teologia para leigos

12 de dezembro de 2010

A IDEOLOGIA DOS «MERCADOS» [SLAVOJ ZIZEK]

Para sair da armadilha

Os movimentos de protesto que este ano foram desencadeados na Europa contra as políticas de austeridade – na Grécia e em França, mas também, em menor grau, na Irlanda, em Itália e em Espanha – deram lugar a duas ficções. A primeira, forjada pelo poder e pela comunicação social, assenta numa despolitização da crise: as medidas de restrição orçamental adoptadas pelos governos são apresentadas não como uma escolha política, mas como uma resposta técnica a imperativos financeiros. A moral é que, se queremos que a economia estabilize, temos de apertar o cinto. A outra história, a dos grevistas e manifestantes, postula que as medidas de austeridade constituem apenas uma ferramenta nas mãos do capital para desmantelar os últimos vestígios do Estado-providência. Num caso, o Fundo Monetário Internacional (FMI) aparece como um árbitro que pretende fazer respeitar a ordem e a disciplina; no outro, o Fundo desempenha mais uma vez o seu papel de suporte da finança globalizada.

Cada uma destas duas perspectivas contém alguns elementos de verdade, mas tanto uma como a outra estão fundamentalmente erradas. A estratégia de defesa dos dirigentes europeus não tem evidentemente em conta o facto de que o enorme défice dos orçamentos públicos resulta em grande parte das dezenas de milhares de milhões engolidos pelo salvamento dos bancos e que o crédito concedido a Atenas servirá em primeiro lugar para pagar a sua dívida aos bancos franceses e alemães. A ajuda europeia à Grécia não tem outra função se não a de socorrer o sector bancário privado. Do outro lado, o argumentário dos descontentes expõe de novo a indigência da esquerda contemporânea: não contém qualquer orientação programática, mas apenas uma recusa de princípio em ver desaparecer as conquistas sociais. A utopia do movimento social já não consiste em mudar o sistema, mas em convencer-se de que este pode acomodar-se à manutenção do Estado-providência. Esta posição defensiva suscita uma objecção difícil de refutar: se queremos manter-nos num sistema capitalista globalizado, não temos outra opção que não seja a de aceitar os sacrifícios impostos aos trabalhadores, aos estudantes e aos reformados.

Uma coisa é certa: após décadas de Estado-providência, durante as quais os cortes orçamentais continuavam a ser limitados e sempre acompanhados da promessa de que as coisas voltariam um dia ao normal, entramos hoje num estado de emergência económica permanente. Uma nova era que traz consigo a promessa de planos de austeridade cada vez mais severos, de cortes cada vez mais drásticos na saúde, nas pensões de reforma e na educação, bem como uma maior precarização do emprego. Encostada à parede, a esquerda deve assumir o desafio enorme de explicar que a crise económica é, antes de mais, uma crise política – que não tem nada de natural, que o sistema existente resulta de uma série de decisões intrinsecamente políticas -, continuando consciente de que este sistema, enquanto nos mantivermos no seu quadro, obedece a uma lógica pseudonatural cujas regras não é possível mudar sem provocar um desastre económico. (…)

É aqui que a análise marxista conserva toda a sua frescura, hoje talvez mais do que nunca. Para Marx, a questão da liberdade não se situa em primeiro lugar no interior da esfera política, pelo menos naquela à qual se referem as instituições internacionais quando julgam um país: as eleições são aí livres, os juízes independentes, os direitos humanos respeitados? A chave de uma verdadeira liberdade deve ser procurada sobretudo na rede «apolítica» das relações sociais, desde o trabalho até à família, onde não seria a reforma política a produzir a mudança necessária, mas antes viria ela de uma transformação das relações sociais no aparelho de produção.
Com efeito, jamais se pede aos eleitores para decidirem quem deve possuir o quê, ou que se pronunciem sobre as normas de gestão em vigor no local de trabalho. (…) No centro da noção de luta de classes prevalece a ideia de que a vida social «tranquila» manifesta a vitória (temporária) da classe dominante. Do ponto de vista dos oprimidos, a própria existência do Estado, enquanto aparelho da classe dominante, constitui um acto de violência.
O credo segundo o qual a violência não é legítima, mas por vezes necessária, parece ser muitíssimo insuficiente. Numa perspectiva radical e emancipadora, os termos do postulado deviam inverter-se: a violência dos oprimidos é sempre legítima – visto que o seu próprio estatuto resulta de uma violência – mas nunca necessária: a escolha de recorrer ou não à força contra o inimigo decorre, estritamente, de uma consideração estratégica.

No estado de emergência económica que vivemos salta aos olhos que estamos, não perante movimentos financeiros cegos, mas intervenções estratégicas maduramente ponderadas pelos poderes públicos e pelas instituições financeiras, que pretendem resolver a crise segundo os seus próprios critérios e para seu próprio benefício. Nestas condições, como não encarar uma contra-ofensiva? (…)

Nada justifica que o estado de emergência económica permanente leve a esquerda a abandonar o trabalho intelectual paciente, sem «utilidade prática» imediata. Contudo, está a desaparecer progressivamente a verdadeira função do pensamento. Não propor soluções para os problemas com que se defronta a «sociedade» - isto é, o Estado e o Capital -, mas reflectir na própria forma como estas questões se colocam. Isto é, questionar a forma como percepcionamos um dado problema.

No decurso do último período do capitalismo pós-1968, a própria economia – a lógica do mercado e da concorrência – impôs-se como a ideologia hegemónica. No domínio da educação, por exemplo, a escola representa cada vez menos um serviço público, independente do mercado, assumido pelo Estado e santuário de valores esclarecidos – liberdade, igualdade, fraternidade. Em virtude da fórmula litúrgica «maior eficácia a menos custos», ela deixou-se invadir por diversas formas de parcerias público-privado. (…)

Nos confins de uma tal consideração, a própria ideia de uma transformação radical da sociedade parece-se com um sonho impossível. Mas é justamente este «impossível» que deve fazer-nos parar e reflectir. (…)

Slavoj Zizek, filósofo, psicanalista, cinéfilo, investigador do Instituto de Sociologia na Universidade de Liubliana (Eslovénia). Autor de Living in the End Times (Londres, 2010). Em português: Elogio da Intolerância, Bem-Vindo ao Deserto do Real, As Metástases do Gozo e a Subjectividade Vindoura (todos na Relógio d’Água). Artigo retirado de Le Monde Diplomatique, edição em português, Novembro de 2010, p. 12. (análise  iniciada na New Left Review, nº 64, Julho-Agosto 2010)