teologia para leigos

28 de fevereiro de 2012

JESUS É DEUS? 2/2

Pretende-se apresentar esta obra e aguçar o apetite aos teólogos. E, porque não, aos «leigos em terra de cegos…» como eu!?


II/II





Os primeiros cristãos prestaram culto a Jesus?

 
Resultados


Os resultados deste estudo são assombrosos.

Em primeiro lugar, Jesus de Nazaré existiu historicamente. Foi executado no período de tempo em que viveu a maioria dos autores que escreveram os livros do Novo Testamento. Teve uma grande influência como profeta e mestre excepcional durante a sua missão. Os seus seguidores pensaram que ele era o Messias que Israel ansiosamente esperava, mas ao mesmo tempo estavam convencidos de que a ressurreição aguardada para os finais dos tempos tinha acabado de acontecer nele e que Deus o havia exaltado à sua direita. Consideraram-no o seu Senhor e não duvidaram em atribuir-lhe aquilo que diversas passagens das Escrituras haviam atribuído somente ao Senhor Deus. Invocavam o seu nome na súplica e na oração. Associaram-lhe as funções que os sábios e os teólogos de Israel tinham atribuído à Sabedoria e à Palavra de Deus, inclusivamente, aquelas funções que tinham tido como agentes divinos no acto da criação; a personificação fez-se pessoa em Cristo. Atribuíram-lhe a efusão do Espírito e seu poder vivificante. O vidente do Apocalipse teve visões sobre o culto universal dado ao Cordeiro. Aplicou-se-lhe o título ou a posição de Deus/deus.

Mas, em segundo lugar e ao mesmo tempo, os seus seguidores recordavam que este personagem não era outro senão Jesus de Nazaré, que compartilhava com eles o mesmo credo monoteísta, que proibia que se prestasse culto a quem quer que seja que não fosse Deus e que orava a Deus como expressão da sua necessidade e dependência face a Deus. Consideravam que Jesus exaltado era o mediador através do qual se abeiravam de Deus, aquele em cujo nome e mediante o qual davam graças e glória a Deus, aquele que sentado à direita de Deus intercedia por eles. Reconheciam que Deus continuava a ser o Deus de Jesus, inclusivamente, o Deus de Jesus enquanto Senhor. É provável que lhe tivessem aplicado deliberadamente as metáforas da Sabedoria e do Logos, como extensão e reelaboração criativa das imagens expressivas usadas pelos sábios e teólogos de Israel, como fruto de uma «mutação», na expressão de Hurtado. De igual modo, a aplicação de theos tinha uma restrição semelhante, ou seja, pretendia afirmar que Deus era sempre maior do que aquilo que se poderia ver em Jesus e através dele. Em suma, Jesus é o último Adão mas também Senhor, mediador e Salvador, o que orava por eles e aquele cujo nome invocavam.

Mas as nossas descobertas não se resumem adequadamente a estes dois tipos de listagem aparentemente divergentes, pois a impressão geral com que ficamos, depois da nossa investigação, é que Jesus era entendido como a encarnação da cercania do próprio Deus; que Jesus era, num sentido real, o próprio Deus abeirando-se da humanidade; que, enquanto Senhor, Jesus participava plenamente no único senhorio de Deus; que, à semelhança da Sabedoria e da Palavra, e como Sabedoria e Palavra deveria ser entendido como sendo o próprio Deus dando-se a conhecer aos seus; que o Espírito de Deus deveria ser reconhecido, a partir de agora, como Espírito de Cristo. Tal como nos dois primeiros capítulos vimos que Cristo era, para os primeiros cristãos, o meio e o caminho através do qual podiam chegar a Deus, agora provamos que se foi consolidando a impressão de que também o viram como o meio e o caminho através do qual Deus se aproximava imensamente da humanidade. Jesus, enquanto mediador, mediava nas duas direcções: não somente em direcção a Deus, mas também a partir de Deus. Jesus era para eles a síntese e a encarnação divina.

