teologia para leigos

27 de fevereiro de 2012

O DEUS DE JESUS DE NAZARÉ

antigo 'Mercado do Anjo'_Porto
Em que Deus acreditava Jesus?


 
Introdução

«Antes de começar a narrar a actividade profética de Jesus, Marcos escreve estes breves versículos: "O Espírito levou Jesus para o deserto. Ficou no deserto quarenta dias deixando-se tentar por Satanás; vivia entre as feras, e os anjos serviam-no". [Marcos 1:12-13] Essas breves linhas são um resumo das experiências básicas vividas por Jesus até a sua execução na cruz.» [J.A. Pagola]

Primeira questão: que «espírito» é esse? Hoje, século XXI, pensamos imediatamente em «espíritos», em magia, em forças imateriais obscuras que podem condicionar a vontade dum ser humano e sujeitá-la a inevitabilidades.

Mas Jesus é um judeu nascido no caldo cultural (político, económico e religioso) que o Antigo Testamento nos revela. Jesus foi educado e sensibilizado para a história do seu povo. Nela, Deus ocupa um espaço único. Mas que Deus é esse? Provavelmente, a mãe de Jesus lho ensinou: um Deus terno, materno!, mas não ingénuo… Os tempos não eram fáceis e a mãe de Jesus, aliás, como todas as mães, colocou-o de sobreaviso: ‘Cuidado com Herodes, com o império romano e os revoltosos: chacinam-se uns aos outros, meu filho! Cuidado com os padres e os bispos! Cuidado com os ricos e os religiosos fanáticos! Vê lá o queres da tua vida!’ Jesus amadureceu observando meticulosamente a realidade à sua volta, comparando as alternativas ao que via, ouvindo os velhos sábios, escapando-se para fora do seu pequeno mundo rural, por exemplo, visitando um afamado profeta do deserto, de nome João, que apelava a uma «mudança radical de vida» - João Baptista. Foi assim – de modo multifactorial! − que Jesus configurou o seu «espírito», o seu «projecto de vida». ‘Retomar o anúncio dos Profetas de Israel!’, provavelmente terá sido o impulso íntimo de Jesus, opção tomada alagado em suores frios. Jesus deixou-se tomar pela profecia a partir das entranhas.

Mas o que é que estava por trás de tal decisão? Com base em quê se terá começado a desenvolver tal convicção em Jesus? Que pressupostos o antecedera? Ou será que Jesus foi um fenómeno sui generis?


A denúncia dos «profetas»

Quando, em Israel, a realeza se corrompeu e a injustiça se tornou insuportável, entraram em cena os profetas, que levantaram a voz contra a acumulação de capital em poucas mãos, contra a ostentação insultuosa do poder instalado:

«Ai de vós os que juntais casas e mais casas, e que acrescentais campos e mais campos, até que não haja mais terreno, e até que fiqueis os únicos proprietários em todo o país! Aos meus ouvidos chegou este juramento do Senhor do universo: «As suas muitas casas  serão arrasadas, os seus palácios magníficos ficarão desabitados» [Isaías 5:8-9]

Os profetas gritavam contra a redução do povo à miséria na sequência do enriquecimento das classes poderosas:

«Ouvi isto, vós que esmagais o pobre e fazeis perecer os desvalidos da terra,  dizendo: «Quando passará a Lua-Nova, para vendermos o nosso trigo, e o sábado, para abrirmos os nossos celeiros, diminuindo o efá, aumentando o siclo e falseando a balança para defraudar? Compraremos os necessitados por dinheiro e o pobre por um par de sandálias, e venderemos até as alimpas do nosso trigo.» O Senhor jurou contra a soberba de Jacob: «Não esquecerei jamais nenhuma das suas obras.» [Amós 8:4-7]

Especialmente dura é a profecia de Amós contra as senhoras aristocráticas que viviam rodeadas de riqueza e luxo:

«Ouvi esta palavra, vacas de Basan, que viveis na montanha da Samaria, vós, que oprimis os fracos e maltratais os pobres, vós, que dizeis a vossos maridos: «Traz e bebamos!» O Senhor Deus jurou pela sua santidade: «Eis que virão dias, para vós, em que vos arrastarão com ganchos, e à vossa posteridade, com arpões.» [Amós 4:1-2] (‘Basan’, fértil planalto na região oriental do Jordão de pastos famosos – cf. Miqueias 7:14; Jeremias 50:19; Naum 1:4 – onde pastava gado bem cevado – cf. Ezequiel 39:18)

Os profetas não poupavam em críticas os próprios juízes corruptos que se deixavam subornar pelos culpados, condenando os inocentes:

«Por isso, tornam-se ricos e poderosos; apresentam-se nédios e bem nutridos. Ultrapassam mesmo os limites do mal. Não procedem de acordo com o direito, não defendem a causa do órfão e não fazem justiça em favor dos pobres! Como não hei-de punir tais crimes e não me hei-de vingar de um povo como este? - oráculo do Senhor.» [Jeremias 5:28-29]

Os profetas denunciavam quando se anulavam as velhas leis feitas para proteger os pobres e se editavam novas leis para beneficiar os poderosos:

«Ai dos que decretam leis injustas, e dos que redigem prescrições opressoras, dos que afastam os pobres do tribunal, e zombam dos direitos dos fracos do meu povo, fazendo das viúvas a sua presa e roubando os bens dos órfãos! Que fareis vós no dia do ajuste de contas, quando o furacão vier de longe? A quem acudireis em busca de auxílio, e onde escondereis as vossas riquezas?» [Isaías 10:1-3]

Os profetas afirmavam que se perverteu a finalidade da justiça que passou a estar ao serviço da injustiça:

«Porventura correm os cavalos por entre os rochedos? Ou pode lavrar-se o mar com bois? Entretanto, converteis o direito em veneno, e o fruto da justiça em absinto (=’amargura’).» [Amós 6:12]

Os profetas chegaram ao extremo de dizer que Deus prefere a mispãtjustiça LAICA, inter-humanos – ao culto!

«De que me serve a mim a multidão das vossas vítimas?- diz o Senhor. Estou farto de holocaustos de carneiros, de gordura de bezerros. Não me agrada o sangue de vitelos, de cordeiros nem de bodes. Quando me viestes prestar culto, quem reclamou de vós semelhantes dons, ao pisardes o meu santuário? Não me ofereçais mais dons inúteis: o incenso é-me abominável; as celebrações lunares, os sábados, as reuniões de culto, as festas e as solenidades são-me insuportáveis. Abomino as vossas celebrações lunares, e as vossas festas; estou cansado delas, não as suporto mais. Quando levantais as vossas mãos, afasto de vós os meus olhos; podeis multiplicar as vossas preces, que Eu não as atendo. É que as vossas mãos estão cheias de sangue. Lavai-vos, purificai-vos, tirai da frente dos meus olhos a malícia das vossas acções. Cessai de fazer o mal, aprendei a fazer o bem; procurai o que é justo, socorrei os oprimidos, fazei justiça aos órfãos, defendei as viúvas.» [Isaías 1:11-17]

O profeta Amós clamava no mesmo sentido:

«Eu detesto e rejeito as vossas festas;e não sinto nenhum gosto nas vossas assembleias (‘religiosas’). Se me ofereceis holocaustos e oblações (‘oferendas religiosas’), não as aceito, nem ponho os meus olhos nos sacrifícios das vossas vítimas gordas. Afastai de mim o vozear dos vossos cânticos, não quero ouvir mais a música das vossas harpas. Antes, jorre a equidade como uma fonte, e a justiça como torrente que não seca.» [Amós 5:21-24; cf. Miq 6:6-8; Os 6:6]

Por fim, no célebre «Sermão do Templo», o profeta Jeremias apostrofava nestes termos aqueles que entravam no templo do Senhor:

«Coloca-te à porta do templo do Senhor e proclama aí este discurso: «Escutai a palavra do Senhor, habitantes de Judá, que entrais por estas portas para adorar o Senhor. Assim fala o Senhor do universo, o Deus de Israel: ‘Endireitai os vossos caminhos e emendai as vossas obras e Eu habitarei convosco neste lugar. Não vos fieis em palavras de mentira, dizendo: 'Templo do Senhor, templo do Senhor! Este é o templo do Senhor'. Mas, se endireitardes os vossos caminhos e emendardes as vossas obras, se verdadeiramente praticardes a justiça uns com os outros, se não oprimirdes o estrangeiro, o órfão e a viúva, nem derramardes neste lugar o sangue inocente, se não seguirdes, para vossa desgraça, deuses estrangeiros, então, Eu permanecerei convosco neste lugar, nesta terra que dei desde sempre e para sempre a vossos pais. Contudo, eis que vos enganais a vós mesmos, confiando em palavras vãs (‘orações’), que de nada vos servirão. Roubais, matais, cometeis adultérios, jurais falso, ofereceis incenso a Baal e procurais deuses que vos são desconhecidos;  e depois, vindes apresentar-vos diante de mim, neste templo, onde o meu nome é invocado, e exclamais: 'Estamos salvos!' Mas seguidamente voltais a cometer todas essas abominações. Porventura, este templo, onde o meu nome é invocado, é a vossos olhos, um covil de ladrões? Ficai sabendo que Eu vi todas estas coisas - oráculo do Senhor.» [Jeremias 7:2-11]

