teologia para leigos

29 de fevereiro de 2012

JESUS É DEUS? 1/2

Pretende-se apresentar esta obra e aguçar o apetite aos teólogos. E, porque não, aos «leigos em terra de cegos…» como eu!?

I/II





Os primeiros cristãos prestaram culto a Jesus?

 
A pergunta

A característica fundamental que distingue e define o cristianismo reside no estatuto que se concede ou se reconhece a Jesus. Tal facto constitui também o obstáculo principal no diálogo inter-religioso entre cristãos e judeus, bem como entre cristãos e muçulmanos. Os judeus e os muçulmanos, muito simplesmente, não podem aceitar o estatuto divino de Jesus como Filho de Deus, estatuto que os cristãos, no entanto, consideram fundamental para a sua fé. A concepção de Deus como Trindade desconcerta-os. Considerar que Jesus é um ser divino, digno de ser destinatário de culto como Deus é, constitui, para eles, uma clara rejeição da unicidade de Deus. Ou seja, eles pensam que se trata mais de uma forma de politeísmo que de monoteísmo. E, a bem dizer, são inúmeros os cristãos que consideram desconcertante a concepção de Deus como Trindade. A não ser no âmbito das categorias filosóficas gregas que o vocábulo pressupõe, confessar a fé na Trindade, servindo-se da expressão «essência» (ou «substância»), não tem a mais pequena importância para a maioria dos que dizem ou proclamam o credo niceno-constantinoplitano; e, dado o significado que actualmente tem o conceito «pessoa», a distinção entre «pessoas», na natureza divina, faz com que se entenda Deus de uma forma mais triteísta que trinitária, ou seja, como um ser formado por três «pessoas» individuais e diferentes.

Diante de isto, talvez seja útil olhar retrospectivamente o começo do processo que desembocou na formulação da doutrina cristã da Trindade e clarificar, assim, a verdadeira razão que levou que se confessasse Jesus como Filho de Deus recorrendo às categorias trinitárias. Os termos ‘essência/substância’ e ‘pessoa’ foram, seguramente, escolhidos com muito cuidado e o seu uso foi sendo apurado à custa de todas as controvérsias suscitadas pelo exacto estatuto que Jesus tinha, as quais sacudiram os primeiros séculos do cristianismo. Ora, o que se passa é que para a maioria dos cristãos e para aqueles que participam no diálogo inter-religioso tornar-se-ia realmente muito difícil recuperar e apreciar essas subtilezas sem se deixar submergir intensamente nos debates filosóficos da antiguidade (só entendíveis por uma minoria) altamente consumidores de tempo. Sendo assim, talvez seja mais proveitoso ir investigar mais para lá (para trás) desse processo que deu, ao cristianismo, as fórmulas do credo e procurar fazer uma análise mais exaustiva do seu começo, isto é, fazer a pergunta sobre o que aconteceu e o pôs em marcha, porque razão os cristãos quiseram falar de Jesus com terminologia que se aplicava à divindade e o que foi que os levou a prestar culto a Jesus como se fosse Deus.

O título do livro é, certamente, controverso e isso foi intencional já que o tema o é, em si mesmo, inevitavelmente controverso também: ‘os primeiros cristãos prestaram culto a Jesus? A resposta que a maioria dos cristãos está disposta a dar imediatamente é a seguinte: “Claro que sim”. E se desejassem aduzir algum testemunho como prova disso podiam recorrer rapidamente a uma das cenas finais do evangelho de João, aquela em que Tomé, um dos doze apóstolos, se dirige ao Ressuscitado, dizendo-lhe: “Meu Senhor e meu Deus” [Jo 20:28], isto é, usando uma confissão de fé que pressupunha que se lhe rendia culto. Igualmente, poderia citar o grande poema ou hino que Paulo escreveu na Carta aos Filipenses, que culmina proclamando que todos os joelhos no céu e na terra se dobrem e que toda a língua confesse que Jesus Cristo é Senhor [Fl 2:10-11]. Ou poderia recorrer ao Apocalipse, onde o vidente contempla milhares de anjos cantando com voz forte: «Digno é o Cordeiro, que foi imolado, de receber o poder e a riqueza, a sabedoria e a força, a honra, a glória e o louvor.» [Ap 5:11-12]. Não há dúvida que os primeiros cristãos prestaram culto a Jesus.