Ao apresentar os nossos dados diante da pergunta fundamental que fazemos a nós próprios, ou seja, se os primeiros cristãos prestaram culto a Jesus, a resposta que se impõe parece ser negativa, ou seja, eles não sentiam que deviam prestar culto a Jesus em si mesmo, nem por si mesmo. Jesus não tinha que ser destinatário de culto como se ele fosse totalmente Deus ou como se ele se identificasse plenamente com Deus, nem muito menos por ser um deus.

A sua veneração entendia-se como culto prestado a Deus n’Ele e mediante Ele, o culto de Jesus-em-Deus e de Deus-em-Jesus. E, por conseguinte, o monoteísmo cristão, se quer ser monoteísmo verdadeiro, tem que continuar a afirmar que só Deus, só o  Deus único, deve ser o destinatário do culto. No conjunto das religiões monoteístas, a especificidade cristã encontra-se na sua afirmação de que a Deus se presta o mais efectivo culto em Jesus e mediante Jesus, e, num sentido real, mas definitivamente inquantificável, como (revelado em) Jesus.


A resposta

A investigação clarificou uma série de questões importantes que contribuíram para responder à pergunta fundamental sobre se os primeiros cristãos prestaram culto a Jesus.

O primeiro ponto é que existem alguns problemas e, inclusivamente, alguns perigos no culto cristão se este se definir com excessiva simplicidade como um culto prestado a Jesus. Porque se dermos como sério aquilo que emerge desta investigação, como consequência aparecerá, como evidente, que ele pode degenerar naquilo que poderíamos denominar uma ‘jesuolatria’, ou seja, não simplesmente um culto a Jesus, mas um culto que nele não será referido ao Deus único e ao Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Utilizo o termo ‘jesuolatria’ num sentido paralelo ou próximo de ‘idolatria’. Tal como os profetas de Israel advertiram várias vezes, o desastre da idiolatria acontece quando o ídolo é visto como o deus ao qual se deve prestar culto, de modo que o ídolo substitui o deus, ocupa o lugar de Deus e o culto devido a ele é absorvido pelo primeiro. O perigo da jesuolotria é parecido: Jesus substitui Deus, ocupa o lugar único do Criador e absorve o culto que só se deve a ele. Eis o perigo que ajuda a explicar porque é que o Novo Testamento se refere a Jesus usando o termo “ícone” (eikõn): o ícone do Deus invisível. O longo debate que se produziu no cristianismo do Oriente deixou claro o quanto importante é distinguir entre ídolo e ícone. O ídolo é uma imagem na qual o olho se fixa, é um muro sólido no qual o culto chega e aí termina. O ícone, por seu turno, é uma janela que o olho atravessa, uma janela através da qual se pode ver o que está para além dela, através da qual se pode vislumbrar a realidade divina. Por conseguinte, o perigo de um culto convertido predominantemente num culto a Jesus acontece quando o culto a Deus se detém em Jesus e se afoga e curto circuita a revelação de Deus através de Jesus e do próprio culto que mediante ele se dá a Deus. Por isso, uma das mais destacadas personalidades (e teólogo) dos começos do movimento carismático no Reino Unido escreveu um livro intitulado ‘The Forgotten Father’. [T. A. Smail, The Forgotten Father, Hodder & Stoughton, Londres 1980; «Existe uma jesuologia que pode ofertar um amor muito humano a um Jesus muito humano e reenviar Deus para uma transcendência tão remota que nos voltaremos a encontrar com a ideia que temos que nos agarrar a um Jesus bondoso que nos justifique face a um Deus longínquo e talvez enfadonho… Orar a Jesus em vez de fazê-lo, mediante Ele, ao Espírito, em vez de orar em Ele, como é tão habitual entre nós, aumenta a nossa desconfiança no Pai» (p.169). Hurtado expressa uma preocupação semelhante com o culto que confunde Deus com Jesus [‘Origins’, pp. 103-106] e conclui dizendo: «O culto verdadeiro a Jesus é o culto ao único Deus mediante Jesus Cristo que o revelou de um modo único»]. Devemos ir adiante tendo em conta esta advertência.