É curioso verificar que em nenhum destes textos existe qualquer “predicção do futuro”. Porém, para o comum dos mortais, ‘profeta’ é alguém que é capaz de prever o futuro, alguém que adivinha o porvir. Profeta é uma palavra que advém de ‘phemi’, ‘dizer’. Mas, o advérbio ‘pró’ que o precede não significa ‘antes’ (no sentido temporal; ‘antes que ocorra’), mas no sentido de ‘em vez de’ (‘na vez de outro’). É um ‘pró’ substitutivo, como acontece em pronome, procurador, proconsul, etc. Portanto profeta é «alquele que fala em vez doutro», neste caso, «fala na vez de Deus», «fala por Deus», é Deus que fala na fala humana!

Isto é determinante!
A relevância teológica dos profetas de Israel não está no conteúdo das suas denúncias, mas pelo facto de serem feitas em nome de Deus! Recordemos os famosos estribilhos: «palavra de Deus», «oráculo do Senhor», «assim disse o Senhor», etc. (das 230 vezes que estes estribilhos aparecem na Bíblia, em 221 vezes surgem nos livros proféticos)

«Existem reivindicações sociais fora do âmbito da Bíblia. O que nelas impressiona é que não se tratam propriamente de profetismo. Nem no autor egípcio das «Lamentações do camponês», nem em Hesíodo tal se atribui a inspiração profética. Essas lamentações e essas críticas emanam de reflexões e de experiências puramente humanas. Nelas, os deuses são invocados unicamente a título de testemunhas ou de árbitros. Não são os deuses os inspiradores da indignação e da rebeldia que, dentro das suas almas, os escritores e os poetas experimentam. (…) Na Antiguidade, a justiça sempre foi uma conquista do espírito laico, uma conquista da razão[André Neher, La esencia del profetismo, Sígueme, Salamanca 1975, p. 49]

O profeta não fala por iniciativa própria: antes de tudo, interiorizou a vontade divina. Deus disse a Ezequiel (3:10-11): «Filho de homem, todas as palavras que Eu te disser, guarda-as no teu coração, escuta-as com toda a atenção. Levanta-te e vai ter com os deportados, os teus compatriotas. Fala com eles e diz-lhes: ‘Assim fala o Senhor Deus’».

A Bíblia expressa esta assimilação da mensagem divina com o símbolo da logofagia. O que o profeta proclama não são opiniões suas. Primeiro, necessita de «comer» a palavra de Deus para a converter em substância própria: só depois disso é que pode falar. Ezequiel tinha que comer um rolo escrito: «Tu, porém, filho de homem, escuta o que te digo. Não sejas rebelde como aquela gente rebelde. Abre a boca e come o que te vou dar. (…) «Disse-me: «Filho de homem, come aquilo que te é apresentado, come este manuscrito e vai falar à casa de Israel.» [Ez 2:8;3:] Jeremias dizia o mesmo: «Quando eu encontrava as tuas palavras eu as devorava; as tuas palavras eram para mim pura delícia e a alegria do meu coração.» [Jer 15:16]

Um judeu estudioso do profetismo definiu assim o símbolo da logofagia: «Uma análise das declarações proféticas mostram-nos que a experiência fundamental do profeta é a sua comparticipação com os sentimentos de Deus, uma simpatia com o pathos divino, uma comunicação com a consciência divina». [Abraham J. Heschel, Los profetas, t. 1, Paidós, Buenos Aires 1973, p.71] Isto quer dizer que o profeta faz uma experiência mística profunda. Durante uma experiência de arrebatamento místico [Ap 4:1-2], João, porém não um místico desenraizado das lutas políticas («irmão na perseguição» sob o império romano; Ap 1:9), afirma que ouviu uma voz do céu a dizer-lhe: “Vai toma o livro e come-o. Ele vai amargar-te nas entranhas, mas na tua boca será doce como o mel” [Ap 10:8-11]. No Pentateuco se diz, por três vezes, que Deus falava com Moisés «cara a cara, como um homem fala com o seu amigo». [Ex 33:11; Dt 34:10; Nm 12:8]  E foi, precisamente, essa intimidade com Deus que fez de Moisés um profeta por antonomasia. Cinco séculos depois da sua morte, diz o livro do Deuteronómio (34:10): «Nunca mais surgiu em Israel um profeta semelhante a Moisés, com quem o Senhor falava face a face.»

