teologia para leigos

1 de março de 2012

O CONCEITO CRISTÃO DA LIBERDADE_3

Da Libertação à Liberdade
«Se o Filho vos liberta, sereis realmente livres» [João 8:36]


MOISÉS_Miguel Ângelo
 
O centro da consciência do Israel antigo era a lembrança do Êxodo.

Uma das mais antigas declarações de Fé dizia: «Meu pai era um arameu errante: desceu ao Egipto com um pequeno número e ali viveu como estrangeiro, mas depois tornou-se um povo forte e numeroso. Então os egípcios maltrataram-nos, oprimindo-nos e impondo-nos dura escravidão. Clamámos ao Senhor, Deus de nossos pais, e o Senhor ouviu o nosso clamor, viu a nossa humilhação, os nossos trabalhos e a nossa angústia, e tirou-nos do Egipto, com sua mão forte e seu braço estendido, com grandes milagres, sinais e prodígios.» [Dt 26:5-8]

Essa lembrança nunca esteve ausente da consciência do israelita. Ela é a tela de fundo de toda a sua representação de Deus, do mundo e de si próprio. A totalidade da sua existência individual e social refere-se à original origem da libertação. Através dos séculos esse facto inicial nunca deixou de ser fecundo e de gerar novos efeitos, já que o acto inicial de libertação prolongou-se por numerosos novos actos salvadores no decorrer dos séculos. O mesmo constitui a base das esperanças para o futuro.

Dada essa consciência, não é de estranhar que a figura de Moisés – o profeta que presidiu em nome de Yahvé à libertação do Povo – tenha ocupado um lugar tão destacado na memória desse Povo. Todas as ambições do povo para o futuro concentram-se ao redor da figura dum novo Moisés. Que venha um novo Moisés – impossível imaginar melhor! De certo modo, todos os profetas prolongam a acção de Moisés realizada no passado: todos culminam no novo Moisés do futuro. Da mesma maneira, os acontecimentos que marcaram a libertação do Egipto – os sinais e prodígios do Mar Vermelho e do deserto, a revelação de Deus, os actos fundadores da Aliança e do Povo – forneceram uma referência permanente para que o povo de Israel pudesse compreender, julgar e orientar todos os acontecimentos da sua história. O Êxodo era a norma, o modelo,  a imagem ideal.

Ora, os evangelhos mostram-nos o advento desse novo Moisés, desse novo libertador do seu povo na pessoa de Jesus. Para os discípulos, sem dúvida, Jesus é superior a Moisés. [Mt 19:7-9; Jesus atreve-se a pôr em questão a prescrição de Moisés e a propor um critério NOVO, mais exigente] Os próprios judeus da mais estrita observância esperavam um Messias que transcendesse o Moisés antigo. Contudo, por ser superior a Moisés, Jesus há-de ser compreendido a partir da figura do profeta antigo que para Jesus foi uma imagem e uma preparação. Jesus vem completar e acabar a antiga libertação do Egipto, levando-a ao seu termo. De nenhuma maneira a sua obra poderia ser entendida sem essa referência fundamental.

Por isso, o evangelista mais sintético, aquele que pretendeu elaborar uma certa sistematização da revelação de Jesus, S. Lucas, redigiu o cântico de Zacarias, que é como que uma síntese da missão do Salvador. Nesse cântico, Jesus aparece como o novo Moisés libertador do seu povo: «Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, porque visitou e libertou o seu Povo e suscitou-nos um salvador poderoso (…) para nos salvar dos nossos inimigos e da mão de quantos nos odeiam (…)» [Lucas 1:68-71].

De facto, os discípulos entenderam assim essa missão. Depois da morte de Jesus, os discípulos recapitulam a mensagem que tinham recebido e aceite: «Nós esperávamos que fosse ele o que haveria de libertar Israel» [Lc 24:21]. Na realidade eles tinham razão ao expectar ansiosamente assim, mas deixaram de ter razão ao duvidarem por causa da crucifixão.

Se Jesus é um novo Moisés libertador, a sua obra é a restauração daquele povo de Israel que Paulo designa com a expressão bíblica tradicional «a igreja de Deus». «Igreja» no sentido original da palavra que significa «assembleia de Deus» (expressão assumida por certos grupos evangélicos contemporâneos no Brasil e em outras regiões do mundo). Inclusivamente, a palavra «assembleia» não exprime todo o conteúdo bíblico. Uma igreja é um povo reunido em acto público para decidir e assumir o seu destino diante de Deus. A libertação do cativeiro do Egipto fora essa reunião pública de um povo livre para decidir o seu destino. Da mesma maneira, a libertação de Jesus desembocou numa reunião de um povo reunido para assumir o seu destino de povo.

