teologia para leigos

23 de fevereiro de 2012

REFORMAR A HIERARQUIA OU RENOVAR A COMUNIDADE?

Há 50 anos – Roma, 11 Out. 1962
Abertura Solene do Concílio Ecuménico Vaticano II





«Teologia» da Igreja e «Organização» da Igreja
 
Os Bispos que participaram no Concílio Vaticano II e aprovaram os seus Documentos, estavam convencidos de que, se se renovasse a teologia da Igreja, se renovava a própria Igreja, isto é, se conseguiria a verdadeira reforma da Igreja, no melhor sentido do termo. Isto porque a grande maioria dos Bispos e dos teólogos estavam profundamente persuadidos que a Igreja seria mais coerente com as suas origens e, por conseguinte, estaria mais de acordo com os desígnios divinos, se as ideias sobre a Igreja ou seja, a sua teologia se alterassem no sentido dos desígnios divinos. Porque, «em assuntos de verdadeira importância, o mais prático é ter uma boa teoria», e isso sempre resultou. Por isso, se elaborassem uma boa teologia sobre a Igreja pensavam os padres conciliares a Igreja seria como deve ser.

Não há dúvida que esta postura é correcta. É assim que se explica porque os debates doutrinários ocuparam quase todo o tempo do Concílio os Bispos gastaram todas as suas energias a discutir doutrinas teológicas, porque achavam que nisso se jogava o futuro da Igreja. Sem dúvida, agora que já passaram várias décadas sobre aquelas apaixonadas discussões doutrinárias, damo-nos conta de que toda a paixão gasta em mudar a eclesiologia foi, seguramente, o maior engano em que caíram os que queriam uma Igreja renovada e, nesse sentido, distinta. E foi o maior engano por uma razão muito simples: a Igreja não se renova apenas porque se renove a sua «teologia». A Igreja renova-se sim, e isso para lá da sua «teologia», se se renova também a sua «organização». Dito de outro modo: se tivermos uma ‘eclesiologia’ muito avançada, mas ao mesmo tempo temos um Direito Canónico tradicionalista e conservador, a Igreja continuará a ser aquilo que sempre foi durante séculos, pelo menos desde o século XI, quando o Papa Gregório VII operou uma grande volta à organização eclesiástica e concentrou o poder hierárquico no papado.

A razão para quilo que acabo de dizer compreende-se facilmente. A Igreja não é só uma verdade de Fé ou um conjunto de doutrinas em que os fiéis acreditam piamente e que cada qual procura viver como pode. A Igreja é necessariamente uma instituição que, como acontece com todas as instituições deste mundo, se pode organizar de maneiras muito distintas. Ora, em qualquer instituição é o seu sistema organizativo e o funcionamento desse sistema que são o mais importante na hora de se querer saber em que realmente consiste a instituição e se ela realmente responde às ideias que a inspiraram e que são a razão de ser da sua existência e dos fins que persegue. Assim se compreende que o fracasso do Concílio esteve em pensar que, ao renovarem-se as verdades que os cristãos devam ter na cabeça quando pensam na Igreja, se renovaria a instituição eclesiástica. Claro que, em primeiro lugar, são as verdades que devemos ser renovadas. Mas, conjuntamente com as verdades, há que renovar a legislação e todo o sistema organizativo que é o que faz com que o sistema produza determinados frutos ou, pelo contrário, desse sistema resulte precisamente o contrário daquilo que se pretende.

 No fundo, tudo isto pretende dizer que a eclesiologia é uma parte da teologia e que não se pode reduzir a meras ideias, por mais verdadeiras e ortodoxas que sejam. Uma eclesiologia que se reduza a enunciados doutrinais, mas que não contenha em si própria as normas e as práticas concretas que especifiquem como deve funcionar a instituição, é uma eclesiologia incompleta e, por isso mesmo, exposta a desvios que podem chegar a ser extremamente perigosos. Em grande medida, isto explica o que se passou no Concílio. O grande eclesiólogo e teólogo conciliar que foi Yves Congar, disse que o Concílio produziu uma «concentração vertical sobre Cristo e um descentramento horizontal em direcção à comunidade e ao povo de Deus». E, de facto, foi isso que aconteceu, mas apenas no que diz respeito à doutrina eclesiológica, porque, na prática organizativa, o descentramento horizontal em direcção à comunidade e ao povo de Deus não se produziu. Quanto ao modelo de funcionamento da Igreja − o poder do governo − ao nível universal, continua concentrado no Papa, e, ao nível local, no Bispo.

Para se fazer uma ideia do que isto significa, o melhor será dar alguns exemplos concretos que permitam explicar porque é que, poucos anos após o encerramento do Concílio, esse acontecimento continuava desconhecido de muitos cristãos, esquecido por outros e se tenha tornado suspeito para algumas pessoas e grupos dentro da Igreja. Que se passou? O que levou a que tal acontecesse?
 