Mas, ao mesmo tempo, não se pode excluir ou ignorar o elemento que suscita a controvérsia, pois o Novo Testamento inclui também relatos nos quais o próprio Jesus censura a ideia de que se possa dar culto a alguém que não Deus. Ora, aquando do relato das Tentações, quando Satanás lhe diz que lhe dê culto, Jesus responde-lhe explicitamente: «Darás culto ao Senhor teu Deus e só a Ele servirás» [Mt 4:10; Lc 4:8].  A seguinte questão tem, inevitavelmente,  que ser colocada: «Jesus teria igualmente censurado os que tentassem prestar-lhe culto?». Outras passagens recordam-nos que Jesus afirmava a alteridade singular que é exclusiva de Deus. Por exemplo, quando alguém, que busca a vida eterna, se lhe dirige chamando-o de ‘bom mestre’, Jesus responde-lhe: «Porque me chamas de ‘bom’? Só Deus é ‘bom’» [Mc 10:17-18]. Mais uma vez se nos coloca a inevitável questão: «Teria, Jesus, aceite que o considerassem um ser igual a Deus?». Vejamos um outro exemplo, desta vez de Paulo. Uma característica impressionante e que define as suas cartas é a sua habitual referência a Jesus como Senhor, pelo que, como veremos, é o título que com mais claridade reconhece o estatuto divino de Jesus. Sem dúvida, em várias passagens, Paulo fala também de Deus como “o Deus… de nosso Senhor Jesus Cristo” [Rm 15:6; 2Cor 1:3; 11:31; Cl 1:3; Ef 1:3.17; cf também 1 Pe 1:3]. Deus é o Deus de Jesus, inclusivamente, de Jesus como Senhor.

É evidente que os aspectos ligados aos testemunhos neo-testamentários têm que ser analisados com mais exaustão, mas existem, também, outros dados que procedem inclusivamente da primeira ou da segunda geração cristã, que exigem que lhes prestemos atenção se realmente queremos dar uma resposta a uma questão aparentemente simples como é a de saber se os primeiros cristãos prestaram culto a Jesus. Porém, convém que advirtamos desde já que, para responder à pergunta, não bastará que citemos umas quantas passagens. Temos que admitir que o caminho que leva a ela pode tornar-se difícil ou mais desafiante do que pareceria à primeira vista, e que a resposta não é assim tão simples como pressupúnhamos.

Aqueles que estão familiarizados com o debate recente à volta deste tema estão bem conscientes da importante contribuição de eminentes especialistas do Reino Unido. Larry Hurtado (Edimburgo) publicou uma série de estudos nos quais desenvolve a tese de que o culto a Jesus se praticava poucos anos depois do começo do cristianismo (que não se trataria de um desenvolvimento tardio do cristianismo primitivo) e num contexto de devoção exclusiva ao único Deus, tal como a Bíblia defende. [L. W. Hurtado, Lord Jesus Christ: Devotion to Jesus in Earliest Christianity, Eerdmans, Grand Rapids 2003; o objectivo de Hurtado é «demonstrar que deram a Cristo os tipos de devoção que podemos interpretar adequadamente como uma adoração cultual plena, e que podemos descrever correctamente o culto cristão das primeiras décadas como um culto autenticamente ‘binitário’. Dito de outro modo, sustento que, nesta fase surpreendentemente antiga, o culto cristão possui dois destinatários, Deus e Cristo, ainda que os primeiros cristãos se entendem a eles mesmos como monoteístas e não pensem que incluir a Cristo na sua vida de piedade comprometa de modo algum a unicidade do Deus único ao que se converteram mediante o Evangelho.»]

Neste mesmo período, Richard Bauckham (anteriormente, professor no St. Andrews University, Escócia) tem desenvolvido um raciocínio deveras impressionante mediante o qual demonstra que, praticamente desde o começo do cristianismo judeo-palestiniense, Jesus foi venerado como alguém que partilhava ou estava incluído na identidade singular do Deus único de Israel (“monoteísmo cristológico”) [R. Bauckham, Jesus the God of Israel, Paternoster, Milton Keynes 2008; «O predomínio da centralidade do culto dado a Jesus no cristianismo primitivo a partir duma data precoce foi frequentemente desvalorizado tal como a importância disso para compreender o desenvolvimento da cristologia».]

