«Vivemos um tempo de contrastes, como sempre, aliás. Estende-se
o sistema, mas acentuam-se os
egoísmos e as desigualdades. Promete-se liberdade, mas a maioria não tem acesso
a ela. Melhoram-se as instituições eclesiais, mas muitos abandonam a fé e a práxis
da confissão cristã.»
É
neste contexto de sistema assanhado, férreo e de
crise que X. Pikaza quer escrever sobre a liberdade cristã. Algumas destas
ideias iniciais (do seu tratado de quase quinhentas páginas) podem ser uma Introdução ao tema «LEITURA ESTRUTURAL DA REALIDADE SOCIAL» e também fornecer ferramentas úteis
para nos situarmos, como cidadãos e/ou cristãos, diante da situação que
vivemos. Como reagir face a eventuais convulsões sociais: rejeitar e sugerir a conciliação ordeira, segundo uma neutralidade paradisíaca? Como se relaciona a paz dada por Cristo com a necessidade da convulsão social? A Igreja institucional, como se relaciona ela com a instabilidade (política) e a revolta interna (carismática)? Como gerir as tensões no seio da comunidade crente? Que testemunho, socialmente credível, deve dar a Igreja católica diante duma sociedade que até é capaz de pôr em causa as suas próprias instituições tidas, por ela, como democráticas? Que peso tem, na leitura que a Igreja faz, a DIMENSÃO SOCIAL e ESTRUTURAL das realidades? Como lida, a Igreja católica, com a dissensão fracturante de grupos: apagando-a do mapa da memória, estigmatizando-os por «não amarem suficientemente a igreja», por não serem espelho da humildade e da obediência do Cristo? É a Igreja católica, também, capaz de se auto-analisar como parte integrante do 'sistema', como estrutura social onde o poder também se disputa e se gere? Pode a Igreja pretender furtar-se à 'tensão da Fé' no crucificado e 'viver à parte' numa sociedade em tudo 'alternativa' à sociedade? Que relação entre Fé (teo-logia) e prática política (ideo-logia)? Pode a Igreja Oficial continuar a falar como se a Sociologia não existisse e as tensões fracturantes não fossem uma inevitabilidade social e comunitária [Marcos 8:33; Act 15:7.39; cf. Act 2:44 com Act 5:1-11]?
CARISMA E SOCIEDADE:
- divisão das instituições
René Girard supõe que as
instituições sociais nascem da inveja mimética e da luta de classes de todos
contra todos, a qual atinge o seu cume e a sua resolução com a imposição legal
(sacrificial) dos vencedores; nos começos da humanidade não havia carisma criador,
apenas engano e fúria destruidora que, paradoxalmente, desembocou numa ordem de
opressão social. Ao invés, eu disse que a relação inter-humana não é só enfrentamento, mas
mediação dialogal.
No princípio, (no
lugar da mimésis) eu coloquei a autoridade engendradora dos pais. Neste
contexto, podemos lembrar o modelo de Max Weber, que situa a origem do desabrochar
do humano no carisma
criador, o qual, depois, arrefece e se torna rotina burocrática. Convergindo com
esta tese, Cornelius Castoriadis rompe com esta perspectiva e vincula o aspecto instituinte e instituído
da sociedade, interpretando o primeiro como fervor ou magma criativo semelhante
às divindades das religiões. As instituições correm o risco de se tornar rotina
(Weber) ou expressão de algo morto (Castoriadis). No entanto, são também sinal
de um carisma, que surge ao nível pessoal e/ou social (cf. 1Cor 12-14)[1]:
− Os indivíduos
carismáticos criam (imaginam, instituem) linhas de humanização
valiosas: não se impõem a partir da lei, nem triunfam a partir de raciocínios
dedutivos ou votações, mas simplesmente a partir da própria força criadora.
Antes de mais, eles
são força criadora. São a autoridade primeira: não defendem o que
existe para melhor o organizar, mas introduzem modelos novos de comunicação.
Nem todos actuam no mesmo plano (religioso, político ou artístico), nem todos são construtivos:
podem, inclusivamente, ser prejudiciais.
Uns promovem a
transformação política e social através da guerra (Alexandre Magno e
César) ou da revolução (Lenine, Mao Ze Dong). Outros, a transformação religiosa
iniciando movimentos «espirituais», relacionados com a política (Maomé;
Moisés?), com a superação do desejo (Buda) ou com a renovação messiânica do
mundo (Cristo). Actuam, assim, como pais-mães da vida social, portadores de um
poder religioso.
− Os movimentos
carismáticos, vinculados também a indivíduos, expressam-se e
expandem-se em grupos (nação, classe social, igreja ou seita). Parece que todas
as sociedades tendem para a estabilização suscitando estruturas que respondam
às suas necessidades e à expressão dos seus ideais. Contudo, a páginas tantas, tornam-se
insuficientes: surgem desajustamentos, nasce ou aumenta a vontade de mudança
como se existissem forças que fazem com que a sociedade se mexa. Aquilo que até
ali parecia sólido torna-se «magma», energia em ebulição, estado nascente
dirigido por forças que rebentam com a antiga segurança e dão origem a um novo
nascimento. A própria sociedade volta a gerar-se
através de processos grupais, que,
ao nível do humano, reproduzem mutações semelhantes àquilo que acontece à
evolução das espécies. Neste ponto, pode falar-se de carisma partilhado, criatividade
comunitária, imaginação
revolucionária ou transformação social do ser humano[2].