Jesus nasceu neste caldo cultural (religioso e político) de penúria espiritual, carente de líderes proféticos. Conheceu João Baptista, que o não satisfez totalmente, e decidiu-se a começar sozinho. Primeira decisão: regressou à sua região, voltou ao norte e fez de Cafarnaúm o seu ponto de referência. Virou as costas à capital politico-religiosa (Jerusalém) e aos ascetas do deserto (João Baptista e Qümran). Optou por viver perto dos mais pobres, dos camponeses e pescadores.


Jesus de Nazaré, esperança para os pobres

Logo no início, os evangelhos sinópticos dizem o que vêm anunciar: a «Boa Notícia de Jesus Cristo, o Filho de Deus» (Marcos 1:1); a «Boa Notícia do Reino» (Mateus 4:23); a «Boa Notícia do Reino de Deus» (Lucas 4:43).

A mãe de Jesus diz como sente essa «boa notícia»: Deus «Manifestou o poder do seu braço e dispersou os soberbos. Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes. Aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias.» [Lucas 1:51-53], apetitosas «expressões para o lápis vermelho de qualquer censor». [JI González Faus]

E, Jesus, na Sinagoga de Nazaré (sua terra natal), diz de si mesmo ‘trago comigo o espírito de Deus que quero compartilhar’: «Segundo o seu costume, entrou em dia de sábado na sinagoga e levantou-se para ler. Entregaram-lhe o livro do profeta Isaías e, desenrolando-o, deparou com a passagem em que está escrito: «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano favorável da parte do Senhor.» Depois, enrolou o livro, entregou-o ao responsável e sentou-se. Todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos nele. Começou, então, a dizer-lhes: «Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir.» Todos davam testemunho em seu favor e se admiravam com as palavras repletas de graça que saíam da sua boca. Diziam: “Não é este o filho de José?”» [Lucas 4:18-19]

Depois desta cena, as coisas não tardaram a complicar-se para Jesus: «Acrescentou, depois: «Em verdade vos digo: Nenhum profeta é bem recebido na sua pátria. Posso assegurar-vos, também, que havia muitas viúvas em Israel no tempo do profeta Elias, quando houve uma grande seca durante três anos e seis meses e por isso houve uma grande fome em toda a terra; contudo, Elias não foi enviado a nenhuma delas, mas sim a uma viúva que vivia em Sarepta de Sídon. Havia muitos leprosos em Israel, no tempo do profeta Eliseu, mas nenhum deles foi purificado senão (um ateu, um pagão) o sírio Naaman.» Ao ouvirem estas palavras, todos, na sinagoga, se encheram de ódio (contra Jesus, claro!). E, erguendo-se, lançaram-no fora da cidade e levaram-no ao cimo do monte sobre o qual a cidade estava edificada, a fim de o matarem. Mas, passando pelo meio deles, Jesus seguiu o seu caminho.» [Lc 4:24-30]

O Deus de Jesus é o mesmo Deus dos Profetas do Antigo Testamento: prefere os pagãos, os excluídos! O «espírito» que repousa, agora, em Jesus é o mesmo Espírito de Deus que sempre tentou intervir na história da humanidade para proteger os fracos e alentar os sem-valor, para colocar o dedo na ferida do povo, para fazer o diagnóstico certeiro da doença.

Porque é que, na Sinagoga de Nazaré, os responsáveis se encheram de ódio contra Jesus? Porque Jesus não leu todo o texto do profeta Isaías: pura e simplesmente, recusou-se a ler o versículo que destilava «condenação», o versículo que revelava um deus vingativo, juiz implacável, um deus algoz: «anunciar o dia da vingança da parte do nosso Deus» [Isaías 61:2b], o qual, no Dia do Juizo Final, deveria cair sobre todos os que tivessem cometido pecados. Jesus saltou este versículo… Com este gesto insolente e revolucionário, Jesus quiz dizer que não vinha anunciar vinganças divinas (religiosas), mas acolhimento e libertação humanos (laicos)!

Mais uma vez, o Espírito de Jesus está em concordância com o Espírito dum Deus Misericordioso, um Deus bom para todos, sem barreiras nem estigmas, um Deus inimigo do ódio, mas denunciador dos odiosos (para seu bem…), um Deus tolerante, excepto para os intolerantes!, um Deus que faz cair a chuva sobre bons e maus. [Mateus 5:43-48: «…vosso Pai que está no Céu, pois Ele faz com que o Sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores. Porque, se amais os que vos amam, que recompensa haveis de ter? Não fazem já isso os cobradores de impostos? E, se saudais somente os vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não o fazem também os pagãos? Portanto, sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai celeste.»] O espírito de Jesus é o mesmo espírito do Deus fundador de Israel: um espírito que perdoa muito mais do que castiga [Dt 5:8-10; milésima vs terceira e quarta geração], mas sobretudo que liberta [v.15] da opressão.

