«O GOVERNO DOS BANCOS»_1
103 «Cafés de trabalho» no quarto de Lincoln…
- a grande insónia!
Na Primavera de 1996, no fim de um primeiro mandato muito medíocre, o presidente Bill Clinton estava a preparar a campanha para ser reeleito. Precisava de dinheiro. Para o arranjar, teve a ideia de propor aos mais generosos doadores do seu partido uma noite na Casa Branca, por exemplo, no «quarto de Lincoln». Uma vez que ver-se associado ao sono do «grande emancipador» não estava ao alcance das bolsas mais pequenas, nem era necessariamente a fantasia dos maiores, foram leiloadas outras guloseimas. Uma delas foi «tomar um café» na Casa Branca com o presidente dos Estados Unidos. Os potenciais investidores do Partido Democrata encontraram-se, portanto, às fornadas com membros do executivo encarregados de regular a sua actividade. Lanny Davis, porta-voz do presidente Clinton, explicou ingenuamente que se tratava de «permitir que os membros das agências de regulação conhecessem melhor as questões da respectiva indústria.»[1] Um destes «cafés de trabalho» pode ter custado alguns biliões de dólares à economia mundial, pode ter favorecido o disparo da dívida dos Estados e provocado a perda de dezenas de milhões de empregos.
A 13 de Maio de 1996, portanto, alguns dos principais banqueiros dos Estados Unidos foram recebidos durante noventa minutos na Casa Branca pelos principais membros da administração. Ao lado do presidente Clinton, o ministro das Finanças, Robert Rubin, o seu adjunto encarregado das questões monetárias, John Wawke, e o responsável pela regulação dos bancos, Eugene Ludwig. Por um acaso certamente providencial, o tesoureiro do Partido Democrata, Marvin Rosen, também participou na reunião. Segundo o porta-voz de Luidwig, «os banqueiros falaram sobre a futura legislação, incluindo ideias que permitirão acabar com a barreira que separa os bancos de outras instituições financeiras.»
O New Deal, dura lição da bancarrota financeira de 1929, tinha proibido os ‘bancos de depósitos’ de arriscarem de forma imprevidente o dinheiro dos seus clientes, o que a seguir obrigava o Estado a salvar estas instituições por temer que a sua eventual falência provocasse a ruína dos seus numerosos depositantes. Esta disposição (Lei Glass-Steagall), assinada pelo presidente Franklin Roosevelt em 1933, e ainda em vigor em 1996, desagradava imenso aos banqueiros, desejosos de lucrar também com os milagres da «nova economia». O «café de trabalho» visava recordar esse desagrado ao chefe do executivo americano, no momento em que ele estava a tentar que os bancos lhe financiassem a reeleição.
Algumas semanas depois do encontro, vários despachos anunciaram que o Ministério das Finanças ia enviar ao Congresso uma panóplia legislativa «pondo em causa as regras bancárias estabelecidas seis décadas antes, o que permitiria que os bancos se lançassem em força nos seguros e na banca-de-negócios e de mercado.» Toda a gente sabe o que aconteceu a seguir. A abolição da Lei Glass-Steagall foi assinada em 1999 por um presidente Clinton reeleito três anos antes, em parte graças ao tesouro acumulado na guerra eleitoral[2]. A medida atiçou a orgia especulativa da década de 2000 (sofisticação cada vez maior dos produtos financeiros, do tipo dos créditos imobiliários subprime, etc.) e precipitou o colapso económico de Setembro de 2008.
Na verdade, o «café de trabalho» de 1996 (ocorreram 103 do mesmo género no mesmo período e no mesmo local) apenas veio confirmar o peso que já vinham tendo os interesses do sector financeiro. Tanto mais que foi um Congresso de maioria republicana que enterrou a Lei Glass-Steagall, em conformidade com a sua ideologia liberal e com os desejos dos seus «mecenas» - (os parlamentares republicanos eram também beneficiados com dólares pelos bancos). Quanto à administração Clinton, com ou sem «cafés de trabalho», não terá resistido durante muito tempo às preferências de Wall Street, até porque o seu ministro das Finanças, Robert Rubin, tinha sido dirigente do Goldman Sachs. Tal como, aliás, Henry Paulson, que chefiava o Tesouro Americano na altura do colpaso de Setembro de 2008. Depois de ter deixado trespassar o Bear Stearns e o Merryl Lynch, dois concorrentes do Goldman Sachs, Paulson salvou o American International Group (AIG), um segurador cuja falência teria atingido o maior credor da instituição, que era o Goldman Sachs.