O humano não muda
ou avança apenas por evolução biológica, mas através da transformação
social. Diante da razão
ordenadora, que estabiliza e organiza o já existente, surge a razão imaginativa
(social, religiosa?), que pró-move o ainda não existente, numa linha de
experiência de tipo carismático que voltaremos a encontrar em Jesus. A
criatividade supra-racional dos fundadores (ou dos seus movimentos) expressa-se
através de instituições (igrejas, comunidades), ainda que elas acabem por se tornar administradoras
do já criado. Desta forma carisma e
instituição unem-se. Carisma, em si mesmo, não existe (sem
instituição), nem existe movimento criador que não se venha a expressar sob a
forma de estruturas ou «códigos» de vida (como, mas noutro plano, a própria biologia
pressupõe). O processo vital da evolução criadora (H. Bergeson) «acelera-se» em
certos momentos, suscitando mutações capazes de se estabilizar e de se expandir
sob a forma de códigos genéticos. O processo social exprime-se através de
transformações culturais (de tipo religioso ou convivial), que se codificam em
instituições capazes de uma certa estabilidade.
Nos seus começos,
os movimentos carismáticos tendem a ser maleáveis: quebram a estrutura anterior
para suscitar processos que, por sua vez, começam a arrefecer até se cristalizarem
em novas estruturas. Quando chegam ao fim, naquele ponto em que esfriam de
todo, convertem-se numa rotina de funcionários ou administradores, e o caminho
de criação morre, a não ser que surja um novo movimento. É assim que passamos
dum estado
instituinte a um estado instituído, de criadores a funcionários,
que estabilizam e administram o criado[3].
É normal que haja tensões já que os burocratas convertem a inspiração
carismática em lei que, depois, impõem pela força. Dessa forma destroem o movimento inicial
ou diluem-no em normas de pressão social mais ou menos rebuscadas. É óbvio que
os modelos de cariz carismático e as instituições que suscitam estão obrigadas
a mudar, mas a tendência para a burocratização é constante, a não ser que o
próprio grupo social se mantenha em constante criatividade. Podemos, então, de
seguida, resumir o já exposto:
1.
Instituição
violenta. Risco para o sistema. Weber afirmava que o sistema global do
nosso tempo impõe o seu cofre de ferro sobre os seus seres humanos. Girard
acrescenta que todas as instituições sociais nascem da violência e existem para
a sacralizar, sustentando e legalizando o domínio de uns sobre os outros[4].
Ao contrário, procurarei mostrar que o sistema pode ser neutral, resolvendo de modo
técnico muitos dos problemas economicó-administrativos, mas abrindo espaços de
liberdade e de comunhão pessoal para os seres humanos.
2.
Instituições
de gratuitidade: amor materno e comunhão pessoal. No princípio do
processo humano colocamos o amor do pai-mãe e no fim colocamos a comunicação
universal gratuita. Penso que este modelo pode realizar-se não apenas em grupos
pequenos, que promovam a liberdade e a felicidade dos seus membros (o
matrimónio, as famílias), mas também em instituições globais (=a católica) como
a igreja cristã.
As instituições
parcelares (religiões, exércitos, estados) perderam muita da importância e hoje
tendemos a ser dominados por um sistema global de tipo
economico-administrativo. Ora bem, a igreja cristã pode e deve elevar-se frente
a esse sistema como instituição de gratuitidade universal. O sistema hoje, no
plano das relações economico-administrativas, é necessário. A igreja oferece a
sua experiência de liberdade num plano de comunhão pessoal
de tipo carismático.
Xabier Pikaza
Sistema, Libertad,
Iglesia
Editorial
Trotta, 2001, pp. 23-25
[1] O
contributo de M. Weber (Economia)
permanece válido: a sua análise da dominação tradicional,
racional e carismática mantém-se luminosa. Na mesma linha (mais
social que pessoal) situa-se C. Castoriadis (A instituição) e F. Alberoni (Movimento).
Ao nível do carisma e princípio instituinte é que situei a liberdade e/ou a
autoridade, que não acho que seja inveja reactiva, mas que eu encaro como
capacidade criadora. Seria interessante comparar, a partir deste perspectiva, as
posturas de M. Weber, C. Castoriadis e R. Girard, que vão estar presentes em
tudo o que escreverei de seguida. O meu conhecimento de Castoriadis deve-se,
especialmente, a uma longa relação de amizade e colaboração intelectual com M. Rodríguez
Losada, que prepara uma investigação definitiva sobre o assunto,
numa linha de análise institucional, a partir dum ponto de vista psicanalítico
e social. Cf. M. Rodríguez Losada, O imaginário
radical em Castoriadis, PUC, Rio de Janeiro, 1996; Íd, «La emergencia de lo imaginario en la actual
crisis de los paradigmas»: Estudios 196 (1997), 11-132.
[2] Seria
interessante reler, a partir de Castoriadis, as teses de P. Berger e Th. Luckmann sobre a construção
religiosa da sociedade.
[3] Os
funcionários administram e estabilizam o criado pelos carismáticos, como se
fossem gestores de uma sociedade perante a qual sentem que devem responder. Cf.
F. Alberoni, Génese,
Editora Bertrand, Lisboa, ISBN 972-25-0593-9. Sobre os fundadores das
religiões, cf. J. Martín Velasco, «Jesús de Nazaret, fundador del cristianismo, y los
fundadores de otras religiones», em O. González de Cardedal (ed.), Salvador del
Mundo, Sec. Trinitario, Salamanca, 1997, 215-250.
[4] As
religiões impõem a sua «lei» expulsando e sacralizando as vítimas (=bodes
expiatórios). O marxismo pensou que os estados burgueses oprimiam os
proletários e respondeu a isso organizando a sua própria luta de classes.