Contudo, há diferenças notáveis entre o acto de libertação presidido por Moisés e a libertação de Jesus, assim como há grandes diferenças entre as doze tribos de Israel reunidas em torno de Moisés no deserto do Sinai e o povo de Deus que se torna o corpo de Jesus Cristo.

A primeira diferença é óbvia: Moisés foi o libertador dum povo particular, o Povo de Israel constituído pelas doze tribos. Jesus é o libertador dum povo universal tirado de todos os povos da terra, de tal modo que a antiga separação entre ‘povo de Deus’ e povos da terra, Israel e gentios, está condenada a desaparecer. A libertação de Jesus não se destina unicamente ao antigo povo de Israel, entendido como determinado conjunto de famílias biológicas. Jesus não foi um precursor do sionismo. Por isso não podia compreender a sua missão dentro dos limites da compreensão dos zelotas. Estes queriam a libertação de Israel da dominação romana, visando o restabelecimento de um Estado israelita análogo ao Estado de David. Jesus, porém, age em função da vocação de todas as nações a participarem do Povo de Deus: assim o entendeu claramente a totalidade dos seus discípulos e não podemos imaginar que se tenham enganado num ponto tão central da missão do seu Mestre.

Mas, então, poderíamos perguntar-nos qual o sentido da referência a Moisés e ao Povo do Deserto? Que têm a ver Moisés, o Sinai, as tribos de Israel, o deserto e os acontecimentos que afectaram essas tribos há mais de três mil anos com os outros povos, por exemplo, com o povo português? Contudo, o autor do evangelho escrito justamente para os não-judeus é o que mais insiste na relação de Jesus à figura de Moisés e na libertação do povo de Israel a fim de apresentar a mensagem e a acção de Jesus. Essa história do passado tem peso e a sua memória é imprescindível para todos os povos chamados a constituírem o Povo Universal. Pois, como dizia Santo Ireneu num texto muito famoso: «a saída do povo do Egipto pela força de Deus foi a imagem perfeita e o tipo ideal de saída da Igreja que devia sair das nações» [Ad. Haer., IV, 47]. Portanto, todos os povos que entram no Povo de Deus passam por um processo semelhante ao do Povo de Israel ao sair do Egipto, de tal modo que o tema do Êxodo permite-nos entender correctamente em que consiste essa «conversão» dos povos a Jesus Cristo e ao seu corpo. Todos passam por um processo de «libertação».


Qual é o conteúdo dessa libertação? Livre de quê? Livre em quê?

Esse assunto está a ser muito discutido nos últimos anos dentro da Igreja católica. Muitos tendem a dar a sua resposta a priori na base do palpite ou de suas preferências pessoais. Projectam nas palavras bíblicas o sentido que corresponde às suas preocupações. Daí tantas controvérsias apaixonadas, e sem solução, justamente porque apaixonadas e julgadas a priori.

Contudo, o Novo Testamento contém a resposta a essas perguntas. A resposta é a doutrina do Novo Testamento sobre a liberdade cristã. O Antigo Testamento não tinha doutrina explícita da liberdade: tal silêncio explica-se na medida em que a tendência profunda do Antigo Testamento era a espera do futuroa libertação era um futuro sempre futuro, cujo conteúdo não se manifestava nunca. Porém, no Novo Testamento, o futuro torna-se, de certa maneira, presente: Paulo criou a linguagem da liberdade e realizou a passagem do conceito de libertação ao conceito de liberdade. Por certo, Paulo usou certos elementos prévios para criar a sua linguagem de liberdade: a democracia grega, forneceu-lhe uma base providencial e, de certo modo, podemos dizer que a democracia grega foi uma preparação providencial no sentido de preparar a realidade e a linguagem do povo cristão.

No Novo Testamento, o novo Êxodo desemboca na liberdade cristã. A libertação do Êxodo é passível de caracterização. Essa caracterização fornecerá o objecto destas meditações. Em que consiste a libertação cristã anunciada pelo Novo Testamento? Em que é que ela prolonga e aprofunda a libertação do Êxodo de Israel a partir do Egipto? Em que sentido foi transformada a experiência do passado e renovada, de modo diferente, na experiência de todos os povos chamados a formar parte do povo de Deus? É o que queremos contemplar nestas modestas páginas.

