O quê de ‘sagrado’ na «Sagrada Família»?
A grande transumância
Quando lhe chegou aos ouvidos pela terceira vez o rumor, Maria decidiu-se a ir. ‘Dera à luz’, é certo, mas muitos insistiam ainda no boato de que o pai da criança era um soldado romano a cumprir serviço militar na Palestina. Decidiu deixar-se levar e rumou ao Egipto.
Para trás ficavam as amigas, as famílias vizinhas, as crianças que costumavam invadir-lhe o pátio, os pedintes-vagabundos (que eram muitos…), e sua prima. Sentia que tudo o que já vivera tinha chegado a um ponto que exigia dela um gesto como um cedro, uma decisão convicta. Nada tinha sido fácil desde que conhecera o emigrante vindo do Sul, um rapaz que acalentava o sonho de trabalhar para juntar dinheiro e erguer uma casa. Ele era bastante mais velho, um tanto sonhador e as raparigas daquela aldeia achavam-no pouco interessante – portanto, não paravam de intrigar: «livrar-se-á, ela, da lapidação…?». E, quando se achara grávida, subitamente numa certa noite, a mente enchera-se de pesadelos: um tropel no coração, que a fez erguer várias vezes sem saber porquê nessa noite.
Também nessa mesma noite – a memória da sua companheira de infância mais amada. Após os dezasseis anos, nunca mais a vira. Tinha ido servir para outra cidade, no Sul, e, segundo se dizia, vivia bem. Começara numa taberna e até nem ia mal. Depois as coisas ruíram e começou a beber. Desalojada e frágil, a grande amiga de Maria viveu na rua, aí onde tudo se reparte e rasga: o filho que pariu, fê-lo na rua, pariu-o na rua e foi-lhe levado da rua enquanto ela nadava, cega e aos gritos, numa taça de álcool. Miraculosamente, ou funestamente, uma mulher trouxe-a para sua casa. E disse-lhe: «Queres trabalho que eu dou-te cama e abrigo? Bem: trabalho e cama… em troca do teu Rendimento Mínimo!?»
– «Então? Não respondes?»
– «Pode ser…»
E assim a melhor amiga de Maria se tornou, vinte e quatro sobre vinte e quatro horas!, a responsável por abrir a porta de dia e de noite, encaminhar os clientes, receber o dinheiro, fazer o troco, depois lavar, despejar e limpar os quartos, por fim fazer contas com a patroa. Há milagres inquietantes, mas este foi-o, sobretudo, intimamente quase intolerável: três dias e três noites a tremer, a tremer de frio (seria frio?) e, por fim, livrara-se de vez do álcool! Durante uma visita minha, disse-me ela: «Ó senhor doutor foi horrível! Horrível! Mas agora, já está. Álcool nunca mais!» Havia, porém, o filho («Sei lá dele…Não pode com esta minha vida») e os pais («A minha mãe está em coma – odeio-a; mas ele, ele até se inteira de mim pelas minhas irmãs…»). A sua vida não contava (que contaria?).
Agora, a caminho do Egipto, Maria procurava lembrar-se: que era feito do rapaz mais bonito da sua terra!? Viera ele das trevas do pânico e vira-se rodeado de homens e rapazes: a absurda meninice coroada com a neve do riso e da chacota. Não tinha barba (ou depilava-se?) e, portas adentro, era como o vinho fino – libertador de homens que o aguardavam e em quem ele via a mão do amor primordial (essa água sempre pronta a escorrer e a destruir, essa caixa-de-esmolas, por fim, o sofrimento tiritante…).
E o sacerdote!, que se crucificava num perdão de prazer, um espectáculo sacro sem sentido, porém em parte redentor. Aparentemente, dali não viria mal nenhum ao mundo; «Quem sabe? Só o diabo o sabe…», repetia Maria.
Fora por tudo isto que Maria decidira deixar-se levar até ao Egipto. Quando a notícia da sua viagem se espalhou pelo lugar de Nazaré, para muitos o rumor transformou-se em certeza absoluta e só muito raros ousaram sustentar a dúvida. !Havia engravidado antes de coabitar! (Que pensaria o marido? Que loucuras invadiam agora sua mente muda?) Enquanto ia, Maria murmurava:
– «O medo, o medo é que forja o ideal! O medo é que forja o gigantesco ideal, espiritualizado e liso num lugar alto, sacro e solene… O ideal é a máscara do medo!, a sagração do medo diante de tudo o que é terrível, como por exemplo o Amor. Meu Deus – então, porque tive eu medo diante do primeiro Anjo…? A vida – a minha vida de mulher-judia-inteira, vida bem profana e nada sacra – ensinou-me a acreditar para lá do sagrado que o medo habita. Ensinou-me a acreditar na radicalidade dum amor que intensifique, dilate e adentre muito além de modos e modelos ideais.» – murmurava ela.
Ela preferira ler a vida com os olhos agudos das parábolas – jamais a partir do medo! E, enquanto viajava ao Egipto, compenetrada na sua decisão publicamente apontada, repetia em seu coração, onde guardava tudo: - «A mãe-solteira, o sacerdote-casto, o homossexual, a lésbica, o divorciado, o filho drogado, a viúva, a união-de-facto, a família tradicional e todos os súbitos “coxos” e “cegos” que este mundo coloca como paisagem de outra margem… Meu Deus, como o Amor ainda é a maior reserva humana que conheço!»
Ela não fugira para o Egipto: fora! Simplesmente, deixara-se levar nas asas dum sonho quase impossível! Ela não fugia do rumor. Ela não fugia da intriga. Ela não fugia do medo. Ela não fugia! Ela já não fugia! Com um gesto determinado, difícil e ao longo da vida maturado, apenas recusara a traça dos catálogos.
Por fim, disse ela – «O Amor, essa grande transumância do coração…» E do lado dum tronco de amendoeira [Jeremias 1:8], um frágil botão verde iniciou sua aventura de ramo.
(até hoje, os historiadores não conseguiram provar ou negar que Maria tenha estado com José e o Menino, no Egipto. Agora, porém, viúva, meia-idade e já sem filhos, sentada nos degraus de pedra da sua pequena casa de aldeia, na Galileia, o seu coração não pára de escrever infinitas voltas ao Mundo, na solicitude dum Amor eternamente liberto do medo.)