teologia para leigos

22 de setembro de 2012

REVOLUÇÃO SOCIAL E IGREJA [PIKAZA]

«Vivemos um tempo de contrastes, como sempre, aliás. Estende-se o sistema, mas acentuam-se os egoísmos e as desigualdades. Promete-se liberdade, mas a maioria não tem acesso a ela. Melhoram-se as instituições eclesiais, mas muitos abandonam a fé e a práxis da confissão cristã.»

É neste contexto de sistema assanhado, férreo e de crise que X. Pikaza quer escrever sobre a liberdade cristã. Algumas destas ideias iniciais (do seu tratado de quase quinhentas páginas) podem ser uma Introdução ao tema «LEITURA ESTRUTURAL DA REALIDADE SOCIAL» e também fornecer ferramentas úteis para nos situarmos, como cidadãos e/ou cristãos, diante da situação que vivemos. Como reagir face a eventuais convulsões sociais: rejeitar e sugerir a conciliação ordeira, segundo uma neutralidade paradisíaca? Como se relaciona a paz dada por Cristo com a necessidade da convulsão social? A Igreja institucional, como se relaciona ela com a instabilidade (política)  e a revolta interna (carismática)? Como gerir as tensões no seio da comunidade crente? Que testemunho, socialmente credível, deve dar a Igreja católica diante duma sociedade que até é capaz de pôr em causa as suas próprias instituições tidas, por ela, como democráticas? Que peso tem, na leitura que a Igreja faz, a DIMENSÃO SOCIAL e ESTRUTURAL das realidades? Como lida, a Igreja católica, com a dissensão fracturante de grupos: apagando-a do mapa da memória, estigmatizando-os por «não amarem suficientemente a igreja», por não serem espelho da humildade e da obediência do Cristo? É a Igreja católica, também, capaz de se auto-analisar como parte integrante do 'sistema', como estrutura social onde o poder também se disputa e se gere? Pode a Igreja pretender furtar-se à 'tensão da Fé' no crucificado e 'viver à parte' numa sociedade em tudo 'alternativa' à sociedade? Que relação entre Fé (teo-logia) e prática política (ideo-logia)? Pode a Igreja Oficial continuar a falar como se a Sociologia não existisse e as tensões fracturantes não fossem uma inevitabilidade social e comunitária [Marcos 8:33; Act 15:7.39; cf. Act 2:44 com Act 5:1-11]?



CARISMA E SOCIEDADE:
- divisão das instituições



René Girard supõe que as instituições sociais nascem da inveja mimética e da luta de classes de todos contra todos, a qual atinge o seu cume e a sua resolução com a imposição legal (sacrificial) dos vencedores; nos começos da humanidade não havia carisma criador, apenas engano e fúria destruidora que, paradoxalmente, desembocou numa ordem de opressão social. Ao invés, eu disse que a relação inter-humana não é só enfrentamento, mas mediação dialogal.

No princípio, (no lugar da mimésis) eu coloquei a autoridade engendradora dos pais. Neste contexto, podemos lembrar o modelo de Max Weber, que situa a origem do desabrochar do humano no carisma criador, o qual, depois, arrefece e se torna rotina burocrática. Convergindo com esta tese, Cornelius Castoriadis rompe com esta perspectiva e vincula o aspecto instituinte e instituído da sociedade, interpretando o primeiro como fervor ou magma criativo semelhante às divindades das religiões. As instituições correm o risco de se tornar rotina (Weber) ou expressão de algo morto (Castoriadis). No entanto, são também sinal de um carisma, que surge ao nível pessoal e/ou social (cf. 1Cor 12-14)[1]:

Os indivíduos carismáticos criam (imaginam, instituem) linhas de humanização valiosas: não se impõem a partir da lei, nem triunfam a partir de raciocínios dedutivos ou votações, mas simplesmente a partir da própria força criadora. Antes de mais, eles são força criadora. São a autoridade primeira: não defendem o que existe para melhor o organizar, mas introduzem modelos novos de comunicação. Nem todos actuam no mesmo plano (religioso, político ou artístico), nem todos são construtivos: podem, inclusivamente, ser prejudiciais. Uns promovem a transformação política e social através da guerra (Alexandre Magno e César) ou da revolução (Lenine, Mao Ze Dong). Outros, a transformação religiosa iniciando movimentos «espirituais», relacionados com a política (Maomé; Moisés?), com a superação do desejo (Buda) ou com a renovação messiânica do mundo (Cristo). Actuam, assim, como pais-mães da vida social, portadores de um poder religioso.

Os movimentos carismáticos, vinculados também a indivíduos, expressam-se e expandem-se em grupos (nação, classe social, igreja ou seita). Parece que todas as sociedades tendem para a estabilização suscitando estruturas que respondam às suas necessidades e à expressão dos seus ideais. Contudo, a páginas tantas, tornam-se insuficientes: surgem desajustamentos, nasce ou aumenta a vontade de mudança como se existissem forças que fazem com que a sociedade se mexa. Aquilo que até ali parecia sólido torna-se «magma», energia em ebulição, estado nascente dirigido por forças que rebentam com a antiga segurança e dão origem a um novo nascimento. A própria sociedade volta a gerar-se através de processos grupais, que, ao nível do humano, reproduzem mutações semelhantes àquilo que acontece à evolução das espécies. Neste ponto, pode falar-se de carisma partilhado, criatividade comunitária, imaginação revolucionária ou transformação social do ser humano[2].

