Teologia feminista
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Introdução
A teologia feminista é um tema recente. Desde os seus começos que busca inter-relacionar os seguintes aspectos: a Experiência de Vida das mulheres (tanto a vida própria delas como a vida das suas companheiras, sobretudo em meios populares) com a Experiência de Deus vivida e experimentada de uma maneira distinta, próxima e relacional, experimentada no quotidiano, pois Deus está do lado dos mais débeis, a quem protege e infunde coragem e esperança. (…)
Ao observar a imagem tradicional de Deus, a teologia feminista descobriu uma relação directa entre a imagem exclusivamente masculina de Deus e a opressão estrutural das mulheres. Neste sentido, é complicado aceitar e aplicar essa cristologia às mulheres, porque Jesus Cristo é indiscutivelmente um homem que é apresentado como Salvador e o único mediador entre a humanidade e o Pai.
Uma cristologia feminista tem como tarefa explicar o que significa, para as mulheres, ser Salvador e Mediador. A teologia feminista também tem que criar modelos cristológicos adequados aos nossos dias. A hermenêutica propõe-nos que leiamos um texto não como um relato ‘acabado’ que fizesse referência a um passado longínquo, mas como algo relacionado com a história actual da nossa comunidade. [S. Croatto, Hermenêutica Bíblica, Sinodal, São Leopoldo 1985, p.36]
Teologia Feminista – algumas chaves de leitura
A Teologia desenvolvida por mulheres na América Latina tem a sua fonte na «Teologia da Libertação». [A.M.Tepedino, ‘Mulher e Teologia na América Latina, perspectiva histórica’, in A.M. Bidelgáin, ‘Mulheres, Autonomia e Controlo Religioso na América Latina’, Cheila, Vozes, S. Paulo - Petrópolis 1996, pp.197-220; cf. também María Pilar Aquino, ‘Nuestro Clamor por la Vida’, Dei, Sanbanilla (San José – Costa Rica)]
Alguns pontos comuns entre ambas as teologias:
a) A experiência de vida como ponto de partida. Quer as teólogas dos EUA e da Europa, quer as da América Latina acreditam que esta é uma questão central. A experiência das mulheres é o resultado da sua vida quotidiana, de uma série de acontecimentos, de sentimentos e lutas que são partilhadas por nós, mulheres, nas circunstâncias concretas onde se vive. Apesar de existirem muitos pontos em comum, a experiência de vida das mulheres não é monolítica. Muda segundo a raça, a classe social e a cultura. Essas diferenças notam-se nas diferentes perspectivas das nossas reflexões. A forma de opressão que afecta as mulheres é bem diferente. Há um tipo de opressão que afecta às mulheres de raça branca, classe média, com emprego fixo e com estudos universitários. Há um outro tipo de opressão que atinge mulheres pobres, especialmente se são de cor negra, mestiças ou indígenas, sem estudos, trabalhando a tempo parcial ou em economia clandestina. Ora, trata-se de «partir do nosso ser e do nosso fazer, do nosso olhar e do nosso sentir, do nosso falar e do nosso calar». [I. Gebara, ‘La mujer hace teologia. Ensaio para la reflexión’, in M.P. Aquino, Aportes para una teologia desde la mujer, Bíblia y Fé, Madrid 1988, p.10] Partimos da própria busca existencial da identidade. A identidade outorgada pela sociedade patriarcal não corresponde à experiência que possuímos. [cf. A.M. Tepedino, ‘A Mulher: aquela que começa a desconhecer seu lugar’, in Perspectivas Teológicas, 17 (1985), pp. 375-379] Há muito que não nos reconhecemos no estereótipo de seres