A doutrina paulina da liberdade não surgiu de repente a partir do Êxodo do Antigo Testamento. A passagem seria violenta demais. Entre o Êxodo do Egipto e a mensagem paulina da liberdade houve muitas fases e o povo de Israel conheceu muitas experiências que foram percorrendo pouco a pouco com vistas à nova compreensão da libertação de Deus.

O êxodo do Egipto era apenas o começo duma longa história. A libertação das tribos de Israel não podia ser a etapa final do processo total da libertação. As diversas etapas históricas do povo de Israel iam manifestar as dimensões do problema.

O próprio povo de Israel tornou-se opressor e dominador para com as tribos que viviam na terra da Palestina. Os israelitas mataram e exterminaram os habitantes do país em nome de Deus, dum Deus da guerra e do genocídio [Josué 10:30.35;11:11;19:47; etc.]. Depois disso, quiseram entrar no jogo da dominação política ao rivalizarem com os povos vizinhos. Quiseram reis para dirigir de modo permanente os seus exércitos e nem deram valor às advertências de Samuel que lhes mostrou que o poder político dominador e imperial se paga com o preço da servidão e da exploração dentro do próprio povo [1 Samuel 12]. Depois de séculos de lutas e combates, o povo de Israel foi vítima do jogo das rivalidades políticas, caindo nas mãos dos impérios que dominaram o Médio Oriente: Babilónia, Pérsia, Alexandre Magno e os seus sucessores gregos, finalmente o império Romano. Contudo, o império persa permitiu o restabelecimento de Israel na forma de comunidade religiosa sob a hegemonia do império. Salvo alguns períodos difíceis, os impérios grego e romano permitiram a mesma semi-independência. Tudo isso, porém, servia para mostrar a complexidade do processo histórico de formação de um povo livre, verdadeiro povo de Deus livre.

A continuidade com a história do Antigo Testamento tem uma finalidade pedagógica: o de mostrar que o povo de Deus é um povo real e histórico, um povo que se desenvolve nesta terra, ainda que num processo original e diferente do processo que seguiam as tribos, as monarquias, os impérios, e naturalmente as nações modernas.

Se a mensagem do Novo Testamento estivesse separada do Antigo e da história do povo de Deus, ela seria facilmente vítima do processo de metaforização característico da cultura helenística contemporânea dos primeiros tempos da Igreja.

Naquele tempo, os gregos letrados dedicavam-se a um processo de racionalização das suas religiões tradicionais. As religiões tradicionais referiam muitas histórias de deuses e outros seres super-humanos, histórias inclusivamente, em muitos casos, pouco edificantes. Os letrados queriam dar melhor aspecto às suas religiões e interpretavam essas histórias num sentido alegórico. As histórias dos deuses transformavam-se em alegorias ou figuras de realidades morais, dramas da psicologia humana, realidades do mundo interior. Da mesma maneira, podia surgir a tentação de aplicar o mesmo processo às realidades cristãs, transformando toda a história do povo de Deus numa alegoria das aventuras psicológicas da alma religiosa. Nesse caso, o Povo de Deus seria puramente o lugar em que as almas religiosas cultivam as suas experiências do Deus cristão. Vários autores gregos, em parte, caíram nessa tentação. Eles conheciam muito bem os processos de interpretação que se aplicavam, nas escolas pagãs, às histórias dos deuses. A facilidade consistia em usar os mesmos métodos em relação ao Deus cristão.

Nesse caso, o leitor da Bíblia estaria inclinado a ver na história da libertação do povo de Deus uma mera expressão literária, uma alegoria dum acontecimento puramente interior: alegoria do sentimento de libertação interior que lhe daria a adesão pessoal à mensagem religiosa de Jesus.

Do mesmo modo, os filósofos e os sábios da Antiguidade romana, durante os tempos do império, não esperavam nenhuma forma de libertação exterior. Para eles, a libertação consistia em manter um sentimento de autonomia interior ao aceitarem as necessidades tanto da natureza como do império. Para a filosofia contemporânea das origens do cristianismo, a única liberdade era a liberdade interior da pessoa que aceita voluntariamente todas as dependências exteriores inevitáveis, a ordem social e a ordem física, mas conserva inviolável o sentimento dos seu «eu». Para esses filósofos, o cristianismo podia ser útil ao dar motivações superiores para aceitar a ordem estabelecida e manter a riqueza do seu «eu» interior inviolável. Nesse «eu» estritamente individual eles teriam depositado o tesouro do seu Deus. Apesar de todas as necessidades e dependências, teriam a liberdade de viver uma vida de amor com o seu Deus pessoal, último reduto da personalidade e reserva riquíssima do indivíduo humano.