Porque é que uma população que não é maioritariamente constituída por ricos aceita que os seus eleitos satisfaçam prioritariamente as exigências dos industriais, dos advogados de negócios ou dos banqueiros, a tal ponto que a política acaba por consolidar as relações de força económicas em vez de lhes opor a legitimidade democrática? Porque é que estes ricos, quando são eles próprios eleitos, se sentem autorizados a exibir a sua fortuna? E a clamar que o interesse geral impõe a satisfação dos interesses particulares das classes privilegiadas, as únicas dotadas do poder de fazer (investimentos) ou de impedir (deslocalizações), e que têm por isso de ser constantemente seduzidas («tranquilizar os mercados») ou conservadas (lógica do «escudo fiscal»)?
Estas questões fazem pensar no caso de Itália (ler o artigo de Francesca Lancini, neste jornal, Junho 2010). Neste país, um dos homens mais ricos do planeta não se juntou a um partido na esperança de o influenciar, mas criou o seu próprio partido, a ‘Forza Itália’, para defender os interesses dos seus negócios. A 23 de Novembro de 2009, o jornal La Repubblica publicou aliás a lista de 18 leis que favoreceram o império comercial de Sílvio Berlusconi, desde 1994, ou que lhe permitiram escapar a processos judiciários. Por seu lado, o ministro da Justiça da Costa Rica, Francisco Dall’ Anase, alerta já para uma etapa ulterior desta evolução, a que passará por certos países colocarem o Estado ao serviço, já não apenas dos bancos, mas de grupos criminosos. «Os cartéis da droga vão apoderar-se dos partidos políticos, financiar campanhas eleitorais e, a seguir, controlar o executivo.»[3] (…)
No mês seguinte a ter abandonado a Casa Branca, Bill Clinton ganhou mais dinheiro do que havia ganho durante os 53 anos de vida. O Goldman Sachs pagou-lhe 650 000 dólares por quatro discursos. Um outro, proferido em França, rendeu-lhe 250 000 dólares, desta vez, foi o Citigroup que pagou. No último ano de mandato de Clinton, o casal havia declarado 357 000 dólares de rendimentos; entre 2001 e 2007 totalizou 109 milhões de dólares. Doravante, a celebridade e os contactos adquiridos durante uma carreira política rendem, sobretudo, depois de essa carreira ter terminado. Os lugares de administrador no privado ou de consultor de bancos substituem com vantagem um mandato popular que acaba de chegar ao fim. Ora, como governar é prever…
SERGE HALIMI, Le Monde Diplomatique – edição em português, Junho 2010, p.9;
[1/2] Em breve, a segunda e última parte.
Lamentação do profeta Miqueias, 7
terminada a vindima:
nem um cacho para comer,
nem figos temporãos de que tanto gosto.
não há ninguém íntegro.
Todos espreitam a hora de se lançar sobre o outro,
cada um arma laços ao seu irmão.
Peritas são, no mal, suas mãos;
o príncipe exige,
o juiz julga sobre a mesa do suborno,
aquele que é grande manifesta abertamente sua cobiça
O melhor dentre eles é como um tojo.
Mas eu estou alerta
aguardando Quem me escuta.
«Agora começa o julgamento deste mundo…»
do Profeta ISAÍAS
O Senhor vê com indignação
que já não há justiça.
admira-se de que ninguém intervenha.
(Isaías 59:15-16)
[1] Esta citação, bem como as seguintes, são retiradas de «Guess Who’s Coming for Coffee?», The Washington Post, National Weekly Edition, 3 de Fevereiro de 1997.
[2] Ler Thomas Ferguson, « Le Trésor de guerre du président Clinton», Le Monde Diplomatique, Agosto de 1996.
[3] Citado pela London Review of Books, Londres, 25 de Fevereiro de 2010. (Nota desta edição: Todos sabemos também o que tem vindo a acontecer com a compra de Clubes de Futebol… por parte do narcotráfico).