Dito de outro modo, na valorização que o Novo Testamento faz de Jesus ocorre tal gama de matizes que a pergunta sobre se os primeiros cristãos prestaram culto a Jesus pode facilmente ficar obscurecida. O Jesus cujo nome é invocado na oração é também o Jesus que intercede pelos seus. O Jesus que é Senhor e imagem de Deus é também o último Adão e o modelo com quem se conformam os crentes, o irmão maior na família da nova criação. O Jesus mediante o qual Deus se fez francamente mais próximo da humanidade é também o Jesus mediante o qual os que prestam culto se aproximam de Deus: ele é o mediador.

Um segundo ponto que deve assinalar-se trata do tema que lhe corresponde, a saber, se o culto a Jesus constitui uma negação da reivindicação que o cristianismo faz de ser uma religião monoteísta. Como já dissemos na introdução («a pergunta»), as outras duas grandes religiões monoteístas, o Judaísmo e o Islão, fazem essa crítica ao culto cristão. Mas, tal como foi ficando claro ao longo desta investigação, a concepção de Deus como uno, a concepção da unidade de Deus, não é assim tão fácil de definir como pressupõem essas críticas. A Unidade ou a unicidade de Deus não é uma simples unidade matemática. Um conhecimento mínimo das matemáticas, desde a antiguidade até ao presente, será suficiente para lembrar que o conceito de ”número” é mais complexo do que provavelmente parece à primeira vista, uma vez que vai além duma mera contagem de maçãs e laranjas, euros e cêntimos. Recordemos, por exemplo, que quando Paulo fala do corpo de Cristo insiste em que o corpo é uno, que o corpo constitui uma unidade, mas igualmente sublinha que o corpo é formado por numerosos e diversos membros.

 A unicidade não é necessariamente uma entidade singular em todos os elementos que a tornam una, que constituem a sua unicidade. Dito de outro modo, uma entidade singular pode ser demasiado grande ou demasiado complexa (o cosmos, por exemplo) para que possa ser abarcada na sua singularidade. Tudo quanto se pode perceber são aspectos diferentes, aspectos que não se podem integrar num só (por exemplo, na física fundamental ninguém conseguiu até agora construir uma teoria de campo unificado); pois bem, as insuficiências da nossa conceptualização não constituem uma negação da singularidade da entidade. Do mesmo modo, não se deveria dar por assente que a unicidade de Deus se pode definir como uma unidade matemática no seu sentido estrito.

Desde que Israel conceptualizou a unicidade de Deus também se admitiu a diversidade de modos segundo os quais ele se dava a perceber ou se dava a conhecer. O Deus único deu-se a conhecer na, ou mediante a forma angélica, deu-se a conhecer como Espírito, como Sabedoria ou como Palavra sem minguar em nada a sua alteridade, a sua transcendência, o seu ser como Deus único. Por conseguinte, as definições de monoteísmo, da unicidade de Deus, não devem ser formuladas tão estritamente ao ponto de excluir a reflexão que sobre este tema encontramos na Bíblia hebraica ou no Antigo Testamento e no Judaísmo primitivo. O cristianismo pode sempre justificar que a sua valorização de Jesus começa com essa reflexão e se desenvolve a partir dela, mas sem pôr em causa o monoteísmo cuja realidade complexa essa reflexão tratava de explicar, por mais inadequada que seja e por mais permeável que estivesse a uma interpretação errónea do monoteísmo que queria defender.