Jesus «vê-se» a si mesmo como um profeta, e tal como todos os profetas, Jesus é um ‘homem’ plantado nas questões do seu tempo, mas pressionado pelo memorial de intervenções de Deus no passado. Jesus é um profeta igual aos Profetas de Israel que se deixaram ‘apanhar’ pelos planos de Deus: ‘comeu’ Deus, digeriu Deus, ‘engoliu’ Deus – consubstanciou-se com os planos de Deus. No passado (AT), 99,9% dos profetas de Israel tinham sido eliminados ou assassinados pelo seu próprio povo. Apesar disso, Jesus não vira as costas ao desafio dos desafios: «dar a vida por uma causa extrema»… Jesus acabava de vir a este mundo e sobre ele pendia já a espada da rejeição: «Depois de partirem, o anjo do Senhor apareceu em sonhos a José e disse-lhe: «Levanta-te, toma o menino e sua mãe, foge para o Egipto e fica lá até que eu te avise, pois Herodes procurará o menino para o matar.» E ele levantou-se de noite, tomou o menino e sua mãe e partiu para o Egipto, permanecendo ali até à morte de Herodes. Assim se cumpriu o que o Senhor anunciou pelo profeta: ‘Do Egipto chamei o meu filho’.» [Mateus 2:13-15]

Quem alguma vez foi ou sentiu o que é ser refugiado político pode entender a dramaticidade deste relato. Algum de nós o aceitaria representar em carne viva? O ambiente é de cortar à faca (‘permaneceram escondidos aguardando a morte do ditador Herodes’), porém, nada disso fez azedar ou acidificar de ódio os planos de Jesus. De facto, a expressão ‘Do Egipto chamei o meu filho’ refere-se a uma das mais comoventes declarações de amor do AT: o projecto de Jesus estava, de veras, preenchido de compaixão! (leia PF todo o Oseias 11; p. ex., ‘Como poderia Eu esquecer-te? O meu coração dá voltas dentro de mim, comovem-se as minhas entranhas. Não desembainharei o furor da minha cólera, não voltarei a destruir Efraim; porque sou Diferente (=um Deus Santo) e não sou como um homem comum, sou o Santo no meio de ti, e não me deixo levar pela ira.’). Como poderia, Jesus, esquecer todo o passado do seu povo e tanta misericórdia divina para com o seu povo? Aquilo que parecia bebedeira, ‘loucura divina’ («Segurava-os com laços humanos, com laços de amor os atava, fui para eles como os que erguem ao ar uma criancinha, face-a-face, ao nível do seu rosto»), aquilo que parecia bebedeira, ‘loucura divina’ para Jesus era ‘desperdício’ divino, excesso, esbanjamento transbordante de amor, «vida em plenitude». [Dt 4:29-31] O coração de Jesus batia, as suas entranhas davam voltas e mais voltas, o fogo da paixão começava a abrasá-lo. Em Israel nascia (mais) um profeta de Deus!


O Deus de Jesus não ‘debatido’, nem ‘explicado’…

Jesus nunca fundou uma ‘escola de filosofia’ (naquele tempo, líder que era líder fundava escola), Jesus nunca ‘estudou para padre’, Jesus nunca frequentou a Universidade Católica-Curso de Teologia-Curso de Ciências Religiosas, Jesus nunca fundou uma Religião ou uma Igreja (ou uma seita), Jesus nunca foi ordenado sacerdote, Jesus nunca revelou pretensões de reconquista para a Fé dos povos pagãos (‘nova evangelização’, ‘luta contra o secularismo’, etc.), Jesus viveu mal acompanhado («Jesus em más companhias») e morreu absolutamente só (verdadeira parábola dos nossos últimos telejornais…). Jesus foi um fracasso absoluto! Morreu como um marginal, um sem-abrigo, um «drogado arrumador de carros» dos nossos dias, como um farrapo e, por isso, tinha à sua espera o género de morte que estava reservado aos insurrectos, aos odiados pelas pessoas muito religiosas, aos «malditos»: o madeiro, a cruz! [«o dependurado do madeiro é um maldito de Deus»; Dt 21:22-23]

Jesus levou uma vida itinerante, viveu para o essencial (ou seja, para anunciar que «um mundo outro é possível»), enfrentou com sagacidade o poder político do Império Romano (Marcos 12:13-17), enfrentou o peso, a raiva e a hipocrisia do poder religioso e das práticas cultuais (Marcos 2:18-28; Mc 7:1-23; Mc 10:1-12; Mc 11:27-28; Dt 28:15-68) e denunciou a ditadura dos laços de nacionalidade e de sangue (foi contra a mentalidade clubística e catalogadora de os «nossos» por oposição aos «outros», Mc 9:38-41; contra as tradições familiares da etiqueta, conveniência e boas maneiras; Marcos 3:20-21.31-35).

