POPULISMO:
Resposta ilusória às ansiedades colectivas
De todas as vibrações sísmicas que abalam a democracia, o populismo é uma das mais preocupantes, porque, normalmente, anuncia uma inflexão para a ultra-direita. Como a democracia não é uma forma política imutável, antes, está exposta a contínuas torções, não podemos excluir que, presentemente, estejamos a atravessar uma dessas fases.
O facto de toda a Europa, com as únicas excepções da Espanha (enquanto dura!, a 29:IV:2011) e do Chipre [além de Portugal e da Grécia], ser dirigida por governos de direita não pode ser coincidência. A cada nova eleição é dado mais um passo: os recentes êxitos da ultra-direita na Finlândia parecem completar a série, até ver. Muitas dessas maiorias são populistas. O mais destacado é, sem dúvida, Berlusconi, em Itália, até pela interminável duração do seu mandato. Mas, no pódio, temos também Viktor Orbán, da Hungria, o Presidente francês Sarkozy e o primeiro-ministro holandês Mark Rutte.
Nos Estados Unidos, verifica-se um fenómeno semelhante: os opositores de Obama (de Sarah Palin a Michele Bachmann) são populistas “duros”, ainda que provavelmente nem conheçam o termo. Outros dirigentes latino-americanos seguem um caminho idêntico. Existem análises excelentes sobre o populismo (uma das melhores é a de Yves Mény e Yves Surel, professores de Ciência Política), mas, com os dados recentes, é necessário acrescentar alguns pontos. Vou distinguir dois ângulos de abordagem: o do poder e o do povo.
Do primeiro ponto de vista, o populismo baseia-se no «apelo» directo ao povo, sendo este entendido no sentido ‘vulgar’ de massa portadora de desejos e direitos, mas não de deveres. Daí a ideia de que o líder recebe o poder do povo de forma imediata (sem passar por entidades intermediárias de natureza abstracta, tais como o sistema representativo, as instituições, os órgãos e os poderes políticos). Também a ideia de que o líder faz parte do povo, que só presta contas ao povo e só recebe orientação política dele. (Claro que não é necessário que estas declarações reflictam uma convicção genuína: podem ser mera retórica.)
Mark Rutte, primeiro-ministro da Holanda |
Há uma série de consequências que se baseiam nesta concepção. O corpo legislativo deve concentrar a produção de leis num programa supostamente desejado pelo povo. É quanto basta para fazer retirar dele tudo quanto possa ser perigoso para o líder. Na Itália, o Parlamento afadiga-se, há anos, numa reforma da justiça que é, na verdade, uma «domesticação» da magistratura e a procura de protecção dos poderosos contra o risco de serem acusados. Entretanto, negligenciam-se questões urgentes, como o conflito de interesses ou o relançamento de uma economia em risco.
Daqui resulta a impaciência contra a política e as instituições, a qual é uma das características fundamentais do populismo. As regras da política são apresentadas como resultado de «acordos desonestos»; as instituições, na qualidade de entidades que mantêm o Governo afastado do povo, são pintadas como lentas e surdas à vontade do povo; a complexidade conceptual do direito constitucional aparece como um peso inútil. É significativo que Berlusconi fale frequentemente de «comédia da política» (de que, aliás, ele próprio faz parte há 20 anos) e esteja sempre ausente das reuniões do Parlamento.
O populista sabe, também, que deve mostrar-se ao povo, replicando-lhe modos, preconceitos e lugares-comuns. Assim, o povo fica com a impressão, eficiente em termos eleitorais, de que é ele, povo, que realmente cria essas ideias, por que o que o líder faz, diz e pensa é precisamente aquilo que ele, povo, faz, diz e pensa!
Esta permanente reprodução (sincera ou hipócrita) apresenta-se sob diferentes formas. Berlusconi explora descaradamente alguns costumes «populares» clássicos: diz imensas piadas de mau gosto, reduz questões políticas complicadas a chavões banais e até mesmo ordinários, demoniza grosseiramente os opositores, recorre descaradamente à mentira e a números inventados.
