teologia para leigos

13 de dezembro de 2010

1/2 CLUBE DE AUSTERIDADE

«CONCERTAÇÃO DAS PERIFERIAS, REESTRUTURAÇÃO DA DÍVIDA»

Depois do fim do romance europeu_1


A crise das dívidas soberanas periféricas na Europa é a segunda fase da crise que eclodiu nos Estados Unidos em 2008, fruto de décadas de hegemonia neoliberal. Esta segunda fase assinala, em definitivo, o fim do romance europeu, que as elites das periferias viveram nas últimas décadas, e o início de um ciclo vicioso de políticas de austeridade.
De facto, todas as más opções de política foram justificadas em nome de amanhãs europeus que cantavam: da convergência nominal dos anos noventa que minou a competitividade das exportações até à aprovação de um Tratado de Lisboa que confirma a impotência da União no combate à crise económica e ao desemprego. Um romance que nunca ousou escrutinar ou criticar a viragem neoliberal da construção europeia desde Maastricht, na origem de muitos dos actuais problemas socioeconómicos europeus e nacionais. Este ciclo vicioso de políticas de austeridade, por sua vez, é a expressão máxima do que Slavoj Zizek apodou de «emergência económica permanente[1] Esta apoia-se num conjunto de dispositivos e de instituições, algumas delas recém-criadas, como o Fundo Europeu de Estabilização Financeira, que torna utópica a ideia de manter um Estado Social e um acervo de direitos laborais numa paisagem socioeconómica marcada por uma intensificação da reestruturação das economias periféricas, transformadas em autênticos laboratórios europeus.

Depois da Grécia, a Irlanda vê-se agora obrigada a recorrer à «ajuda» europeia e do Fundo Monetário Internacional (FMI), esse eufemismo para uma nova ronda de políticas de austeridade, como contrapartida para empréstimos a taxas de juro só ligeiramente mais reduzidas do que aquelas que os «mercados» cobram agora às periferias. Isto para salvar o que resta do sistema financeiro irlandês, cujo colapso levou o défice público para os 32% este ano, e para garantir que as perdas dos credores, ou seja, dos bancos e investidores dos países centrais, os grandes detentores da dívida, sejam minimizadas.

Não nos esqueçamos que a Irlanda, até há bem pouco tempo apontada, pelos economistas do medo,[2] como um exemplo de coragem «austeritária» pela amplitude dos seus cortes orçamentais, que obviamente só agravaram os problemas financeiros e económicos do país. O mesmo vale para a Grécia, em particular depois de Maio de 2010, quando foi o primeiro estado a recorrer ao Fundo Europeu de Estabilização Financeira em troca de cortes orçamentais selvagens. Os resultados económicos do terceiro trimestre ilustram a divisão entre economias em recuperação, como a portuguesa, que até há pouco resistiam à «emergência económica permanente», e economias em retracção, aquelas que foram precisamente pioneiras nas políticas de austeridade, como a economia grega ou a irlandesa.
É claro que Portugal, sob pressão dos especuladores, que passam pelo nome de «mercados», das potências centrais e das elites do capitalismo medíocre, juntou-se agora em força ao clube da austeridade.

As taxas de juro da dívida pública são cada vez mais altas, sinalizando a convenção, a profecia que se auto-realiza, que se formou nos mercados financeiros acerca de economias com um trágico destino. O mais incrível é que, face aos claros riscos de contágio da crise, produto da amálgama que os mercados financeiros criam, estes países não conseguem articular-se minimamente numa tomada de posição comum que faça frente aos planos dos países centrais.

A Espanha diz que não é Portugal (o nível da dívida pública é mais baixo). Portugal diz que não é Irlanda (o nosso défice está a descer e os bancos estão de boa saúde). A Irlanda dizia até há pouco tempo que não era a Grécia (não precisava do recurso ao Fundo Europeu…).

Se é certo que cada economia nacional teve a sua própria trajectória, também sabemos que estes países partilharam, na última década, uma posição periférica dentro da mesma moeda, o euro, cujo comando político lhes escapa. Com um orçamento comum que não chega a 1% do produto interno bruto (PIB) europeu e sem um real governo económico, não existiram mecanismos compensadores dos desequilíbrios que se formam construindo no espaço económico europeu. De um lado, economias robustas, com um crescimento baseado nas exportações e numa continuada política de compressão salarial que lhes permitiu ganhos de competitividade acrescidos, como a Alemanha ou a Holanda. Do outro lado, economias mais atrasadas, abertas ao exterior, com taxas de inflação mais altas que tornaram os seus próprios esforços de compressão salarial e de liberalização do mercado de trabalho inglórios. Com indústrias e serviços pouco sofisticados, deixados à mercê da mão invisível dos mercados europeus e global, esses países sobreviveram com bolhas especulativas no sector imobiliário (Irlanda e Espanha), com persistentes défices públicos (Grécia) ou com estagnação (Portugal). No entanto, a falta de competitividade externa de todas estas economias traduziu-se em desequilíbrios crescentes das suas balanças de pagamento, só mascarados pelo fácil endividamento externo provisionado por uma economia global financeirizada. Este mesmo endividamento externo dos países da periferia resultou em grande medida da acumulação de dívida do sector privado, normalmente financiado pelos capitais dos países do Centro induzidos pela protecção concedida pela União Económica e Monetária (UEM); em paralelo com a crescente financeirização interna, o modelo de crescimento adoptado pelo sector bancário na última década rapidamente se focalizou nas famílias.


por: Eugénia Pires, João Rodrigues e Nuno Teles, economistas e investigadores universitários.

[1/2 de artigo editado pelo Le Monde Diplomatique, edição em português, DEZ. 2010, p. 3]
[dentro de 2 dias a segunda parte]


[1] Neste blog: «Para sair da armadilha».
[2] É provável que os autores deste artigo tenham em mente Medina Carreira e João Duque, com lugares cativos no programa de Mário Crespo, «Plano Inclinado», SIC, exemplo acabado dum absolutismo despótico (des)informativo a que chegou a informação económica em Portugal.