irracionais, emocionais, meladas, débeis, subjectivas e exclusivamente domésticas. A ‘experiência’ é o contexto do nosso trabalho teológico. Pelo que, antes de começar a raciocinar sobre Deus, sobre Jesus Cristo, sobre a Igreja, necessitamos de ter a oportunidade de nos nomearmos a nós mesmas e nomear as nossas experiências para que as nossas reflexões teológicas, cristológicas e eclesiais possam ser autenticamente nossas. [M.P. Aquino, La Iglesia y la mujer en América Latina, Indo-American, Bogotá 1994] O discurso teológico realizado pelos homens sempre pretendeu ser universal na medida em que a sua tentação sempre foi a de identificar a linguagem masculina como universal. (…)
Na América Latina, a teologia feminista está ligada, desde os começos, à luta maior dos pobres e dos oprimidos pela vida. Ela concentrou os seus esforços na luta em que as condições sociais e pessoais se interligavam e se completavam entre si. Concebemos o problema da ‘classe social’ a partir duma prática social, precisamente aí onde nos encontramos com muitas dificuldades e barreiras. É a partir de aí que levantamos questões relacionadas com a situação pessoal e familiar. E, como somos seres crentes comprometidos nas comunidades, interrogamo-nos sobre a nossa situação eclesial. É aqui onde se cruzam duas direcções: a classe e o sexo. A questão da ‘raça’ surge quando nos damos conta que as mulheres negras sofrem por ser mulheres, por ser pobres e por serem negras. Ou seja, sofrem uma tripla opressão: de género, de classe e de raça.
Neste momento, é necessário que a Teologia da Libertação abra uma chaveta para investigar acerca da opressão, quer de género, quer cultural. A princípio privilegiou-se a questão económica e social, mas, agora, os pobres – objecto da Teologia da Libertação – não só começam a ter rostos, mas também corpos, histórias distintas, vozes e reflexões diferentes. (…)
b) Outro ponto comum é a interdisciplinariedade. Procura-se a mediação analítica das ciências humanas e sociais como colaboração para compreender melhor a problemática. A princípio, foi a sociologia, a antropologia, a psicologia e a história. A seguir veio a economia e a filosofia. Todos estes ramos do conhecimento oferecem-nos dados para melhor compreender o patriarcalismo. Ajudam-nos, também, a superá-los.
Teologia patriarcal
A leitura que, após o nascimento do cristianismo, se fez dos capítulos 2 e 3 do Génesis, já sob a influência da filosofia grega, desembocou na sub-valorização e desvalorização das mulheres.
Apresentam-se, as mulheres, criadas depois do homem ter sido criado. Foram elas quem cometeu o primeiro pecado e foram elas que fizeram os homens pecar. Ainda que não tenha sido essa a intenção do autor dos textos bíblicos, tal interpretação deles − numa linha patriarcal e sexista − provocou a marginalização das mulheres dentro das Igrejas cristãs e também na sociedade «cristã ocidental».
«A teologia patriarcal acentuava a maior propensão [da mulher] para o pecado e a sua menor espiritualidade. Como ‘produto inferior’, a mulher nunca poderá representar a imagem de Deus como o homem o pode, sendo o homem considerado o representante da parte racional do ‘eu’» [R. Ruether, ‘Sexismo e religión’, São Leopoldo, 1993, p.84] «Neste sentido, a ideologia da subjugação das mulheres é reflexo da sua natureza inferior, castigo pela sua responsabilidade no ‘pecado’ [‘original’]». [ibidem]
Santo Agostinho e S. Tomás de Aquino são os ilustres responsáveis deste tipo de antropologia.