A relevância que, quer Hurtado, quer Bauckham, dão ao culto (ou devoção cultual) a Jesus no cristianismo primitivo e a importância que os dois conferem à prática e à experiência real disso na configuração e na definição da cristologia dos primeiros cristãos, provocaram em mim o desejo de realizar um estudo centrado nesta questão capital: «Os primeiros cristãos prestaram culto a Jesus Atrevo-me a entrar no debate, não tanto porque esteja em desacordo com Hurtado e Bauckham – na verdade, coincidimos substancialmente na interpretação da maioria dos textos e nos temas em discussão –, mas porque me preocupa que seja assegurado o quadro de conjunto e que não se omitam os textos que têm muito maior complexidade e que, eventualmente, podem entrar em choque com os textos de base que configuraram as perspectivas dos dois autores. Se, no final, todo o material que compaginarmos conduz a respostas (à nossa questão central) do género “sim, de facto, mas reparem também que…” e não apenas a um simples e categórico “sim”, então é importante que não se assobie para o ar ou se ignore. É lógico e compreensível que desejemos encontrar um resumo nítido ou uma explicação simples sobre estas profundezas, contudo é provável que a verdade sobre Deus (incluindo o “monoteísmo cristológico”) se esquive a uma expressão tão diáfana. Tendo isso em mente, devemos estar abertos a essa possibilidade, já que, ao contrário, podemos correr o risco de pensar que conseguimos exprimir real e adequadamente o inexprimível.

O alcance da nossa investigação é muito limitado – limitado, principalmente, à primeira geração cristã (incluindo em particular, inevitavelmente, Paulo) −, reconhecendo, contudo, que não podemos excluir o resto do Novo Testamento. Mesmo assim, será um grande desafio, sobretudo porque tentaremos ouvir como foram escutados (e como se supunha que deveriam ter sido escutados) estes textos pelos seus primeiros destinatários, antes que aquela voz chegasse a ser afogada pelo modo como foram escutadas os textos no turbilhão das controvérsias havidas entre os séculos II e IV.

Avançaremos do seguinte modo:

1.   Necessitamos de saber se o «culto» se devia somente a Deus (ou aos deuses). Precisamos de definir o que é o culto e se o culto oferecido a Deus (ou a um deus) é o que o(a) define como “Deus” ou “deus”/”deusa”.
2.   Precisamos de perguntar que consequências tinha prestar culto ao Deus de Israel. Que significado tinha «prestarás culto ao Senhor, teu Deus, e somente a Ele servirás»?
3.   Já que o culto é a resposta humana àquilo que é percebido como auto-revelação de Deus, indagaremos como é que esta auto-revelação era entendida em Israel e na religião na qual se formou Jesus e, bem entendido, os primeiros cristãos (que eram todos judeus).
4.   Enfrentaremos a questão de saber se Jesus era monoteísta. Jesus afirmou a unicidade de Deus tal como a sua ancestral religião insistia?
5.   Analisaremos a convicção de que Deus exaltou Jesus à sua direita, e o modo como isso contribuiu para o seu reconhecimento como ser divino. Que sentido tinha isso para os primeiros cristãos? Terá implicado uma redefinição e uma recolocação da questão da natureza de Deus e uma nova apreciação acerca do estatuto de Jesus?


Espero deixar bem claro que os primeiros cristãos não prestaram culto a Jesus em alternativa ao culto de Deus, mas que aquele era um modo de prestar culto a Deus, ou seja, que o culto a Jesus é apenas possível e aceitável dentro daquilo que actualmente concebemos como marco trinitário. Não é cristão prestar culto a Jesus que não seja um culto a Deus mediante Jesus, ou, dito com mais rigor, um culto a Deus mediante Jesus no Espírito. (…)


James D. G. Dunn, director emérito da Cátedra Lighfoot do Departamento de Teologia da Universidade de Durham (Inglaterra)

“Dieron culto a Jesus los primeros cristianos? Los testimonios del Nuevo Testamento”, Verbo Divino, Estella (Navarra) 2011, Espanha. ISBN 978-84-9945-234-0  [pp.7-13]