Jesus tinha bem claro que, mais importante do que de ter uma boa teoria ideológica, era ter feito uma opção de vida bem firme! Mais importante do que saber (o que é «ser cristão») era fazer (o «Reino»). Jesus tinha “alma de profeta”! Todos os profetas de Israel foram desconfortáveis (para os poderosos), inconvenientes, intransigentes, impiedosos, cheios de compaixão, sofridos por amor, apaixonados. Mas mais importante de tudo isto é que, ao mesmo tempo, sabiam que de nada lhes valiam as suas palavras e denúncias se elas não fossem testadas na realidade social e histórica.

Jesus nunca pregou «Deus», Jesus nunca precisou de proclamar que Deus foi expulso da praça pública [Bento XVI e a «Nova Evangelização»: «"a exclusão de Deus, da religião e da virtude da vida pública"»], Jesus nunca promoveu fóruns de debate culturais sobre «Relação Fé e Razão», Jesus nunca editou um Livro, Jesus nunca colocou no centro das suas preocupações «questões religiosas» (Jesus nunca “foi à missa”, nem aconselhou práticas religiosas – procissões, oferendas religiosas, peditórios, benzeduras, orações para que chova ou nasçam vocações, adorações a objectos ou a estátuas ditas santas, etc.); Jesus nunca usou ‘distintivos na lapela’, nem arregimentou multidões (que confirmassem a sua autoridade), não fez ‘conferências’. Jesus enfrentou a sua escolha, enfrentou a opção de vida que tinha feito, testou-a diante dos seus inimigos (a Igreja do seu tempo), por vezes, discutiu e enfureceu-se.

Jesus tinha bem em mente as palavras que, seguramente, sua mãe lhas fizera decorar (como um bom semita que era): ‘tudo o que tu achas justo, faz. Não te fiques apenas pelas palavras, meu filho… Se te assalta uma ideia justa, vai primeiro testá-la antes de a proclamar’. Mais tarde, já crescido, Jesus terá topado com o Livro do Deuteronómio (18:20-22) e confirmado sua mãe: «O profeta, porém, que tiver a insolência de anunciar em meu nome (em nome de Deus) palavras que não lhe mandei dizer, e aquele que falar em nome de deuses estrangeiros, esse profeta morrerá. Poderás perguntar-te a ti mesmo: ‘Como distinguiremos a palavra que não proferiu o Senhor? Quando o profeta falar em nome do Senhor e essas palavras não se realizarem, então essa palavra não veio do Senhor, o Senhor não a disse. É insolência da palavra deste profeta.»

Em vez de se ficar no ‘face-book’ ou no ‘twitter’, Jesus pôs em marcha um movimento de pessoas em que as ‘proibições’ eram apenas a negação das ‘obrigações’: ou seja, um movimento de pessoas assente em ‘acolhimento e libertação’!


… mas realizado!

A postura do profeta Jesus será, desde os começos, acolher e libertar! Jesus não discorre sobre Deus – Jesus faz acontecer Deus.

Cura um possesso na Igreja, cura uma mulher velha fora da Igreja, cura um leproso, cura um paralítico, perdoa pecados, cura uma mão paralisada, cura um possesso em Gerasa, cura a filha de Jairo, cura uma mulher com metrorragias, cura muitos doentes em Genesaré, cura multidões de doentes nas praças ao ar livre «onde quer que entrasse», cura a filha da mulher siro-fenícia, cura um surdo-mudo, cura um cego em Betsaida, cura um epiléptico que os discípulos não conseguiram curar, cura um cego em Jericó. Por fim, completa a cura, muito antes iniciada, de Maria de Magdala. [Mc 16:9-11]

Onde a vida encrava, Jesus desencrava!
Jesus faz funcionar o «Deus da vida» humana − sempre que ela pára Jesus dá à manivela. Jesus muda as pilhas a Deus… quando Deus parece esfriar no seu ilógico interesse pelo homem. Deus, em Jesus, é (age como, sob a forma de) uma paixão pelo homem sofrido. Jesus acha que qualquer outro espelho de Deus não serve para nada (tal como o achavam Martinho Lutero e Gustavo Gutierrez). O homem em sofrimento é (revela) Deus.

Jesus dispensa a religião para revelar Deus, o Deus dos Vivos, de Abraão, de Isaac e de Jacob – Jesus elege Job e rechaça o deus dos amigos de Job.

