teologia para leigos

8 de fevereiro de 2012

TEOLOGIA FEMININA 2/2







Teologia feminista

2/2


«Quem dizem as mulheres que Eu sou?»


Uma leitura a partir da categoria do género

 
Esta categoria, não só não abriu horizontes novos, como também ajudou a desmontar o patriarcado. Ela permite-nos reconstruir toda a teologia. Este perspectiva não diz respeito apenas às mulheres – exige diálogo entre homens e mulheres. É um grande desafio ao trabalho que está a começar a fazer-se. [cf. D. Irarrazaval, ‘Theology with Gender Perspective’ − apresentação no Encontro da Comissão Teológica da EATWOT, Rio de Janeiro, Maio 1998. Será publicada em Voices from the Third World’]

Para superar a teologia patriarcal é necessário construir uma nova epistemologia fundamentada numa nova antropologia, numa nova ética e numa nova espiritualidade. [cf. A.M. Tepedino – M.P. Aquino (ed.) ‘Entre la indignación y la esperanza: Teologia feminista Latino americana’, o.c., documento final; cf. também ‘Final Statement of the «Women against violence» dialogue’, em ‘Voices from the Third World’, vol XVIII, 1, (Junho 1995), pp. 211-219] As categorias epistemológicas para essa nova antropologia, nova ética e nova espiritualidade são o corpo, o quotidiano e o relacional, as quais sempre foram subvalorizadas no pensamento tradicional e na teologia tradicional.


O corpo

Ivone Gebara afirma que o corpo é o novo ponto de partida da teologia. «Partir do corpo é partir da primeira realidade que somos e conhecemos. É afirmar e reconhecer a sua maravilha e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de dizer o que quer que seja se ele for ignorado.» [I. Gebara, ‘A Mulher, contribuição à Teologia Moral na América Latina’, in M. Fabri (coord.), ‘Temas Latino americanos de Ética’, Santuário, Aparecida 1988, pp. 195-210]


É verdade que eu sou o meu corpo. É com ele que eu me faço presente no mundo, me relaciono com outras pessoas, com Deus, com a natureza, com Pacha Mama [a grande Mãe-Terra, na denominação dos povos pré-colombianos] O cosmos passa pelo nosso corpo: olhos, ouvidos, mãos, emoções, sentimentos, razão. O corpo sempre foi depreciado pela teologia e pela Igreja, por questões relacionadas com o dualismo. Sobretudo, a corporeidade feminina foi menosprezada por causa duma leitura sexista de Génesis 2 e 3 que nela vê apenas sedução. No entanto, «partir do corpo é redimir o corpo humano total: o do homem e o da mulher. É lutar pela ressurreição, pela sua vida com as armas da vida.» [ibidem]

«Tomar o corpo como ponto de partida da teologia é acolher uma antropologia unitária que procura superar os dualismos e englobar as ambiguidades inerentes à existência humana. Só um fundamento antropológico unitário poderá recriar o homem e a mulher como imagem de Deus e Deus como imagem do homem e da mulher.» [ibidem]

Se começo a dar-me conta da importância do meu corpo tenho que reconhecer que todo o meu comportamento, inclusivamente o comportamento ético, tem como ponto de partida a experiência corporal.


A relação

As mulheres como grupo social − ontologicamente abertas a acolher outros corpos − acrescentam um novo fundamento à ética feminina: a relação. As mulheres dão muita importância às relações como uma outra porta para o conhecimento – trata-se de uma outra forma de aprender, que integra o afectivo e o racional. A relação chega-nos através do corpo, pela emoção, pelo sentimento, pela razão, pela compaixão e termina no compromisso ético. Uma teologia feita com paixão e compaixão [A.M. Tepedino, ‘Feminist Theology as Fruit of Passion and Compassion: Women Doing Theology’, in V. Fabella – M. Odoyuye (Org.), ‘Passion and compassion. Third World Women Doing Theology’, Orbis, Nueva York 1988, pp. 165-172], com sentimento e solidariedade, tem como mediação a categoria ‘relação’.

Rita Brok afirma: «Necessitamos duma teologia que revele o coração (COR) do universo. Coração, não entendido de maneira sentimental, mas como metáfora da nossa capacidade de sintonizar com outras pessoas para estabelecer relações, intimidade.» [R.N. Brock, o.c., p.86] Para o semita, o «coração» é a pessoa humana total: corpo, espírito, razão e paixão.

Não esqueçamos que, no sentido bíblico, «conhecer» significa conhecimento de todas as dimensões humanas, incluindo a dimensão sexual (cf. Génesis 4:1 − «Abraão conheceu Sara»). O conhecimento do coração integra corpo, emoções, sentimentos, razão, aspectos espirituais, a única forma de evitar o dualismo. Eis como poderíamos construir uma antropologia integral a partir da qual tudo estivesse inter-relacionado.