Viktor Orbán, Hungria |
Na Hungria, Orbán orquestra uma campanha (denunciada pela socióloga Agnes Heller) para desacreditar os intelectuais, o que faz recordar tristemente os primórdios do nazismo… Até mesmo a linguagem do povo pode ser útil: o famoso termo «escumalha», de Sarkozy, é um exemplo; tal como o «fora di ball» (literalmente, ‘postos fora pelos tomates’), que Umberto Bossi, ministro da República Italiana, recentemente sugeriu como… solução para o problema da imigração. Desta forma, o povo fica com a impressão de que o líder é como ele, que fala como ele, que pensa como ele.
A culpa é dos «outros»
Do ponto de vista do povo, é fundamental, para o populismo, inventar um «outro», o bode expiatório que possa arcar com todos os erros. Em Itália, os «outros» são de vários tipos. Para Berlusconi, são os «comunistas» e os «juízes»; para a Liga do Norte são os habitantes do Sul, os ciganos e, pior ainda, os imigrantes (os «bongo bongo»); para a direita húngara são os ciganos e os intelectuais; para a direita francesa (na qual coloco, sem distinção, Sarkozy e Marine Le Pen) são os imigrantes e os jovens suburbanos. Esta lista é actualizada em função das necessidades.
Preservar o vínculo com o povo influencia o comportamento pessoal. Os «banhos de multidão», a que Berlusconi, numa imitação de Mussoline, se entrega com frequência, embora mais arriscados [veja-se a agressão com uma réplica da catedral de Milão em Dezembro de 2009], levam o povo a enganar-se a si mesmo e os poderosos a consolidar a sua posição. Berlusconi evoca, com frequência, o seu património.
Depois de prometer comprar uma casa em Áquila após o terramoto de 2009, repetiu a mesma promessa na ilha de Lampedusa («vou tornar-me um lampedusano») numa das suas visitas encenadas, tal como havia prometido albergar as vítimas de Áquila em três dos seus apartamentos.
Não fez nada do que prometeu, mas a ligação com o povo saiu reforçada. As suas escabrosas aventuras sexuais parecem feitas para suscitar simpatia e inveja.
Timo Soini, d'«os verdadeiros finlandeses» |
Neste contexto, a personalização mediática é decisiva: o líder tem de estar sempre sob os holofotes, a lançar mensagens, a criar um desejo de imitação, e um sentimento de afinidade. Na prática, tem de dar a impressão de estar em diálogo directo com os cidadãos (os quais não devem perceber que passaram, entretanto, a espectadores).
Resta entender o que leva as democracias à fronteira, perigosa, do populismo. Não podemos pensar que a democracia, uma vez instalada, é eterna: a sua natureza de «construção difícil» faz com que esteja sempre exposta a crises. Não podemos excluir que a modernidade, com o seu apelo insistente ao hedonismo, ao egoísmo e ao frenesim do consumo (como afirmei no meu livro Le Monstre doux: l´Occident vire-t-il à droit?, Gallimard, 2010; «O monstro tranquilo: estará o Ocidente a virar à direita?»], seja, ela própria, intrinsecamente «antidemocrática».
Neste sentido, o populismo pode ser uma manifestação de impaciência em relação à democracia, mais forte ainda porque emergem na cena política grupos portadores de poderosos interesses pessoais. E tudo piora quando se apresentam com a arrogância que é favorecida por um baixo nível cultural. Nesta interpretação, o populismo é o precursor político do fascismo, independentemente da versão e forma deste último. Elementos conjunturais acrescentam-se a esta característica estrutural: no presente momento da história da Europa, por exemplo, o populismo é a resposta, sob a forma de punição, aos fenómenos dramáticos da actualidade.
Acima de tudo, é uma resposta à imigração em massa e à sensação de que ninguém a controla; por outro lado, é uma resposta ao esbatimento das fronteiras, o que alimenta no povo o temor de que o «outro» venha a invadir a «sua» terra.
refugiados kosovares na Macedónia, 1999 |
Por outras palavras, o populismo é uma reacção a situações de «medo colectivo», genérica ou específica, como as que são características do nosso tempo. Antes que isto se volte a transformar num pesadelo, cabe às esquerdas (ainda que nem todos os seus líderes sejam imunes aos riscos do populismo), bem como às instituições europeias, tão expostas ao perigo como as instituições nacionais, assumir o desafio de lutar contra ele.
Raffaele Simone, linguista
Lemonde.fr
[in Courrier International, ed. portuguesa, nº184, Junho 2011, pp. 24-25]