1759]
Porque, «serei escravo no dia em que parar.» [v.1750]

Nada do que nos acontece é novo. Faz-nos falta estudar História: história económico-política e história do cristianismo. Isso nos robustece e nos ensina que «a forma nunca existe sem conteúdo» [Goethe]. Viveremos sempre entre Babel e Pentecostes. Os que não fizerem as pazes com isto entrarão em desespero e o desespero é o caminho para o suicídio, tal como já o aprendemos de um discípulo de Jesus chamado Judas. Se formos capazes de saber organizar o desespero e a desilusão, se fizermos o trabalho de casa sem erros voluntaristas e cegos (fundamentalismo ou exclusivismo), se nos esforçarmos por pensar bem antes de nos metermos em aventuras emotivas e ‘a quente’, se desenharmos previamente os nossos projectos sem querermos [como nos ensina o Salmo 131(130)] ir além das nossas pernas, nem correr atrás de grandezas ou protagonismo, se desejarmos vivamente ser pobres, até nos nossos desejos, imprecações ou projectos [Tg 2:5], contemplaremos a misericórdia como num espelho. Sejamos «servos inúteis», visitadores dos desvalidos, amparo dos órfãos e das viúvas e isso será «a religião pura e sem mácula» [Tg 1:27]. Não compremos guerras inúteis… porque o limite de uma utopia é o limiar de outra!

[pb]