«CONCERTAÇÃO DAS PERIFERIAS, REESTRUTURAÇÃO DA DÍVIDA»
Depois do fim do romance europeu_2
Não obstante o carácter privado do endividamento, a fragilidade intrínseca do modelo de expansão escolhido pelo sector bancário e o facto de a dívida pública apenas ter invertido a sua trajectória descendente com a crise de 2008-2009, o crescimento da dívida pública foi usado como «argumento» pelos mercados financeiros no seu ataque a economias fragilizadas pelos seus desequilíbrios estruturais. Só assim se explica que países europeus com dívidas públicas comparáveis face ao seu PIB não sofram as mesmas agruras, como é o caso da própria Alemanha.
Face à sua convergência objectiva, os países europeus periféricos devem, pois, abandonar um discurso virado para os mercados, onde apontam o dedo uns aos outros na vã esperança de os acalmar, e trabalhar em propostas comuns correctoras dos seus desequilíbrios a curto, médio e longo prazo. Esta necessidade é ainda mais vincada quando o risco acrescido da dívida soberana periférica também se deve às intenções europeias, formuladas sob pressão do eixo franco-alemão, de rever o Tratado de Lisboa, para instituir um mecanismo – um fundo permanente de gestão de crises que substitua o Fundo Europeu de Estabilização quando este se extinguir em 2013. Um FMI na União em permanência, mas pior porque, claro, nem sequer existe a possibilidade de desvalorização cambial. Desta feita, trata-se de introduzir no ‘Tratado’ a possibilidade de os Estados em dificuldades perante credores demasiado gananciosos reestruturarem a dívida sob comando dos países centrais que defendem os interesses do seu capital financeiro, ou seja, a possibilidade de declararem que os fluxos de pagamento da dívida são revistos e os prazos de pagamento também. Isto, claro, ao mesmo tempo que o Banco Central Europeu (BCE) compra dívidas destes Estados aos bancos comerciais franceses e alemães, assumindo as potenciais perdas dos bancos privados mas sem valer directamente aos soberanos em apuros e, em última análise, penalizando o cidadão comum pelo deslumbramento do sector financeiro, o qual, em presença de taxas de juro historicamente baixas, [sofrendo de uma] incapacidade de avaliação do risco de crédito [por parte] dos devedores e [lançando mão de] engenharia financeira, não se conteve e almejou crescer indiscriminadamente.
No entanto, existe uma diferença entre uma reestruturação da dívida por iniciativa dos devedores, que já se deviam ter mexido em aliança, e por uma iniciativa dos credores. Os países centrais querem impor a segunda, clara. A primeira hipótese dá-nos conta de uma reestruturação da dívida (ou, no mínimo, da sua ameaça como forma de pressão europeia) que não só impusesse perdas significativas para os credores de forma a permitir uma real folga orçamental, mas que também incorporasse os diferentes interesses sociais aqui em causa. Esta opção apresenta-se como legítima em face dos desequilíbrios estruturais intrínsecos ao modelo de União Económica e Monetária (UEM) imposto pelos países do Centro que se recusam a dotar a União de mecanismos protectores dos interesses dos Estados soberanos, deixando-os reféns dos ataques especulativos dos mercados. [os países do Centro] Esquecem a sua missão de protecção dos interesses do cidadão comum, a qual justificaria a intervenção disciplinadora do BCE, adquirindo dívida soberana directamente no mercado ou nos leilões de dívida como um verdadeiro banco central. No âmbito de uma reestruturação por iniciativa dos devedores, o primeiro passo de uma auditoria à dívida é imperativo. Só através de um processo transparente, publicamente escrutinado, que identifique quem detém a nossa dívida e em que termos o faz, podemos discriminar quais os interesses financeiros afectados – distinguindo, por exemplo, entre os pequenos aforradores e o grande capital financeiro especulativo. Em seguida, uma tal opção implicará uma profunda discussão sobre as medidas orçamentais que a devem complementar.
No caso português, necessitamos de uma política fiscal equitativa, penalizadora dos interesses rentistas da burguesia nacional – bem claros nas múltiplas parcerias público-privadas, cujos efeitos redistributivos são evidentes – e de uma reabilitação duma política industrial modernizadora. São igualmente necessárias medidas de captação da poupança popular interna, nomeadamente através da emissão de dívida pública junto do retalho português, adequadamente remunerada a uma taxa de médio e longo prazo; a penalização do financiamento externo da banca, para que se quebre a sua actuação em cartel e esta volte à sua base de depósitos; e imposição de medidas de reforço do capital social do sector financeiro. Ao nível europeu, estes países [os países devedores situados nas periferias europeias] devem exigir a suspensão da liberalização dos mercados comerciais e de capitais, propondo uma regulação que lhes permita a autonomia necessária à mudança estrutural das suas economias.
De qualquer forma, a reestruturação acontecerá, no actual contexto europeu, mais tarde ou mais cedo, gerando imediatamente um aumento das taxas de juro da dívida pública dos países periféricos, sobretudo dos mais pequenos, onde as possibilidades de especular e lucrar com a volatilidade são maiores. A intenção do eixo franco-alemão era esta? Parece que sim, visto que está apostado numa estratégia de dominação disciplinadora, que não cuida do facto de o problema das finanças públicas ser geral e ser consequência sobretudo da crise económica que foi, em grande medida, atenuada pelo efeito dos chamados ‘estabilizadores automáticos’, ou seja, da quebra das receitas e aumento das despesas. Esquece-se que é impossível um esforço simultâneo de poupança pública e privada sem uma contracção da economia, particularmente num contexto de défice externo estrutural, reflexo de uma integração dependente. A redução do défice público sem crescimento económico só se consegue com um aumento simétrico dos «défices» privados ou com um extraordinário aumento da procura externa - mas estas alternativas são muito difíceis no actual contexto.
Num cenário de reestruturação da dívida liderada pelos credores, acompanhada por uma austeridade sem fim e por reformas do mercado de trabalho penalizadoras dos trabalhadores, a situação tornar-se-à insustentável. O contexto internacional de crescimento medíocre não permitirá qualquer saída pelas exportações. Assim, a implosão da zona euro, como ela hoje existe, é plausível. Mais uma vez, a concertação entre economias periféricas é essencial neste quadro. Uma saída voluntária do euro, escape a um desastre anunciado, poderia dotar estes países de uma nova posição nos mercados internacionais através da desvalorização cambial. Se feita em conjunto, entre países com estruturas produtivas similares, esta saída não se traduziria necessariamente em estratégias puramente individuais e desorganizadas de sobrevivência. Pelo contrário, podia ser o princípio de uma refundação da integração europeia mais solidária e equitativa. A alternativa é, agora, clara: ou o «Sul» se rebela ou o Sul é esmagado.
por: Eugénia Pires, João Rodrigues e Nuno Teles, economistas e investigadores universitários.
[2/2 de artigo do Le Monde Diplomatique, edição em português, Dez 2010, p. 3]