O humano não muda ou avança apenas por evolução biológica, mas através da transformação social. Diante da razão ordenadora, que estabiliza e organiza o já existente, surge a razão imaginativa (social, religiosa?), que pró-move o ainda não existente, numa linha de experiência de tipo carismático que voltaremos a encontrar em Jesus. A criatividade supra-racional dos fundadores (ou dos seus movimentos) expressa-se através de instituições (igrejas, comunidades), ainda que elas acabem por se tornar administradoras do já criado. Desta forma carisma e instituição unem-se. Carisma, em si mesmo, não existe (sem instituição), nem existe movimento criador que não se venha a expressar sob a forma de estruturas ou «códigos» de vida (como, mas noutro plano, a própria biologia pressupõe). O processo vital da evolução criadora (H. Bergeson) «acelera-se» em certos momentos, suscitando mutações capazes de se estabilizar e de se expandir sob a forma de códigos genéticos. O processo social exprime-se através de transformações culturais (de tipo religioso ou convivial), que se codificam em instituições capazes de uma certa estabilidade.

Nos seus começos, os movimentos carismáticos tendem a ser maleáveis: quebram a estrutura anterior para suscitar processos que, por sua vez, começam a arrefecer até se cristalizarem em novas estruturas. Quando chegam ao fim, naquele ponto em que esfriam de todo, convertem-se numa rotina de funcionários ou administradores, e o caminho de criação morre, a não ser que surja um novo movimento. É assim que passamos dum estado instituinte a um estado instituído, de criadores a funcionários, que estabilizam e administram o criado[3]. É normal que haja tensões já que os burocratas convertem a inspiração carismática em lei que, depois, impõem pela força. Dessa forma destroem o movimento inicial ou diluem-no em normas de pressão social mais ou menos rebuscadas. É óbvio que os modelos de cariz carismático e as instituições que suscitam estão obrigadas a mudar, mas a tendência para a burocratização é constante, a não ser que o próprio grupo social se mantenha em constante criatividade. Podemos, então, de seguida, resumir o já exposto:

1.          Instituição violenta. Risco para o sistema. Weber afirmava que o sistema global do nosso tempo impõe o seu cofre de ferro sobre os seus seres humanos. Girard acrescenta que todas as instituições sociais nascem da violência e existem para a sacralizar, sustentando e legalizando o domínio de uns sobre os outros[4]. Ao contrário, procurarei mostrar que o sistema pode ser neutral, resolvendo de modo técnico muitos dos problemas economicó-administrativos, mas abrindo espaços de liberdade e de comunhão pessoal para os seres humanos.


2.          Instituições de gratuitidade: amor materno e comunhão pessoal. No princípio do processo humano colocamos o amor do pai-mãe e no fim colocamos a comunicação universal gratuita. Penso que este modelo pode realizar-se não apenas em grupos pequenos, que promovam a liberdade e a felicidade dos seus membros (o matrimónio, as famílias), mas também em instituições globais (=a católica) como a igreja cristã.


As instituições parcelares (religiões, exércitos, estados) perderam muita da importância e hoje tendemos a ser dominados por um sistema global de tipo economico-administrativo. Ora bem, a igreja cristã pode e deve elevar-se frente a esse sistema como instituição de gratuitidade universal. O sistema hoje, no plano das relações economico-administrativas, é necessário. A igreja oferece a sua experiência de liberdade num plano de comunhão pessoal de tipo carismático.

Xabier Pikaza
Sistema, Libertad, Iglesia
Editorial Trotta, 2001, pp. 23-25





[1] O contributo de M. Weber (Economia) permanece válido: a sua análise da dominação tradicional, racional e carismática mantém-se luminosa. Na mesma linha (mais social que pessoal) situa-se C. Castoriadis (A instituição) e F. Alberoni (Movimento). Ao nível do carisma e princípio instituinte é que situei a liberdade e/ou a autoridade, que não acho que seja inveja reactiva, mas que eu encaro como capacidade criadora. Seria interessante comparar, a partir deste perspectiva, as posturas de M. Weber, C. Castoriadis e R. Girard, que vão estar presentes em tudo o que escreverei de seguida. O meu conhecimento de Castoriadis deve-se, especialmente, a uma longa relação de amizade e colaboração intelectual com M. Rodríguez Losada, que prepara uma investigação definitiva sobre o assunto, numa linha de análise institucional, a partir dum ponto de vista psicanalítico e social. Cf. M. Rodríguez Losada, O imaginário radical em Castoriadis, PUC, Rio de Janeiro, 1996; Íd, «La emergencia de lo imaginario en la actual crisis de los paradigmas»: Estudios 196 (1997), 11-132.

[2] Seria interessante reler, a partir de Castoriadis, as teses de P. Berger e Th. Luckmann sobre a construção religiosa da sociedade.

[3] Os funcionários administram e estabilizam o criado pelos carismáticos, como se fossem gestores de uma sociedade perante a qual sentem que devem responder. Cf. F. Alberoni, Génese, Editora Bertrand, Lisboa, ISBN 972-25-0593-9. Sobre os fundadores das religiões, cf. J. Martín Velasco, «Jesús de Nazaret, fundador del cristianismo, y los fundadores de otras religiones», em O. González de Cardedal (ed.), Salvador del Mundo, Sec. Trinitario, Salamanca, 1997, 215-250.

[4] As religiões impõem a sua «lei» expulsando e sacralizando as vítimas (=bodes expiatórios). O marxismo pensou que os estados burgueses oprimiam os proletários e respondeu a isso organizando a sua própria luta de classes.