O quotidiano

A experiência do quotidiano, como categoria hermenêutica, como tema das ciências humanas, está unida à crítica da racionalidade. Converte-se numa outra porta de conhecimento e tem como ponto de partida uma multiplicidade de vertentes críticas do conhecimento. [cf. A. Heller, ‘O cotidiano e a história’, Paz e Terra, Rio de Janeiro 1985; ed. em castelhano ‘Historia y Vida Cotidiana’, Grijalbo Mondadori, Barcelona 1972] Trata-se do que vivemos no dia-a-dia, da luta pela sobrevivência e da maneira como interpretamos essa luta. Ou seja, o vivido e o interpretado transformam-se num recurso teológico importante. [A.M. Isasi Díaz, ‘The Present-Future of EATWOT: A Mujerista Perspective’, in ‘Voice from the Third World’, vol. XIX, 1 (1996), pp. 86-103]  O quotidiano converte-se em espaço de trocas, em resistência ao processo de dominação por parte de uma racionalidade exacerbada.

«O quotidiano está profundamente ligado com a prática libertadora. O quotidiano está relacionado com formas particulares do discurso; com experiências de classe e distinções de género; com o trabalho e com a pobreza; com relações familiares e de vizinhança em comunidade; com a experiência da autoridade; com a experiência central da fé; com celebrações religiosas e com as concepções das figuras religiosas. Mas o quotidiano é mais do que uma categoria descritiva. Inclui, também, a maneira como os membros das comunidades-de-base consideram as acções, os discursos, as normas, os papéis socialmente estabelecidos e até os nossos próprios papéis sociais.» [H.D. Levine, ‘Popular Voices in Latin American Catholicism’, Princeton University Press, Princeton – New Jersey 1992, citado por Isasi Díaz, art. cit., p. 96]

Assim se aproximam, e se diluem um no outro, o público e o privado, o biológico e o mental, a natureza e a cultura, a razão e as paixões, o objectivo e o subjectivo. Todas as dualidades das relações de género misturam-se, quer por que se encontram interligadas, como também porque constituem um processo que transforma e porque elas se vão também transformando a si próprias.» [cf. M.O. Silva Dias, ‘Teoria e método dos estudos feministas: perspectiva histórica e Hermenêutica do Cotidiano’, in A. Costa – C. Bruschini (org.), ‘Uma questão de género’, Rosa dos Ventos, Rio de Janeiro 1992, pp. 39-53]

A experiência diária dos(as) pobres não só aponta para a sua capacidade de conhecer, mas que também ilumina a maneira de conhecer. O quotidiano é uma maneira de se colarem aos seus esforços para entender e expressar o ‘como’ e o ‘porquê’ das suas vidas serem como são e o ‘porque’ actuam como actuam. [O. Maduro, ‘Mapas para la fiesta’, Centro Nueva Tierra, Buenos Aires 1992, p. 17, cit. Por Isasi Díaz, art. cit., p. 97]

Uma nova espiritualidade. O sagrado exprime-se aqui e agora. É aqui que vamos descobrindo as imagens diferentes de Deus e é aqui que denominamos, com diferentes nomes, o Mistério que nos habita e nos circunda. Esta experiência dá-nos força para enfrentar a vida, para resistir e para esperar contra toda a esperança, para lutar quando tudo parece perdido e para celebrar as vitórias conseguidas.

De acordo com as experiências dos diversos grupos vamos nomeando Deus e nomeando Jesus de formas muito variadas. Descobrimos um Deus multicolor. Com as irmãs negras, «Deus é negro»; com os irmãos e as irmãs indígenas «Deus é um casal: mulher e homem»; com as mulheres dizemos «Deus é Ela»; com o povo pobre dizemos: «Deus é muito mais, Deus é maior que o nosso sofrimento».

Todas estas imagens de Deus demonstram-nos uma maneira de pensar que é relacional, na medida em que supera a pura racionalidade.

Nomeamos o sagrado assim, porque o sentimos próximo, animando-nos, consolando-nos, curando-nos, sendo fonte de força, coragem, alegria, amor. Não se trata apenas de um conceito: é alguém que dá vida. Aquilo a que chamamos Deus é muito mais que meras palavras, já que nunca conseguiremos expressar este enorme Mistério. Outras linguagens, tais como a poesia, a liturgia, os cantos e as danças populares ou a arte podem ajudar-nos no nosso balbuciar.


O Jesus total

«E o Verbo se fez carne» [João 4:14a].
O Verbo fez-se carne. Carne de homem e carne de mulher. Carne, corpo, humanidade, inserção na história, história de uma relação.

«Carne» sugere solidariedade para com toda a humanidade, na medida em que não somos uma colecção de indivíduos justapostos, mas sim um todo orgânico. O que atinge um só afecta eles e elas, os restantes, ou seja, toda a natureza de Deus. Essa experiência integral faz-nos valorizar cada vez mais a relação como porta de entrada, como acesso à nossa fé. Deste modo vamos refazendo a nossa relação com Jesus e com o Mistério Maior que Ele revela e que está fora e dentro de nós. Vamos partilhando com outras irmãs, com o povo, com outros homens as experiências que realizamos e as respostas que damos à pergunta de Jesus: «E vós, quem dizeis que eu sou?»

