«O corpo é pecado»
Juan José Tamayo-Acosta
Acabo por não entender o burburinho informativo que as declarações do papa provocou, declarações sobre o uso do preservativo produzidas no livro-entrevista, A Luz do Mundo, de Bento XVI, e do seu compatriota e jornalista Robert Seewald, que acaba de surgir na editorial Herder em castelhano e em catalão. A entrevista é um género literário muito do gosto do papa, que já havia concedido outras entrevistas ao mesmo jornalista: uma em 1997, sob o título O sal da terra, e outra, em 2000, convertida igualmente em livro sob o título Deus e o mundo.
Alguns anos mais tarde, em 1985, saiu a lume a entrevista com o escritor e jornalista Vittorio Messori, sob o título Relatório sobre a fé, onde propõe um programa de restauração da Igreja católica, o qual se converteria no guião oficial durante o pontificado de João Paulo II, fazendo tábua rasa das reformas do concílio Vaticano II e retrocedendo à era pré-conciliar, numa perspectiva de regresso ao passado. Esse livro foi o marco do regresso da Igreja neo-conservadora, o qual segue inalterável vinte e cinco anos depois, agora com claros sinais de integrismo.
Não há dúvida que a relevância que se concedeu às declarações papais sobre o preservativo de modo algum corresponde à irrelevância objectiva das mesmas.
Tentarei demonstrá-lo nestas breves reflexões.
1.Creio que, dez anos depois do início do 3º milénio, é um anacronismo em toda a linha continuar-se a discutir, na Igreja Católica, se se pode ou não se pode, se se deve ou não se deve utilizar o preservativo nas relações sexuais, e é uma prova de que o papa ficou parado no tempo da história e caminha até para trás. Face à maturidade da sociedade, é assunto arrumado e problema que deixou de o ser.
Felizmente, os cidadãos − e, portanto, os católicos e as católicas − já não se regem pelas estritas e repressivas normas religiosas: neste caso, pela moral eclesiástica em matéria de sexualidade. Seguem os critérios da ética civil e laica que constrói uma consciência moral assente, em primeiro lugar, na responsabilidade.
Voltar a colocar, agora, a licitude ou ilicitude dos preservativos demonstra a inubicuação histórica da hierarquia eclesiástica e dos movimentos neoconservadores que seguem docilmente suas consignas. Continuar às voltas com uma casuística caduca e despreocupar-se das graves consequências (muitas delas mortíferas) que gera a proibição geral do uso do preservativo parece-me um acto de cegueira imperdoável e um exemplo de insensatez culpável.
2.Não vejo, nas declarações papais, novidade alguma. Ratifica, ponto-por-ponto, a doutrina tradicional e o próprio pensamento de Bento XVI, contra o uso do preservativo. Seguem na linha das irresponsáveis declarações que fez em África quando disse que o preservativo não resolvia o contágio da SIDA e que ainda criava outros problemas. O preservativo, diz agora o papa, não é uma forma adequada e verdadeira de vencer a propagação da SIDA, o que só volta a revelar uma grande insensibilidade diante de situações que põem em risco a vida.
Só em casos pontuais é que o papa reconhece o uso do preservativo, num parágrafo aliás confuso (onde se refere à prostituição) e que eu não consigo entender.
Mas, a verdade é que na maioria das leis e preceitos morais há sempre excepções. A própria proibição de matar também tem excepções: há toda uma doutrina sobre a guerra justa, a qual justifica a morte dos adversários e também a doutrina sobre a legítima defesa. Pois bem, aceitando as possíveis excepções, a doutrina da Igreja católica mantém-se inalterável e ratifica a proibição que, para escândalo de gregos e troianos, estabelecera Paulo VI na polémica encíclica Humanae vitae, a qual fora criticada por teólogos tais como Bernard Häring, Karl Rahner, Hans Küng e outros.
Essa proibição fora reiterada com imenso zelo por João Paulo II, tendo como braço direito Bento XVI quando estava à frente da Congregação da Doutrina da Fé – J Ratzinger fê-la sua aquando das declarações ao mesmo jornalista, Peter Seewald, em 1997, no livro-entrevista O sal da terra, editado em castelhano pelas ‘Edições Palavra’, da Opus Dei, onde alertava para a desmoralização da sociedade e onde considerava o uso do preservativo como parte dessa desmoralização.
3.São, as declarações do papa, um tímido passo em frente e o começo duma abertura, como referiram alguns média de comunicação, quer os confessionais, quer os laicos, quase unanimemente? Não creio. Vão mais na linha de a manter e não de a emendar, e demonstram uma vez mais que a Igreja católica tem, de há séculos, uma «cadeira» que não consegue «fazer», nem quer «deixar passar»: a sexualidade. E também tem uma fixação: o corpo da mulher. É o fiel reflexo da sua concepção dualista do ser humano e do seu pessimismo antropológico, que vem de longe, mas que não tem origem na pregação de Jesus, nem na prática primitiva, mas sim na deriva repressiva da sexualidade que sofreu a moral cristã com Agostinho de Hipona, um dos seus principais ideólogos.
Para se sair desta situação patológica multissecular, talvez ajudasse, a Igreja, a leitura e a prática do sábio discurso do corpo no poema de Eduardo Galeano: «Diz o mercado: o corpo é um negócio. Diz a Igreja: o corpo é pecado. Diz o corpo: eu sou uma festa».
O papa disse que há que humanizar a sexualidade. De acordo, e até acredito que o uso do preservativo é uma forma de humanizar a sexualidade. Totalmente de acordo.
Porém, ao contrário de Bento XVI, eu creio que o uso do preservativo é um meio para tal humanização e não as tais excepções às quais se refere o papa, só vindo, elas, confirmar a regra geral da repressão sexual.
Se a Igreja seguisse o lema de Eduardo Galeano deixaria de falar tanto e tão negativamente da sexualidade, renunciaria a condenar os «pecados sexuais» e não poria limite algum ao uso do preservativo. As declarações do papa não seguem, certamente, estas recomendações. Bem pelo contrário, para desacreditar o exercício da sexualidade, fala de «dependência» sexual e compara-a com uma droga. Isso já me parece patológico.
Juan José Tamayo, secretário geral da Associação João XXIII e director da Cátedra de Teologia e Ciências das Religiões na Universidade Carlos III, de Madrid.
Traduzido de: