teologia para leigos

4 de junho de 2011

A IGREJA E A POLÍTICA - NEUTRAL?


O voto católico bom e o voto católico mau

Jornal «Público», 03.06.2011





Há um voto católico bom e outro mau?
 Parece que há quem defenda que sim. Felizmente, há muito que o pluralismo do voto eleitoral é admitido pela doutrina católica mais ortodoxa – precisamente porque cada pessoa valoriza determinados aspectos em detrimento de outros. Mas há quem advogue ainda que o voto “bom” é aquele que se preocupa basicamente com a moral familiar e sexual (aborto, homossexualidade e, em geral, questões ligadas à “família”, mesmo se a realidade familiar é hoje muito plural). Será assim?

Uma sondagem recente, de que o PÚBLICO deu notícia domingo passado, dava conta que, afinal, a questão religiosa não é decisiva na hora de escolher o voto. Claro, uma sondagem é uma sondagem e não diz mais do que quer dizer. Neste caso, ela cruza dados sobre o modo como as pessoas se situam, na política (com referência às eleições de 2009), por um lado, ou na religião, por outro. Há um dado que este estudo indicia (e apenas isso, por enquanto, pois o tema não era objecto das perguntas e ficou para averiguação em inquéritos posteriores): são as pessoas com mais empenhamento religioso que tendem também a ter mais em conta o factor religioso na hora do voto. Nada mais natural, pode dizer-se.

Se essa dimensão conta mais na vida dessas pessoas, será também mais um factor que pesa na hora de votar. Mas esta importância, entre aqueles que são mais “militantes”, é verdadeira à direita e à esquerda – e não será por acaso que, por exemplo, entre os votantes do Bloco de Esquerda, 29 por cento tenha uma prática religiosa regular. Dois outros dados, aliás, ressaltam desta sondagem: a existência de uma grande percentagem de votantes religiosos em todos os partidos parlamentares – do CDS ao Bloco (entre 70 e 83 por cento, com os mínimos no CDS e no BE e o máximo no PCP); e o forte peso de um ateísmo de direita (é no eleitorado do CDS que há uma maior percentagem relativa de ateus: 11,4 por cento).

Tudo isto vale o que vale, repito. Mas já não vale pretender que os “bons” católicos só votam onde tradicionalmente se defende a “família”. Desde logo, dizer “família”, hoje, inclui hoje realidades tão diversas como pessoas singulares, mães sós com crianças, casais em segundo ou terceiro casamento, divórcios ou pais separados, idosos que vivem sozinhos à noite e frequentam centros de dia, etc… 






Depois, a defesa da família não se esgota em questões como o aborto, a eutanásia ou a homossexualidade, temas tão caros a determinados grupos. Não foi por acaso que os resultados da sondagem referida não agradaram a esses sectores (como revela, por exemplo, um artigo de António Pinheiro Torres, dirigentes dos chamados movimentos “pró-vida”, no PÚBLICO de quarta-feira passada).

Aliás, aqueles nem são mesmo os temas decisivos. Aqueles são temas de quem se preocupa muito com o início e o final da vida e pouco com o que se situa em todo o tempo em que a vida decorre. Ou seja, decisiva é a situação de desemprego em que tantas famílias se encontram. Decisiva é a retirada de benefícios sociais como o Rendimento Social de Inserção (RSI), que nos primeiros anos reabsorveu para o sistema de ensino milhares de crianças que antes não frequentavam a escola (e que deixou de o fazer não por causa da “preguiça” dos mais pobres, mas porque o então Governo do PSD/CDS retirou meios e técnicos ao programa). Decisiva é, por exemplo, a tolerância de alguns políticos em relação às grandes fraudes fiscais que continuam a poder fazer-se no nosso país ou aos mais de 20 por cento de economia paralela (que sonegam grandes recursos ao Estado), por contraste com a absoluta obsessão com as eventuais fraudes no RSI (que são trocos no sistema).





