«hino à alegria» ou «marcha turca»?
Slavoj Zizek
Qual o ponto da situação actual? A Europa está presa numa tenaz entre a América, por um lado, e a China, pelo outro. Metafisicamente falando, América e China, vai tudo dar ao mesmo: é o mesmo frenesim de tecnologia desenfreada, um modo de vida desenraizado para o indivíduo comum. Quando o canto mais recuado do mundo foi conquistado pela técnica e pode ser explorado economicamente; quando tudo o que acontece no planeta se torna acessível, independentemente do local e da hora; quando, através da «cobertura mediática em directo», podemos «viver» simultaneamente um combate no deserto iraquiano e a representação de uma ópera em Pequim; quando, à hora da rede digital planetária, o tempo é apenas velocidade, instantaneidade e simultaneidade; quando o vencedor de uma série de «tele-realidade» é considerado como o grande personagem nacional; então, sim, surgida de todo este tumulto, como um espectro, emerge a pergunta: e porquê? − para onde ir? − e depois?...
(…)
Isto não se aplicará à Europa actual? Depois de ter convidado milhões de seres a abraçarem-se, do mais elevado ao mais insignificante (pequeno verme), a segunda estrofe[1] [do 4º andamento da 9ª Sinfonia de Beethoven] acaba de modo inquietante: «Und wer’s nie gekonnt, der stehle weinend sich aus dem Bund» [«Mas vós, que não sois aflorados por nenhum amor, abandonai este coro ao chorardes!»]. Que o Hino à Alegria de Beethoven se tenha tornado o hino não oficial da Europa não deixa de ser irónico, ironia que reside evidentemente no facto de a causa principal da crise da União ser precisamente a Turquia: a acreditar na maioria das sondagens, um dos principais motivos invocados por aqueles que votaram «não» nos últimos referendos em França e na Holanda era o medo dos imigrantes vindos do Oriente, um medo que se articula politicamente à oposição da entrada da Turquia na União. O «não» pode ser colocado em termos populistas e direitistas (‘não’ à ameaça cultural turca, ‘não’ à mão-de-obra barata da imigração turca) ou em termos multiculturais e liberais (a candidatura da Turquia não deveria ser aceite devido ao tratamento que esse país reserva aos Curdos a à sua incúria quanto aos direitos do homem). A resposta oposta, o «sim», é tão falsa como a cadência final de Beethoven… Devemos então admitir a Turquia na União ou deixá-la «sair da União, com pezinhos de lã» («aus dem Bund» - abandonar o coro)?
Sobreviverá a Europa à «Marcha Turca»? E se, como no final da nona de Beethoven, o verdadeiro problema não fosse a Turquia, mas a própria melodia, a canção da União Europeia tal como ela nos é entoada pela elite pragmática, tecnocrática e pós-política de Bruxelas?[2]
Do que precisamos é de uma melodia completamente nova, de uma nova definição da Europa.
[1] A meio do quarto andamento da 9ª Sinfonia de Beethoven, depois de três variações do tema da Alegria, acontece algo inesperado: o tema é retomado ao estilo de ‘Marcha Turca’, marcha militar, não mais se voltando a encontrar a anterior dignidade simples e solene.
[2] Fragmento de BEM-VINDO AO DESERTO DO REAL, de Slavoj Zizek, p.13-14, Relógio d’Água, «Colecção Argumentos», 2006.