Um terceiro ponto que emergiu é que a reflexão cristã sobre a importância e a posição de Jesus surge a partir do magno esforço, por parte do cristianismo, em dar uma resposta ao modo como se poderia atravessar o abismo existente entre o divino e o humano. Cada uma a seu modo, todas as religiões são tentativas de afirmar que é possível atravessar o abismo infinito entre o Criador e a criação e de mostrar o modo como isso pode ser feito. Em cada uma delas jogam um papel essencial o lugar e o tempo sagrado, a liturgia e o ritual, as escrituras e as personagens sagradas (sacerdotes e legisladores, profetas e sábios). Mas o cristianismo deu um salto para a frente ao declarar que Deus cruzou o abismo, não só na escritura e no templo, nem somente graças ao sacerdote e ao profeta, mas num indivíduo determinado mediante o qual se revelou e que se constitui em ponte sobre o abismo. Os judeus e os muçulmanos continuam a pensar que esta afirmação vai longe demais, mas os cristãos sustentam que nunca se revelou tão plena e profundamente a natureza de Deus como em Jesus – na sua missão, na sua brutal morte de cruz, na sua ressurreição e exaltação. A morte de Jesus levou a que os cristãos sentissem a necessidade de falar dum Deus que sofre – até dum “Deus crucificado” −, de que Deus conhece, a partir de dentro, a debilidade e as tentações da condição humana e pode, portanto, apoiar as pessoas e os povos nos seus desconcertos e nas suas dúvidas, nas tribulações e sofrimentos. Esta concepção acerca do modo de atravessar o abismo é demasiado controversa para que outras religiões a aceitem, mas é a contribuição que o cristianismo oferece para a resolução da angústia e do enigma existencial que se encontra na raiz de todas elas. Os cristãos sentem tal confiança no facto de, em Jesus e mediante Jesus, Deus se ter revelado com tal claridade, que recomendam esta concepção ao mundo mais vasto das religiões como sendo a visão mais profunda acerca da realidade divina à qual a humanidade pode aceder.

À luz desta reflexão e desta conclusão pode dar-se o caso que a pergunta se ‘os primeiros cristãos prestaram culto a Jesus’ seja menos relevante, menos importante e seja potencialmente enganadora. A ela pode-se responder de forma simples ou de forma simplista, com desdém ou com uma resposta essencialmente negativa. Em termos gerais, os primeiros cristãos não prestaram culto a Jesus como tal. É certo que o vocabulário e a realização de culto surgem aplicados, em certas ocasiões, no Novo Testamento a Jesus, mas, tendo em conta o conjunto na sua totalidade, constata-se uma certa reserva especial face a este tema. Cristo é sobretudo o tema dos louvores e dos hinos, o conteúdo do culto cristão primitivo, mais do que o destinatário do culto e do louvor.  Mais frequente (na investigação) é a convicção de que o culto mais efectivo (o único?) ou a oração mais efectiva realiza-se em Cristo e mediante ele, o que também quer dizer que encontramos uma clara convicção (a qual se expressa de formas várias) de que Jesus é quem torna possível o culto, isto é, que Jesus é, num sentido profundo, o lugar e o meio através do qual se leva a cabo o culto. Assim, ficou claro que os primeiros cristãos não concebiam Jesus somente como aquele através do qual chegavam a Deus, mas também aquele através de quem Deus havia chegado aos crentes. Mesmo a convicção de que Deus se expressava imanentemente no Espírito, na Sabedoria e na Palavra isso também foi experienciado de forma muito mais plena em Cristo e através dele. Ele trouxe a presença divina até à experiência humana de modo muito mais pleno, de um modo jamais conhecido até então.

Por conseguinte, pode-se – e talvez se deva – responder com um «não» à nossa pergunta fundamental, mas nunca se o resultado é um culto menos adequado a Deus, na medida em que o culto que o cristianismo representa e que constitui a sua contribuição específica ao diálogo religioso, é o culto a Deus tal como o tornou possível Jesus, isto é, o culto a Deus tal como se revela em Jesus e mediante ele. O cristianismo continua a ser uma religião monoteísta, na medida em que afirma que o único destinatário do culto é Deus. Mas, como podem os cristãos recusar a honra àquele mediante o qual crêem que o Deus único se revelou mais plenamente, àquele mediante o qual o Deus único se acercou radicalmente da condição humana?

Jesus não pode deixar de estar presente no culto, nos hinos de louvor e nas petições dirigidas a Deus. Mas este culto é e deve ser sempre oferecido para a glória de Deus Pai. Este culto é e deve oferecer-se sempre com o reconhecimento de que Deus é tudo em todos e de que a grandeza do Senhor Jesus exprime e afirma a grandeza do Deus único com uma claridade que qualquer outra realidade do mundo não é capaz.


James D. G. Dunn, director emérito da Cátedra Lighfoot do Departamento de Teologia da Universidade de Durham (Inglaterra)

“Dieron culto a Jesus los primeros cristianos? Los testimonios del Nuevo Testamento”, Verbo Divino, Estella (Navarra) 2011, Espanha. ISBN 978-84-9945-234-0 [pp.180-188]