Jesus mergulha na trama miserável das misérias humanas para aí ‘ser’ e contagiar (Efésios 4:9-2; Jesus desce à condição mais rebaixada para contagiar uma atitude de serviço). A natureza de Jesus – esse é o seu «projecto de vida» − é estar com os que não têm lugar! É alentar os desalentados e os sem-futuro! É carregar ao colo o próprio destino dos sem-destino! É ofertar ‘olhos que vejam no escuro e sem confusão’, ‘pernas que queiram mesmo fazer caminho’, ‘revitalizar a ouvidos preguiçosos’, ‘serenar e dar alternativa aos aflitos, aos oprimidos’ e ‘dignidade e inclusão aos excluídos pelo poder ou pela religião’ – Jesus é Deus em acção! [Jesus sabia da existência do conselho de Deus: Dt 15:4 - «Em verdade, não deve haver pobres entre vós»]

No território da História da Humanidade (ou do Mal), Jesus revela «Deus aí escondido». O Mal pode transformar-se num local privilegiado de acesso a Deus, no entanto, contudo, sem sado-masoquismos («O Senhor abençoou a nova condição de Job, mais do que a antiga»; Job 42:12).

O Mal pode ser hierofânico. Às vezes, é a partir do Mal absoluto (extremo) que melhor e mais claro se pode ver a Deus, já que é a partir da vida deste mundo que Deus se revela. «Na realidade, basta abrir a Bíblia para sentir em cada página a vida pessoal e colectiva em toda a sua concretitude. A história (bíblica), justamente, conta-se ali para iluminar o presente à luz do que sucedeu com «os pais» (fundadores). Os profetas não falam de futuros misteriosos mas de problemas morais, éticos e até políticos bem agudos. Os salmos são orações carregadas de preocupações, ânsias e problemas agudos. A literatura sapiencial constitui uma reflexão sobre a vida, desde os problemas mais universais até aos de mera etiqueta. Os escritos apocalípticos falam de coisas raras e adoptam o estilo (convencional) de revelações misteriosas, mas nós sabemos que enraizam nas angústias e esperanças de uma história concreta. E, entrando nos evangelhos, o que impressiona na pregação e no comportamento de Jesus é justamente a sua adesão à vida, o seu centramento nos problemas mais imediatos da marginalidade, da pobreza, da dor, a sua oferta de sentido, não a partir dum Deus abstracto, mas a partir dum Deus «pai» que se preocupa inclusivamente com os cabelos da nossa cabeza». [Lucas 21:18] (A. Torres Qeiruga)

A «História como parteira» revela o sentido da vida a todos os seres humanos, independentemente de serem crentes ou não. Depois, é uma questão de exigência pessoal: uns desvalorizam e viram-lhe as costas; outros interrogam-se, batem-se, ferem-se e desanimam; outros, porém, querem ir sempre mais ao fundo das questões e … perdem-se nisso: «dão a vida»! (1 Jo 3:16-20) «A Bíblia e o coração dizem o mesmo. Por isso (e por isso) a Bíblia é ‘revelação’» [F. Rosenzweig, filósofo judeu]

«Captamos Deus no sentido em que nos deixamos transformar pelo seu dinamismo» [A. Torres Queiruga]

Jesus, um pouco à maneira de Dietriech Bonhoeffer, interrogava-se: Como pode Deus chegar a ser também Senhor dos não-religiosos num ‘mundo adulto’ para quem a hipótese de Deus é supérflua? «Como falar de Deus sem religião?» [D. Bonhoeffer, ‘Cartas do Cativeiro’, prisão de Tegel 1944]

«Não podemos ser honestos sem reconhecer que é necessário que vivamos no mundo etsi Deus non daretur. (…) Chegados à maioridade, temos que reconhecer de forma muito verdadeira a nossa situação diante de Deus. Deus faz-nos saber que é preciso que vivamos como seres humanos que conseguem viver sem Deus. O Deus que está connosco é o Deus que nos abandonou! (Mc 15:34) O Deus que nos deixa viver no mundo sem a hipótese de trabalho «Deus» é aquele diante do qual estamos constantemente. Diante de Deus e com Deus vivemos sem Deus. Deus deixa-se  desalojar do mundo e ser cravado na cruz. Deus é impotente e débil neste mundo e só assim está connosco e só assim nos ajuda. Mateus 8:17 indica-nos claramente que Cristo nos ajuda, não pela sua omnipotência, mas sim pela sua debilidade e pelos seus sofrimentos». [D. Bonhoeffer]

Há que falar de Deus mundanamente, na finitude da história, no limite, na realidade das coisas, «laicamente» [DB], de forma secular.

