teologia para leigos

10 de setembro de 2012

CARDEAL MARTINI

Um cardeal contra a injustiça



Foi sobre Carlo Maria Martini, o cardeal italiano que morreu no último dia de Agosto, que se falou no segundo texto destes dias da semana”, aqui publicado há mais de dez anos.

O pretexto foi um diálogo epistolar entre ele e o escritor e filósofo Umberto Eco, mantido em 1995 e 1996 nas páginas da revista italiana Liberal, posteriormente coligido em livro, também editado em Portugal (Em que crê quem não crê? Um diálogo sobre ética no final do milénio. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 2000).

Membro da Companhia de Jesus e arcebispo de Milão, Carlo Maria Martini era, como então se referia, um dos nomes que os media insistiam em indicar como um dos mais prováveis sucessores de João Paulo II. Mas o cardeal preferiu não o ser, se assim se pode dizer, razão por que, no conclave que elegeria Joseph Ratzinger, resolveu apresentar-se de bengala. Assim dissuadiria eventuais votantes, podendo, como com humor dizia, ser Martini rosso em vez de Martini bianco.

Na homilia da celebração das exéquias de Carlo Maria Martini, que teve lugar na catedral de Milão na segunda-feira, o cardeal Angelo Scola citou o poeta Rainer Maria Rilke, o filósofo Theodor W. Adorno e uma passagem do Salmo 119 [118] escolhida por Carlo Maria Martini para ser colocada sobre o seu túmulo: “Lâmpada para os meus passos é a tua palavra, luz para o meu caminho”.

A frase, segundo Angelo Scola, é a chave para interpretar a existência e o ministério do cardeal Martini, mas há, no mesmo Salmo, não poucas passagens que bem poderão cumprir o mesmo objectivo:

“Abre os meus olhos, para eu contemplar as maravilhas da tua vontade”; “a minha alma consome-se, desejando as tuas normas”; “com os teus preceitos sou capaz de discernir e detestar qualquer caminho mau”; “tens como escória todos os injustos da Terra, por isso eu amo os teus testemunhos”.

“A justiça é, para a Bíblia, mais que direito e misericórdia: é o atributo fundamental de Deus”, disse Carlo Maria Martini em Colóquios nocturnos em Jerusalém. Sobre o risco de acreditar (Coimbra: Gráfica de Coimbra, s/d), obra que resulta de uma série de conversas com o também jesuíta Georg Sporschill.

“Justiça é comprometer-se com os que não têm protecção, a fim de lhes proteger a vida”, considera o cardeal, que, num outro momento, refere que “o pecado do mundo – como João Baptista designa as injustiças – assume um rosto amável. Mas é uma amabilidade enganadora.

O perigo do pecado torna-se baço. Temos de descobrir como vivem aqueles que entre nós pedem asilo político, quanto tempo passam os pais com os seus filhos, ver como é pouca a esperança dos jovens, saber das preocupações dos trabalhadores – e até da gente muito bem paga –, o que é que leva à ruptura das famílias”.

Para Carlo Maria Martini, “também não nos devemos habituar aos pecados globais. A sida, as catástrofes ambientais, a fome, a pobreza, as guerras e a miséria dos deslocados, as crianças que não têm acesso aos medicamentos e à educação, as mulheres maltratadas... estão sempre a desafiar-nos”.

Não ficar, pois, indiferente e agir: “Quem conhecer e amar um ser humano que sofre por causa deste tipo de pecados tem que ficar horrorizado e fazer alguma coisa”. Observa o cardeal que, se acompanharmos os acontecimentos através dos jornais ou da televisão, sentimo-nos abatidos e impotentes. Mas se ajudamos um ser humano, apercebemo-nos da nossa força.

Pensando, frequentemente, em S. Francisco Xavier e na circunstância de ele se ter confrontado com a miséria que existia na Índia, por onde, como se sabe, andou, no séc. XVI, Carlo Maria Martini perguntava-se: “Quanto desejaria ele voltar às salas de aula da Sorbonne, e gritar ali: Quem está disposto a lutar com Jesus contra a injustiça? Quem é que quer chegar onde Jesus chegou, assumindo inconveniências, injúrias e padecimentos?”

A miséria dos nossos dias impõe que as perguntas subsistam.


Eduardo Jorge Madureira Lopes
Os Dias da Semana
Braga


Diário de Notícias
15 Set 2012