Creio na Esperança
Eu vivia numa comunidade com companheiros de estudo [jesuítas], todos bons companheiros e irmãos como comunidade religiosa ─ pelo menos era assim que os sentia ─ e confesso que também não pretendia mais do que isso: nunca fui desconfiado, suspicaz. Mas, não encontrava, nem sequer no grupo dos amigos mais íntimos, uma comunicação que me pudesse encher as medidas, que pudesse preencher aquela sensação de vazio que me doía por dentro como uma ferida. Nem a fé, nem Cristo, nem Deus-Pai preenchiam o íntimo vazio da alma. Cristo estava, pela fé, firmemente na minha alma, mas estava como «ausência».
E esta solidão interior, este não poder sair de mim através duma comunicação interpessoal que me preenchesse, era como que uma sufocação dolorosa.
Comecei a escrever alguns poemas, de modesta qualidade, que expressavam a minha situação. Lembro-me de ter escrito um «Salmo interior», que descrevia o essencial da minha experiência daqueles anos.
A minha existência era como um barco: sentia-se irremediavelmente atraída pela longínqua obscuridade dum insondável oceano. A mim, competia afastar-me, dolorosamente, dos meus amigos: «Adeus, adeus camaradas que ficais na margem, figuras estranhas, forasteiros, que gesticulam numa luz longínqua». Guardei na memória este dístico, que era o primeiro do Salmo. A partir da solidão da minha barca, através da obscuridade, estendia a mão, mas impossível fora encontrar as mãos dos outros e muito menos, encontrar em mim a moeda que teria querido entregar ao meu irmão. Assim, me sentia constrangido a permanecer sentado na proa, absorto e silencioso, «com os queixos sobre as mãos e os olhos no firmamento». O meu silêncio era uma oração ardente, porém toda envolta em escuridão. Como uma luz obscura, a fé mantinha-se de pé. E eu aguardava.
Durante esses anos, sentia em mim uma forte inclinação para as missões estrangeiras. Este sonho chegou a preencher a minha vida de uma maneira estranha. Um superior meu, bondoso, mas bastante inepto e indeciso, fez-me acreditar que o meu sonho juvenil se iria realizar rapidamente. Mas, sem preparação e sem qualquer explicação, tudo foi cancelado. A minha dor foi fortíssima. Talvez desproporcionada, mas muito real. À minha mente vinha-me a espontânea analogia do amante a quem lhe haviam, súbita e irracionalmente, assassinado a amada. A minha experiência de solidão requintou e tornou-se mais amarga, ainda. O meu livro preferido desses tempos era Qohelet (o Eclesiastes).
Tinha acabado os estudos de filosofia seguidos de um tempo de licença, depois do que me enviaram para um colégio do ensino secundário a fim de dar aulas e exercer funções de inspector dos alunos. Estas tarefas adaptavam-se mal ao meu temperamento. Durante um ano sofri dum sentimento contínuo de ansiedade. Estava deprimido e, por conseguinte, a minha saúde física ressentia-se disso, razão porque depois desse ano de trabalho no colégio padeci duma poliadenite supurada do pescoço, que teve de ser lancetada.
Nesses tempos, senti o que é a morte. A um amigo, mais velho do que eu, a quem estava destinado ir para a América do Sul e que lhe custava bastante sair dali e despedir-se, dediquei-lhe um breve poema, nestes termos:
«Dizer-te em duas palavras isto,
quando estás para embarcar:
Vai! Depois será
maravilhoso
morrer!»
E, dedicado a mim mesmo, em plena depressão num Verão abafado, escrevi:
«Senhor!, este terrível cansaço,
que será?
Será que estou morrendo já?»
Com a ideia da morte estava também uma sensação de vazio, uma profunda desilusão.
Na fachada das traseiras do colégio onde eu prestava serviço, voltado para um campo aberto, havia uma espécie de terraço. Dali, a paisagem era austera, ainda que tranquila. Um caminho vicinal ascendia suavemente. À esquerda, um cemitério, parado, com árvores. Ao fundo, montanhas de baixa altitude. A luz dourada do entardecer revestia esta paisagem de beleza, mas, a mim, de profunda melancolia. Grande admirador de António Machado, tratei de imitá-lo, com a devida distância, expressando a minha situação nesta poesia:
«Tarde de Maio doirada
que vais a caminho do cemitério.
O meu amor e os meus pensamentos,
nada.
Levaram-nos os ventos
de prata
a caminho do cemitério.
A mim, deixaram-me morto
junto à trilha calada
e sumiram-se sem me dizerem
nada.»
Um superior meu demasiado puritano, nem sempre coerente e frequentemente quase desumano, tratou-me com dureza e com uma incompreensão absurda. Esta chicotada provocou em mim uma reacção saudável. Fiz por não cair na cólera, por reafirmar a minha fé e não me fechar ao amor do próximo, não obstante a natural reacção de retraimento.
Julgo que consegui um maior realismo, uma mais tranquila aceitação do horizonte fechado em que então vivia.
No final deste período de trevas luzia ou ardia, obscuramente, o facho da fé. Disse-o num breve poema a um grande amigo meu ─ da época e de hoje, ainda ─ que se ordenava sacerdote por aqueles dias:
«Dois anjos lado a lado.
Dois círios, verticais
lanças de paz,
humildes lâmpadas.
Pão e vinho.
Um milagre
de simplicidade.
Sobre a terra,
a palavra sentinela
da Fé.»
Era assim que as coisas estavam, quando deixei o meu trabalho de professor no colégio, às portas de iniciar os estudos de teologia. Completava, então, os meus 29 anos.
(…)
José Maria Diez-Alegria, sj