É claro que qualquer pessoa que conheça bem a eclesiologia do Concílio sabe perfeitamente que o Vaticano II deixou por resolver, no plano doutrinal, a grande questão que consiste em como coordenar e harmonizar o poder do Papa com o poder dos bispos. Aliás, ficou também por resolver como se deve exercer o poder dentro da Igreja, de modo a que aqueles que exercem o poder dentro da comunidade dos crentes não acabem por marginalizar a própria comunidade e por anular os seus direitos. Isto, pela importância e complexidades que acarretam, seria suficiente para nos levar a um estudo específico e de pormenor. Porém, neste momento, convém fixarmo-nos em dois outros temas de enorme envergadura que, sem dúvida, explicam suficientemente bem porque as grandes verdades que o Concílio ensinou sobre a Igreja não produziram «o descentramento horizontal sobre a comunidade» de que, com muita razão, Congar falava.

Uma questão de enorme importância para a Igreja é o papel desempenhado pela Cúria romana no que diz respeito ao governo da instituição eclesiástica no seu todo. Pois bem, no que a isto diz respeito, aquilo que em primeiro lugar chama a atenção é que, tendo a Cúria a importância que de facto tem no governo da Igreja, acerca dela não se diz nem uma palavra na Constituição Dogmática sobre a Igreja ‘Lumen Gentium’. Esta questão foi tratada no Decreto Christus Dominus, o qual explana o ministério pastoral dos bispos. Tal facto, já de si é significativo, pois significa que, para aqueles que aprovaram os documentos do Concílio, a Cúria romana não é uma «questão dogmática» mas uma questão de ordem prática que tem seu devido tratamento no modo de exercer o ministério pastoral por parte dos bispos. Por outro lado, o Decreto ‘Christus Dominus’ tão pouco lhe dedica especial atenção à questão da Cúria. Limita-se a falar dele em dois números (9 e 10) para dizer que a Cúria realiza o seu labor «em nome» do Papa e «com autoridade» do Papa. Mas acrescentando, de seguida, que faz isso «ao serviço dos bispos» (in servitium Sacrorum Pastorum) [CD 9,1]. Mas há mais: o Concílio reconheceu (sem o dizer explicitamente) que a Cúria romana não funcionaria como devia funcionar. Por isso, expressou o desejo dos bispos de todo o mundo de que os departamentos da Cúria (os dicastérios) «se submetam a uma nova organização» (novae ordinationi… subiciantur) [CD 9,2], concretamente, e entre outras coisas, no que se refere «à competência e modo de proceder» dos departamentos centrais da Igreja referidos.



Isto era o que o Concílio queria. A realidade, porém, foi muito distinta, porque o Papa Paulo VI, que tentou pôr em prática o que o Vaticano II pediu (e, para isso, publicou a 15 de Agosto de 1967 a Constituição Regimini Ecclesiae Universae), não conseguiu os seus intentos. Na verdade, nos trinta e cinco anos que passaram desde o fim do Concílio até hoje [2oo2], a Cúria romana em vez de se reduzir, o que aconteceu foi ver crescer o número dos seus dicastérios, conselhos, tribunais, departamentos, organismos e comissões. O mesmo ocorreu com o número de personalidades e pessoas que trabalham para tão complexo organigrama que, de facto, a Cúria é. Mas, porém, isto não é o mais importante. O mais relevante é que, sendo a Cúria quem de facto decide em assuntos sérios em matéria de governo quer diga respeito a fiéis, quer a bispos, quer mesmo a cardeais, é surpreendente que o actual Código de Direito Canónico lhe dedique apenas um só Canon (o 360), ficando a sua regulamentação dependente duma norma pouco clara e em grande parte desconhecida para a maioria dos católicos.


Eis porque não faltam razões ao arcebispo John R. Quinn (que foi presidente da Conferência Episcopal dos Estados Unidos) quando diz que a Cúria corre o risco de ser considerada um tertium quid. Então, no lugar da estrutura dogmática – Papa e Colégio Episcopal – surgiria uma nova estrutura: papa, cúria e episcopado. Pode, então, considerar-se a Cúria como quem exerce supervisão e possuindo autoridade sobre o colégio dos bispos, ideia que não é mera hipótese, mas realidade. E os bispos de todo o mundo bem o sabem por experiência própria, já que, de facto, é ela quem os nomeia, os controla e os chama à atenção quando considera oportuno. E, caso seja preciso, traslada ou até destitui de funções episcopais um bispo, por mais importante até que ele seja. A Cúria não pretende emagrecer os limites das suas competências, até porque, desde o momento que o citado Canon 360 diz que a Cúria romana «realiza as suas funções em nome e com a autoridade» do pontífice romano, é evidente que os funcionários curiais podem sentir a tentação (na qual não raras vezes caem) de tomar decisões sobre membros da Igreja (incluindo bispos) de tal forma que aqueles a quem dizem respeito essas decisões as recebem como mandatos pontifícios, ou seja, como disposições que muito dificilmente serão modificadas, e serão inapeláveis.