As mulheres falam de vida, falam de amor, de respeito, de com-paixão, igualdade, solidariedade, reciprocidade, liberdade, vida em plenitude, acções prenhes de ressurreição.

Para as mulheres negras norte-americanas a mensagem revolucionária de Jesus é entendida como liberdade. Jesus é o centro da sua fé. Em Jesus, Deus torna-se real, torna-se presente nas suas vidas. Elas identificam-se com Jesus porque Ele se identifica com elas. Experienciam-no como aquele que sofre como elas sofrem, que compreende seus sofrimentos − por isso o vêem como consolo. Jesus identifica-se com os pequenos do seu tempo e com os pequenos de agora. É, portanto, um Messias político. Valorizam a importância do Jesus histórico para poderem entender quem foi Jesus e a sua importância na actualidade. Num passo seguinte, confessam que este Jesus é o Cristo, isto é, o Deus incarnado. Ao longo deste processo de identificação com os pequenos de todos os tempos, Jesus é negro para o povo negro. [cf. J. Grant, o.c., p.212-215; K. Brown Douglas, ‘Womanist Position’, in L. Russel – J.S. Clarkson (eds.), ‘Dictionary of Feminist Theologies’, WQestminster John Knox Press, Lousville 1996]

As mulheres latino-americanas também se identificam com esta compreensão. Sublinham o caminho histórico: a liberdade, o consolo, o projecto. Destacaria a maneira de relacionar-se que percebemos em Jesus histórico: a sua relação com o Abba e com o Reino, a compaixão pela(o)s marginalizada(o)s, as curas dos que sofriam, a amizade para com os homens e as mulheres, a crítica à hierarquia social e religiosa do seu tempo. A crítica que hoje as mulheres fazem à hierarquia religiosa e social é parecida com aquela que Jesus fez no seu tempo. A perspectiva profética na qual Jesus se posicionou beneficiou grupos marginalizados e desvalorizados da sociedade: as mulheres, as crianças, os pobres, os estrangeiros.

Apercebemo-nos que a Sua capacidade como ser-libertador não reside na sua masculinidade. Reside na sua humanidade plena!, território de vincos tradicionalmente atribuídos ao masculino, mas de outros atribuídos ao feminino. A experiência nos diz que tanto os homens como as mulheres são fortes e débeis, ao mesmo tempo, inteligentes e emotivos, ternos e agressivos. Em graus distintos, ambos possuem traços de activos e de passividade, de personalidade forte e débil – a perspectiva de género pressupõe o diálogo entre mulheres e homens. Desmonta as identidades tradicionais e constrói novas identidades e novas relações. Supera dualismos e postula direitos iguais; e, tudo isto, não apenas em teoria, mas na vivência concreta da reciprocidade entre mulheres e homens, tendo como horizonte a construção duma humanidade nova.

A inversão, na perspectiva do Reino, proclamada por Jesus − «os últimos serão os primeiros» − significa a necessidade de novas relações sociais. Não basta “inverter os pólos”: no lugar dos homens, ponhamos, agora, as mulheres! Pelo contrário: trata-se de novas relações, não num registo romântico, mas de modo efectivo. Trata-se de construir uma nova humanidade, o que acarreta um projecto político novo e novas relações sociais. As curas e os exorcismos que Jesus realizava eram injecção de ressurreição na vida das pessoas. Mudavam completamente as pessoas. Tudo isto é demasiado revolucionário, porque um projecto de regresso à vida plena de oprimidos e de oprimidas destrói o poder patriarcal.

O Jesus total vai além do Jesus histórico e é proposta de ressurreição e de vida. Neste amor às pessoas e à natureza encontramos o sentido da vida, já que nele encontramos a Transcendência, o Mistério Maior, o próprio Deus.

A Comunidade dos seus seguidores e seguidoras formam o Corpo de Cristo. Corpo significa visibilidade. E tudo isto acontece na medida em que vivermos ao nível das acções com que realizamos ressurreição no coração da sociedade. (…)

Na força do Espírito, que nos conduz à verdade plena acerca de Jesus [Jo 14:26], comprovamos que a Sua história tem um sentido, diante do qual homens e mulheres respondem à chamada do Mistério Maior, com as suas próprias vidas. O facto de ser homem não tem relevância teológica para a comunidade cristã. Pela força do Espírito, mulheres e homens, negros e brancos, velhos e jovens, a natureza inteira caminham para uma realidade nova transformada. Aí, a dignidade de todos será respeitada. (fim)

Ana María Tepedino
Teóloga, Universidade Católica do Rio de Janeiro

In «10 Palabras clave sobre Jesus de Nazaret» (Dir. J. J. Tamayo Acosta), Editorial Verbo Divino, pp. 415-452 [excertos].