Com certeza, há no cristianismo elementos que permitem desenvolver e valorizar ao máximo essa reserva de individualidade, esse segredo da vida interior do eu: os cristãos que viveram nos campos de concentração, tão numerosos neste século XX que, de certo modo, se pode dizer que são uma das imagens históricas que o nosso século deixará para as gerações futuras, esses cristãos puderam experimentar a força que dá a fé cristã numa situação de total despojamento e na mais alta forma de alienação inventada pelo génio técnico da humanidade. Porém, o cristianismo não foi feito para ser vivido unicamente nos campos de concentração, como se este fosse o único provir possível para a humanidade.

Em todo o caso, não podemos aplicar ao conceito bíblico de libertação os métodos de alegorização que a tornam uma mera imagem dum fenómeno interior. A Bíblia fala do destino de povos concretos e a sua libertação refere-se a povos concretos, e o povo de Deus tem um destino histórico concreto, material, bem visível e socialmente vivido por pessoas inteiras e não somente por puras almas.

Por conseguinte, não podemos evitar o encontro da mensagem de libertação bíblica com os diversos movimentos de libertação da nossa época. Não podemos fugir do problema dizendo que a libertação bíblica se refere somente às almas. Na realidade, ela encarna-se em condições concretas e encontra-se com os problemas da libertação racial, libertação da mulher, libertação das nações oprimidas pelos impérios ou libertação dos trabalhadores oprimidos pelos detentores do capital.

Qual é a relação exacta entre a mensagem do Novo Testamento e tais movimentos? Uma resposta adequada a semelhante pergunta não cabe dentro dos limites destas meditações bíblicas. Podemos aqui, porém, considerar o ponto de partida de todas as respostas autênticas a tal pergunta:

1.   Que diz o Novo Testamento?
2.   Quais são os conceitos pelos quais o Novo Testamento orienta a leitura do processo de libertação cristã?

Ora, tal como já dissemos, o Novo Testamento orienta a nossa leitura: a libertação do Povo de Deus desemboca numa situação descrita pelo vocabulário paulino da libertação. «Fomos chamados à liberdade», diz o Apóstolo Paulo, e essa liberdade há-de ser vivida de alguma maneira na actualidade histórica.

Que significa essa mensagem?

O autor da doutrina da liberdade foi S. Paulo. Confrontado com o sistema judaico que ele próprio conhecia muito bem, e conhecedor dos recursos que a civilização grega lhe podia oferecer para enunciar a novidade do cristianismo para o judaísmo, S. Paulo definiu as bases do povo cristão. Partindo dessa base, a teologia de S. João pôde estendê-la à situação concreta do cristianismo no império romano. E, finalmente, graças à explicação feita pelas primeiras gerações cristãs, podemos entender melhor o significado da prática histórica de Jesus, isto é, o alcance histórico das suas obras e palavras.

Jesus não fez a doutrina da sua acção: agiu sem dizer o que é que estava a realizar deixando que as obras falassem por si próprias, tal como ele próprio o disse. Por isso, devemos ler os Evangelhos em último lugar, mas apoiados na interpretação que os apóstolos iluminados pelo Espírito lhe deram: tal foi o princípio sempre seguido pela Igreja.


José Comblin [1977]


«Uma alegoria (do grego αλλος, allos, "outro", e αγορευειν, agoreuein, "falar em público") é uma figura de linguagem, mais especificamente de uso retórico, que produz a virtualização do significado, ou seja, sua expressão transmite um ou mais sentidos que o da simples compreensão ao literal. Diz b para significar a. Uma alegoria não precisa ser expressa no texto escrito: pode dirigir-se aos olhos e, com freqüência, encontra-se na pintura, escultura ou noutras formas de linguagem. Embora opere de maneira semelhante a outras figuras retóricas, a alegoria vai além da simples comparação da metáfora. A fábula e a parábola são exemplos genéricos (isto é, de gêneros textuais) de aplicação da alegoria, às vezes acompanhados de uma moral que deixa claro a relação entre o sentido literal e o sentido figurado.»