Mas o mais grave de tudo ainda não é isto.
Sem dúvida alguma, o assunto mais delicado no que diz respeito ao funcionamento interno da Igreja é o problema que representa o facto de que ninguém, dentro desta instituição, tem direitos adquiridos. Por conseguinte, na Constituição Dogmática sobre a Igreja fala-se dos direitos dos bispos (LG 27,1), e dos direitos que os fiéis têm a «receber em abundância dos sagrados pastores…, antes de mais nada, os auxílios da palavra de Deus e os dos sacramentos» (LG 37,1). A Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo trata dos direitos da pessoa humana na comunidade política (GS 73), só que, neste caso, já não estamos no âmbito dos direitos no interior da Igreja. É certo que no Código do Direito Canónico se formulam «os deveres e direitos de todos os fiéis» (c. 208-223) e, mais concretamente, «das obrigações e direitos dos fiéis leigos» (c. 224-231). Claro que não se trata aqui de especificar esses direitos, os quais a legislação eclesiástica menciona como direitos dos membros da Igreja. O importante é perceber que, tal como se tem vindo a organizar a instituição eclesiástica no que diz respeito ao seu funcionamento interno, o poder está de tal forma concentrado num só homem – o romano pontífice – que, de facto, do ponto de vista dos direitos dos súbditos, a Igreja acaba por ficar configurada de acordo com um sistema de governo que ao que mais se assemelha é àquilo que sempre pareceu ser: uma «monarquia absoluta».

Esta afirmação baseia-se (segundo o Canon 331) em que, na Igreja, o poder do Papa é «supremo, pleno, imediato e universal» e, além do mais, o «pode exercer sempre livremente». Mas, do ponto de vista legal, isso ainda não é o mais contundente. O determinante está em que o Canon 333, parágrafo 3º, estabelece que «não há apelo nem recurso duma sentença ou dum decreto do romano pontífice». E isto, no direito eclesiástico, é considerado de tal modo intocável que o Canon 1404 afirma taxativamente que «a Primeira Sede (o Papa) não pode ser julgada por ninguém». Assim fica claro que, por mais que aos fiéis cristãos se lhes reconheçam determinados direitos, na realidade qualquer desses direitos estarão sempre sujeitos a que «uma sentença ou um decreto» do Papa (ou de quem mande em seu nome, isto é, os dirigentes da Cúria romana – Canon 360) os invalide e os reduza a pó. Pois bem – isso é que define «monarquia absoluta», aquela na qual o monarca exerce o poder sem ter que dar conta dos seus actos a ninguém. É claro que nas monarquias absolutistas havia monarcas que assassinavam aqueles que se lhe opunham, coisas que os Papas não fazem. Mas, o que para aqui conta, não é se o monarca é mais ou menos brutal em matéria de comportamentos ou se, pelo contrário, até é boa pessoa, mas que não está em questão a ética da pessoa que preside ao sistema, mas a ética da natureza do próprio sistema. Pois bem, a natureza do sistema de governo da Igreja Católica, segundo se lê no vigente Código de Direito Canónico, é que o Papa possui poder «supremo», diante de cujas decisões «não cabem apelo nem recurso» algum e, para além disso, o Papa «não pode ser julgado por ninguém». Isto é o mesmo que dizer-se que «não tem que prestar contas dos seus actos». Aí está: uma «monarquia absoluta».


Adiante se verá que, por mais que juridicamente isto esteja assim estabelecido na Igreja, teologicamente a coisa não está tão clara assim. Nem pouco mais ou menos. É precisamente aqui que se levanta um dos problemas mais sérios que a eclesiologia, até hoje, ainda não resolveu. Trata-se duma desconformidade (como em tantos outros assuntos) entre direito eclesiástico e teologia. Mas desta questão se falará detalhadamente mais adiante.



Tarcísio Bertone, Secretário do Vaticano



A conclusão do que se disse até aqui é muito clara. O Concílio renovou profundamente a «teologia» da Igreja, mas não modificou a sua «organização». Concretamente, deixou intactas duas coisas que são decisivas no que diz respeito ao funcionamento da Igreja: o poder da Cúria e os direitos de todos os membros da Igreja, excepto o Papa.

