teologia para leigos

14 de fevereiro de 2012

PALAVRAS SUBLIMES OU CARREGAR COM O FARDO DOS FRÁGEIS?

«Desde há muito que me impressiona o contraste entre a estátua de O Pensador, de Rodin, e a do bodisatva meditativo, que preside no templo de Chuuguji, em Nara (Japão). O primeiro, seguro da sua força, coloca-se tenso para pensar. O segundo concentra o seu olhar compassivo e sapiencial sobre a frágil condição humana; está sentado em postura de lotus, atento mas ao mesmo tempo relaxado e distendido, receptivo a fim de se deixar iluminar e transformar a partir «da outra margem» [Juan Masiá]

«Diz-me como fazes as perguntas, como escolhes, como confias e eu te direi quem és.»

Desde há um século que o conceito de «vida», para o Vaticano, se limita a dois espaços temporais: da concepção até ao nascimento e quando a morte se aproxima… Ou seja, a maior parte da vida dum ser humano, para o Vaticano, não é tão importante assim… Exige-se uma revisão da hermenêutica antropológica oficial!


em Baião_Casa da Isabel e do Manel

 
Gerar vida e gerar morte


 
Espanta-me a facilidade como alguns clérigos e bispos afirmam poder distinguir com clareza as forças que geram vida e as que geram morte. Discorrem como se estivessem num campo de certezas. Nem percebem que o próprio uso dessas duas palavras principalmente nos seus discursos acalorados sobre a importância de escolhermos a vida conduz quase necessariamente a defender armadilhas de morte e provocar formas sutis de violência.

O que é vida? O que é morte? É possível que a morte se sustente fora da vida e a vida fora da morte? Não somos nós vida e morte ao mesmo tempo? Não somos sempre aprendizes, caminhando trôpegos, dando um passo depois do outro nas escolhas diárias que tentamos fazer?

Faz algum tempo que a Igreja Católica no Brasil vem desenvolvendo uma linha equivocada de defesa da vida. Quando falam da defesa da vida reduzem o termo vida à vida do feto humano e, assegurados da vida do feto esquecem-se de todos os outros aspectos e personagens reais da complexa teia da vida. Fico me perguntando de novo porque insistem nesse erro e nesse limite lógico condenado também de muitas maneiras pelos muitos filósofos e teólogos da Tradição Cristã. Distanciam-se até das últimas reflexões de Bento XVI que, com justeza, discorre sobre a complexidade da vida no universo, incluindo-se a vida humana.

 Espanta-me constatar mais uma vez a pouca formação filosófica e teológica de parte do episcopado e de muitos clérigos que se arvoram a defender a vida, mas atiram pedras em pessoas que consideram "mal-amadas" só por defenderem um ideário diferente do seu. Porquê "mal-amada" ou "mal-amado" seria uma forma de menosprezar ou diminuir as pessoas? O que de fato querem dizer com isso? Não somos todos nós necessitados de amor? Não é o amor a missão cristã? Não é para os desprezados, esquecidos e mal-amados que o Cristianismo diz manter sua missão a exemplo de Jesus?

É desconcertante perceber que usam expressões desse tipo e instrumentalizam a mensagem cristã para afirmar desacordos de posições, como o fez D. Benedito Simão, bispo de Assis e Presidente da Comissão pela Vida do Regional Sul I da CNBB.

Em entrevista ao Grupo Estado de São Paulo na semana passada, por ocasião da escolha da Professora e Doutora Eleonora Menicucci como ministra da Secretaria de Políticas para Mulheres, o referido bispo classificou a nova ministra de "mal-amada" e, com isso desrespeitou-a e incitou ao desrespeito e à falta de diálogo em relação à responsabilidade pública de enfrentar os sérios problemas sociais. Seria o bispo então um privilegiado "bem-amado"? A partir de que critérios? O desrespeito às histórias e escolhas pessoais, às muitas dores e razões de muitas mulheres torna-se moeda corrente em muitas Igrejas cristãs que se armam para uma chamada "guerra santa" sem a preocupação de aproximar-se das pessoas envolvidas em situações de desespero. Usam sua autoridade junto ao povo para gritar palavras de ordem e em nome de seu deus confundir as mentes e os corações.

 Perdeu-se a civilidade. Perdeu-se o desejo de consagração à sabedoria e ao bom senso. Perdeu-se a escuta aos acontecimentos e à aproximação respeitosa das dores alheias. Apenas se responde a partir de PRINCÍPIOS e de pretensa autoridade.

Mas, o que são os princípios fora da vida cotidiana das pessoas de carne e osso? Qual é o tecto dos princípios? Quem os estabelece? Onde vivem eles? Como se conjugam nas diferentes situações da vida?

O convite ao pensamento se faz absolutamente necessário quando as trevas da ignorância obscurecem as mentes e os corações. Nesse momento crítico de descrença em relação a muitos valores humanos, as atitudes policialescas de um ou mais bispos, de clérigos e pastores, assim como de alguns fiéis nos apavoram. A ignorância das próprias fontes do Evangelho e a instrumentalização da fé dos mais simples nos espantam. A democracia real está em risco. A liberdade está ameaçada pelo obscurantismo religioso.

De nada servem palavras como diálogo, escuta, conversão, solidariedade, respeito à vida quando na prática é a violência e a defesa de ideias pré-concebidas que parecem nortear alguns comportamentos religiosos públicos. Seguem esquecendo que não se deve tomar Deus em vão. Não apenas seu nome, pois isto, já o fazem. Tomar Deus em vão é tomar as criaturas em vão, seleccionando-os, desrespeitando-as e julgando-as de antemão.

 Nós todas/os temos palhas e traves em nossos olhos e eu sou a primeira. Por isso, cada pessoa ou grupo apenas consegue ver algo da realidade, que é sempre maior do que nós.

Entretanto, se quisermos enxergar um pouco mais, somos convidadas a nos aproximar de forma desarmada dos outros. Somos desafiadas a ouvir, olhar, sentir, acolher, perguntar, conversar como se o corpo do outro ou da outra pudessem ser meu próprio corpo, como se os olhos e ouvidos dos outros pudessem completar minha visão e audição.

E mais, como se as dores alheias pudessem ser de facto minhas próprias dores e suas histórias de vida minhas mestras. Só assim poderemos ter um pouco de autoridade com dignidade. Só assim nossas belas palavras não serão ocas. E, talvez, nessa abertura a cada dia renovada, poderemos acreditar na necessidade vital de carregar os fardos uns dos outros e esperar que a fraternidade e a sororidade sejam possíveis em nossas relações.


Ivone Gebara

13 Fevereiro 2012
por ADITAL- NOTÍCIAS DA AMÉRICA LATINA E DO CARIBE