Jesus não pregou Deus: anunciou a vinda do reino de Deus!
Jesus foi, sobretudo, um profeta: nele, Deus era e agia! O ‘conceito Deus’ era-lhe perfeitamente inútil. Deus, em Jesus, era sobretudo PROXIMIDADE, irmandade, amizade, gestos de «acolhimento e libertação total» e nunca religião. A Religião (toda a religião) assenta em três pressupostos: a metafísica; a existência da ‘alma’ (por oposição à exterioridade e à história) − o que leva ao individualismo e às obras autosatisfatórias; e a segregação ou parcialidade, aquilo que se denomina o sagrado. [Arnaud Corbic, ‘Dietrich Bonhoeffer: Cristo, Señor de los no-religiosos’]

Jesus não é um homem do sagrado, mas um homo-humanus e Deus é o homem levado ao extremo do seu ser!, aspecto que não depende absolutamente de práticas religiosas ou piedosas, mas absolutamente duma existência terrena radicalizada e provocadora. Cristão é todo o ser humano terrestre em que a vida de libertação se derrama e entorna. Foi isso que muito custou a entender a Pedro (Marcos 8:31). E a muitos de nós, ainda hoje. Jesus veio revelar um Deus próximo [Abba-ô Pater], fraterno e ao serviço do homem. O esquema mental de Jesus era: ‘Deus-Pai Nosso-próximo’ logo ‘fraternidade-igualdade entre todos’ logo ‘serviço mútuo universal’. Jesus veio colocar o Homem no centro e, assim, condenar qualquer tipo de dominação do homem sobre o homem.

Aquilo que mais exasperava Jesus era um Deus desligado da história da humanidade. [JI González Faus]

O capítulo oitavo de Marcos é um sítio suficiente para exemplificar isto. Jesus é a abundância de felicidade e bem-estar (v.1-10: «alimenta 4.000»), mas para as pessoas religiosas isso não bastava: exigiam uma prova celeste, um sinal vindo do Céu! (v.11). Enquanto que, para Jesus, Deus é bem-estar, fome satisfeita, sede saciada e conforto humano (v6, ‘ordenou que se sentassem’), para os piedosos ‘tem que haver mais alguma coisa’. Ou seja, Deus é uma espécie de rótulo que se tem que colar à embalagem: doutra forma ninguém acreditaria que o conteúdo fosse real, verdadeiro ou a encomenda fosse suficientemente perfeita.

O ‘primeiro anúncio da paixão’ (v.31-33) diz o mesmo. Jesus tenta tornar claro aos discípulos que «fora da história dos excluídos não há salvação» (v.31-32a). Porém, Pedro (v.32b) acha que não: que é possível mudar a vida deste mundo compactuando com as regras deste mundo. Jesus volta ‘à vaca fria’ (v.33): «os teus pensamentos não são os de Deus, mas os dos homens». Há aqui uma esgrima: Pedro usa a espada do seu deus (a ideologia religiosa e piedosa dos conciliadores moderados que temem a verdade toda) e Jesus usa a espada dos profetas (o apelo à Koinonia, ao serviço como um absoluto, ao ‘ser apenas dom de vida’, injectores de ressurreição, salvadores e libertadores - v.35).

Em Mateus 23 – a célebre condenação do farisaísmo – Jesus regressa à denúncia do «dizem mas não fazem» (v.3). Diante duma prática religiosa em que Deus é colocado lá em cima no Céu e o Homem cá em baixo, em que existem territórios bem definidos e canais de comunicação entre ambos (mandar rezar missas por, água benta para, santos que metem cunhas a Deus – que intercedem −, procissões e orações de petição, etc.), diante deste triste e pobre espectáculo pietista, Jesus só tem uma palavra: «Hipócritas»!

«Desprezais o mais importante da Lei (da religião): a justiça, a misericórdia e a fidelidade [Mateus 23:23]

A frustração de Jesus não podia ser maior: «Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados! Quantas vezes quis reunir os teus filhos como a galinha reúne os seus pintainhos sob as asas, e tu não quiseste!Pois bem, a vossa casa ficará deserta. Eu vos digo que não voltareis a ver-me até que digais: ‘Bendito o que vem em nome do Senhor’.» [Mateus 23:37-38]. Jesus profetisa o fim da religião que não nasça do interior da vida humana.

Pergunta: Em que Deus acreditava Jesus?
Resposta: Na vida da humanidade, renovada, levada ao extremo do serviço!

É incrível! Custa a crer! Sobretudo, que, dois mil anos depois, isto tenha que ser proclamado, mais uma vez, como novidade, como «uma Boa Notícia».


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