Daqui resultam, duma assentada, duas consequências:

1)  A Cúria é o organismo «mediante o qual o romano pontífice faz tramitar os assuntos da Igreja universal e que realiza a sua função em nome e sob autoridade do Papa» (Canon 360). Dito de outra maneira, a Cúria acaba por ser, na prática, o instrumento mediante o qual o Papa exerce o seu poder e tramita os assuntos da Igreja. Portanto, há inúmeros assuntos de Igreja (muitos deles de enorme importância) que são geridos, decididos e impostos, não pelo Papa, mas por outras pessoas que, na prática, tomam decisões que são como se as tivesse tomado o sumo pontífice.
2)  Os membros da Igreja não podem apelar a direito algum, sobretudo se se tratam de decisões muito graves nas quais estejam em jogo interesses de grande importância para a instituição eclesiástica. Tenhamos em conta que, quando dizemos «membros da Igreja», neste imenso colectivo entram todos os cristãos incluindo os funcionários da Cúria, os bispos e até os cardeais, seja qual for o seu nível, seu cargo ou sua influência.

Pois bem, uma instituição religiosa em que «a organização» está montada desta maneira é, inevitavelmente, um corpo social em que as ideias seguirão um determinado curso e a realidade da vida seguirá um totalmente outro. No terreno das ideias apelar-se-á constantemente a elevados ideais relacionados com generosidade, solidariedade, amor e, sobretudo, vontade divina e bem da Igreja. Mas, na realidade da vida diária, o que se acabará por impor é o interesse natural do ser humano em se sentir seguro no posto que ocupa, o não se sentir ameaçado, o saber que é valorizado e estimado e, frequentemente, o poder subir a postos mais elevados.

É nesta situação em que nos encontramos: a «teologia» do Concílio colocou o ‘povo de Deus’ à frente da hierarquia e seus poderes. Mas a «organização» da Igreja manteve-se praticamente como estava antes do Concílio. O resultado é o que estamos a ver: no campo das «ideias» teológicas, o Povo de Deus é o primeiro, mas na «realidade» da vida, em primeiro lugar continua a ser o poder hierárquico que, por sua vez, se encontra controlado e dirigido pelo poder da Cúria. Consequentemente, o Concílio teve cada vez menos poder efectivo quanto a definir o ser da Igreja, quanto ao funcionamento da Igreja e quanto ao como ela está presente na sociedade.


  

Os documentos conciliares continuam a ser citados em escritos eclesiásticos e em livros de teologia, mas, na hora da verdade, tudo isso serve para pouco ou, dito doutro modo, tem uma efectividade bastante reduzida. Porque a Igreja, na sua estrutura profunda, continua a funcionar como funcionava antes do Concílio. Mantiveram-se certas mudanças externas de importância relativa: a missa já não se diz em latim, nem de costas para o povo, a maior parte dos eclesiásticos veste-se à civil, reúnem-se as ditas ‘conferências episcopais’ e os ditos ‘conselhos presbiteriais’, mas a verdade mais pura é que tudo isso influi pouco na marcha geral da Igreja, no seu pensamento teológico, nas decisões verdadeiramente operativas quando é chegado o momento de definir o rumo da instituição na sociedade e na cultura actuais.

Bem pelo contrário, a impressão que têm muitos cristãos é que a cultura e a sociedade mudam a grande velocidade, ao passo que a Igreja (juntamente com outras instituições religiosas) fica amarrada ao que sempre foi. É verdade que as aparições constantes do Papa nos meios de comunicação social podem dar, a certos sectores da população, a impressão de que a Igreja goza agora duma popularidade que nunca teve. A realidade é bem distinta. O acontecimento mais importante do século XX – o Concílio Vaticano II – foi marginalizado e, para muitos, enterrado no esquecimento. E, no entanto, a sangria de gente que silenciosamente abandona a Igreja aumenta de dia para dia.

Quando alguns pensam que a Igreja alcançou o cume dos seus êxitos, na verdade o que acontece é que a igreja está metida numa das crises mais profundas da sua história. Certamente que estará cheio de razão o escritor inglês John Cornwell quando, recentemente, disse que a «imagem característica de Pio XII… sugere vários traços que distinguem os últimos Papas dos seus predecessores. Quanto mais elevado se encontra o pontífice, mais pequenos e insignificantes parecem os fiéis. Quanto mais carregado de responsabilidade e autoritário é o pontífice, menos direitos tem o Povo de Deus, nele incluídos os bispos, os sucessores dos Apóstolos. E quanto mais santo e distante é o pontífice, mais profano e secular é o mundo em que vive.»

Às vezes, é impossível resistir à impressão que João XXIII e o Concílio que ele convocou foram um parênteses na atormentada história da Igreja ao longo do século XX. Aconteceu imensa coisa, mas parece que nada passou dum capítulo, sem dúvida interessante, da história da Igreja, mas que não passa de algo que serve apenas para ser recordado, e não como uma força que continua viva e operante no interior da Igreja e, através da Igreja, na sociedade actual.

José Maria Castillo [2002]