Decisiva é, sobretudo, a situação de pobreza em que vivem há décadas franjas imensas da população portuguesa. Quarenta por cento das crianças, dizia um estudo citado também no PÚBLICO segunda-feira passada. Ou vinte por cento da população, uma taxa imensa que se vem transmitindo de pais para filhos – ou seja, que continua a abranger muitas famílias, como gostariam de dizer determinados grupos. Decisiva deveria ser, ainda mais, a “refundação do sistema financeiro” que o Papa Bento XVI pede na sua última encíclica (Caritas in Veritate).

Hoje, os cidadãos votam em partidos que, de facto, apenas administram uma pequena parcela da vida política de cada país. O verdadeiro poder, que aliás quase ninguém afronta (nem políticos, nem jornalistas, nem sistema judicial), está situado nas sedes de bancos e de mercados bolsistas, de instituições financeiras que se preocupam essencialmente com a especulação e com lucros criminosos, como a presente crise revela – e que o próprio Senado dos Estados Unidos apontou, no relatório divulgado em Abril, dizendo que as agências de notação são as principais responsáveis da crise iniciada em 2008.

Apesar de todos sabermos isso, deixámos (deixaram os políticos europeus e norte-americanos) que as democracias continuassem usurpadas em muitas das suas dimensões por esses poderes obscuros. Poderes que ninguém conhece e que ninguém controla. Neste campo, seria interessante ver, por exemplo, os cursos de economia e gestão da Universidade Católica a contribuir para a “refundação do sistema financeiro” e não para a sua perpetuação e para a propagação do liberalismo mais desenfreado e contraditório com a doutrina social da própria Igreja Católica. Isso sim, deveria ser também decisivo e motivo de reflexão da própria comunidade dos católicos. É que as perguntas (e respostas) decisivas, para católicos (e cristãos em geral) talvez devessem ser as da parábola do juízo final contada no evangelho: “Tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e recolhestes-me, estava nu e destes-me que vestir, adoeci e visitastes-me, estive na prisão e fostes ter comigo.’ ‘Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes.’” Há poucos séculos, o padre António Vieira actualizou estas palavras: “Ministros (…) vedes potências dos grandes e as vexações dos pequenos, vedes as lágrimas dos pobres (…) ou os vedes ou os não vedes. Se os vedes como o não remediais? E se o não remediais, como os vedes? Estais cegos.”

As eleições de domingo são a maior evidência do poder do financeiro sobre o politico e da cegueira a que as nossas democracias se deixaram conduzir, em relação à pobreza, ao desemprego e à exclusão social – esse sim, o problema número um, e decisivo, dos países democráticos.

Domingo, iremos fazer de conta que vamos escolher um Parlamento e um Governo. Na verdade, o primeiro-ministro que sair destas eleições não será muito mais que um executante de um programa já definido por instituições financeiras que nenhum cidadão português escolheu. E se o país tem responsabilidades em muitas coisas, o grau maior da “culpa” desta crise vai inteirinho para a agiotagem de agências de notação, bancos e empresas financeiras cujos interesses são a especulação e o lucro a qualquer preço.

Uma nota sobre o ateísmo e “indiferentismo” religioso de direita, que não é tão despiciendo assim: basta ver que têm sido governos de partidos liberais, democratas-cristãos e sociais-democratas a criar o modelo político e económico que tanto preocupa esses grupos “pró-vida” ou “pró-família”. Por acaso, apesar de todos os problemas que subsistem, a Europa é seguramente um dos bons sítios do mundo para se viver. É, talvez, a região do mundo onde o cristianismo foi levado mais longe, como em tempos escreveu a investigadora Ana Vicente. É na Europa que, apesar dos muitos problemas que subsistem, a defesa dos direitos humanos, a justiça social, a protecção dos mais fracos, a defesa da vida humana nas diferentes fases, mais longe foram levadas e onde conseguiram um alcance mais universal.

Universal e católico são sinónimos. Quem diria?

António Marujo, Jornalista

P.S. – Este sábado, os jornais em papel, as rádios e as televisões irão fazer de conta que não há eleições no domingo. Ninguém poderá falar do tema, por causa de uma lei absurda que continua a fazer dos cidadãos pessoas diminuídas que é preciso proteger. Na internet, continuaremos a poder ler tudo o que se publicou acerca da campanha e do acto eleitoral de amanhã. Quem avança com a revogação dessa lei anacrónica?