Santo Agostinho admite que, ainda que a mulher possa ser redimida e vir a participar da «imagem de Deus», tal facto será sempre prejudicado pela representação corporal de um eu inferior propenso ao pecado. Considera a mulher como imagem secundária de Deus. O homem representa, de forma normativa, a imagem de Deus. Os homens possuem faculdades racionais superiores. As mulheres têm menos capacidades racionais e menor controlo moral. Faz parte da natureza da boa ordem, que os superiores rejam os inferiores. Aqueles autores acreditam que a hierarquização das classes e a escravatura são necessárias para que exista ordem social. Consideram a hierarquia consequência do «pecado» [‘original’ – Génesis 2 e 3]. Concluem que a hierarquia homem-mulher não é só consequência do ‘pecado original’: ela faz parte da ordem natural criada por Deus. [R. Ruether, ibidem]
S. Tomás vai mais longe com este tipo de pensamento e chega até a ridicularizar a mulher. Diz que ela é inferior quanto ao corpo (é mais débil), quanto à mente (menor capacidade racional) e quanto à moralidade (menor capacidade volitiva e menor autocontrolo). [Santo Tomás de Aquino, ‘Summa Theologica’, 1, 92, 1, citado por Ruerther; cf. também K.E. Borresen, «Subordination et Equilivalence. Nature de la femme d’après Augustin et Thomas d’Aquin», Universitetsforlaget – Mame, Oslo – Paris 1967] Na opinião de S. Tomás, esta compreensão agudizou-se ainda mais por causa do ‘pecado’. Já desde os começos, a natureza defeituosa da mulher significava que, naturalmente, a mulher é servil e se deve encontrar submetida ao homem. Como resolve, S. Tomás, este problema? Se Deus tudo criou perfeito, como pode ter criado a mulher imperfeita? S. Tomás soluciona-o dizendo que a mulher, ainda que imperfeita na sua natureza individual, faz parte da perfeição geral da natureza através do seu papel na procriação. S. Tomás diz que a mulher foi criada para a procriação. Em matéria de ajuda espiritual, o homem sempre recorrerá a outro homem.
A antropologia patriarcal foi extremamente perversa e negativa para as mulheres. (…)
Cristologia patriarcal
A Teologia feminista não produziu muitos textos sobre cristologia, mas trata sempre do tema quando reflecte sobre a situação da mulher dentro do movimento de Jesus ou quando reflecte sobre a Igreja. A cristologia é, seguramente, um dos capítulos mas polémicos. Por um aldo, Jesus Cristo é o centro da Fé e da teologia cristã; por outro, o facto da salvação oferecida pelo Deus vivo ser encarnada num homem (sexo masculino) cria problemas a muitas mulheres. Como não se sentirem cidadãs de segunda categoria no Reino proosto por um Deus que privilegia o sexo masculino na hora de se encarnar? [cf. M. C. Bingemer, ‘Jesus Cristo e a salvação da mulher’, in «O segredo feminino do mistério», Vozes, Petrópolis 1991, pp. 44-45] (…)
Ao longo dos séculos dá-se uma paulatina desvalorização do papel das mulheres nas comunidades primitivas. (…) Do mesmo modo a cristologia sofreu um processo crescente de patriarcalização. Evangelizar e celebrarar sacramentos esteva reservado apenas aos homens – numa palavra, eles actuavam in persona Christi. (…)
A proclamaçãp messiânica de Jesus centra-se na apresentação do Reino de Deus. Na realidade, tal anúncio não realiza a expectativa de um rei semelhante ao rei David, bem pelo contrário: vai mais na linha profética de Moisés. Após a morte de Jesus, a interpretação que a comunidade cristã faz desse messianismo situa-a mais na linha do Servo de Yahvé. (…) Com o pasar do tempo, a Igreja nascente sente a necessidade de se organizar e, para esse fim, instala uma incipiente hierarquia formada de bispos, presbíteros e diáconos. Eles serão os responsáveis pelo deposito fidei, ficando como responsáveis pela ortodoxia.
Pouco a pouco, processa-se uma progressiva alienação do Jesus histórico, roubando-se-lhe a sua individuação como ‘ser humano’. Sem a sua história concreta, Cristo converte-se numa imagem. [José Comblin, ‘Teologia de la revolution’, Desclée de Brouwer, Bilbao 1973.] E, para se ter acesso a Ele, tem-se que deitar mão da linha oficial do ensino dos apóstolos. Só homens podem ocupar o ofício do ensino apostólico quanto a representar Cristo. «Cristo vira uma revelação atemporal da perfeição divina localizada num momento paradigmático do passado. E este revelação atemporal nunca mais se voltará a repetir.» [cf. R. Ruether, o.c., pp. 106-107]
O momento decisivo da patriarcalização da cristologia acontece no século IV – estamos no ano de 312 d.C. A conversão do imperador Constantino ao cristianismo marca a passagem da religio ilícita, perseguida, minoritária, de marginais, à religião oficial do Império Romano. Legitima-se, então, a sua ideologia. A unidade imperial exige unidade de fé e de teologia. [cf. A. Grillmeier, ‘The Christian Tradition: From the Apostolic Age to Chalcedon’, John Knox, Atlanta 1975, pp. 153-154; trad. espanhola, ‘Cristo en la tradición Cristiana: desde el tiempo apostólico hasta el Concilio de Calcedonia’ (451), Sígueme, Salamanca 1997] Um cristianismo instalado num poder político sobre o «mundo» integra-se perfeitamente na expectativa messiânica davídica.
«A doutrina cristológica de Cristo como Logos ou fundamento do mundo criado identifica-se com os fundamentos do sistema social vigente. Cristo como Logos de Deus é revelação da mente divina − oferece o governo e o plano do cosmos social estabelecido. Assim, tudo se integra numa única e ampla hierarquia do ser.» [Eusébio de Cesareia, ‘Vida de Constantino’, 10, 7, citado por R. Ruether, o.c., p. 108]
Tal como o Logos de Deus governa o cosmos, o imperador romano cristão, conjuntamente com a Igreja cristã, governa o mundo político. Os senhores governam os escravos e os homens governam as mulheres. [A teóloga Elisabeth Schüssler Fiorenza inventou o termo «kiriarcalismo» para rotular este sistema ideológico masculino de dominação e subordinação, autoridade e obediência, de governantes e governados, na família e no Estado. É também nesta cristologia utilizada que o poder imperial encontra o seu fundamento.] As mulheres, os escravos e os bárbaros eram os alagoi, as pessoas «sem palavra própria, sem mente». Precisam de ser guiadas pelos representantes do Logos divino. Jesus Cristo é o retrato do Imperador. Jesus é o Pantocrator, que tudo governa. Reina sobre a nova ordem social, na qual as mulheres não têm nenhuma importância. O Deus masculino só pode ser representado por homens.
Cristo transforma-se no fundador e no governante cósmico da hierarquia social vigente. É a revelação masculina de um Deus masculino, cujo representante normativo só pode ser o homem.
Até à Idade Média adoptava-se o modelo biológico aristotélico: o homem oferece o sémen que dá forma ao corpo humano. A mulher é apenas matéria, o recipiente onde se fará o novo ser. O sexo masculino, portanto, é o sexo normativo ou genérico da raça humana.
Em suma, a encarnação do Logos de Deus num homem não é um acidente histórico – é uma necessidade ontológica. Assim como Cristo teve que encarnar-se num homem, da mesma forma só num homem Cristo pode ser representado. [S. Tomás, o.c., 1, 1, 92, 1-2; 1, 1, 99, 2; 3, supl., 39, 1; citado por R. Ruether, o.c., p. 108]
Esta cristologia ressurgiu recentemente com a reivindicação do acesso ao ministério ordenado por parte de algumas mulheres. Os argumentos usados inter-relacionam masculinidade, cristologia e sacerdócio. Sem dúvida, e na opinião de Rosemary Ruether, Jesus Cristo é a «kenosis do patriarcado». Ele é o auto-esvaziamento do poder dominador masculino a favor da nova humanidade, do serviço compassivo e do mútuo reconhecimento. (segue)
Ana María Tepedino
Teóloga, Universidade Católica do Rio de Janeiro
In «10 Palabras clave sobre Jesus de Nazaret» (Dir. J. J. Tamayo Acosta), Editorial Verbo Divino, pp. 415-452 [excertos].