Eucaristia,
Fraternidade e Libertação
Por fim, descobrimos a função insubstituível da Eucaristia. A celebração da
Ceia do Senhor no interior da comunidade não é um rito devocional ou esotérico
para iniciados ou um refúgio para crentes, mais ou menos marginalizados. É o
momento em que a imolação de Cristo-Irmão se torna em acontecimento para esta
comunidade concreta, permitindo assim fazer-se mais e mais fraternidade, como
vocação do grupo e como dom do Pai. É o momento em
que a comunidade se reveste, em Cristo, das exigências da
fraternidade cristã. Ao mesmo tempo, a Eucaristia irmana-nos em
Cristo, orienta-nos para o Pai, une-nos nas primícias da fé, abre-nos à
universalidade (Mt 26:28), impulsiona-nos ao serviço dos pequenos (a Ceia é antes de tudo
para eles, segundo Lucas 14:15: Parábola do Grande Banquete), reveste-nos de
Jesus «que se imola por todos».
Mais ainda, toda a Eucaristia autêntica, conscientemente celebrada, pode
considerar-se como o acto de protesto e libertação
mais radical e absoluto. Pois a Eucaristia − e menos publicamente qualquer
oração − é a proclamação explícita do senhorio de
Cristo, único Libertador e único Senhor da história e do homem.
Proclama-se aí conscientemente – esse é o
sentido da anáfora − não só que Cristo é o único Senhor, mas que o seu
senhorio exclui qualquer outro senhorio sobre os homens, que n’Ele se fizeram
definitivamente livres. Sociologicamente falando, proclama-se que rechaçamos
absolutamente qualquer tipo de opressão que impeça o homem de
alcançar este destino.
Ou seja, que na terra não aceitamos senhores ou salvadores que se erijam em absolutos ou dominadores. Que ao
celebrar a Eucaristia prometemos trabalhar para remover as opressões
políticas, sociais e ideológicas incompatíveis com o que proclamamos.
Este anúncio torna-se consciencializador
− e pode converter-se em inconformismo radical − quando os participantes da
eucaristia são homens que sofrem qualquer tipo de dominação. Socialmente
falando, a eucaristia, periodicamente celebrada, deve ser um poderoso grito de alarme e de protesto,
intranquilizador de consciências e despertador de responsabilidades
sociopolíticas.
Neste sentido, a acção religiosa e sobretudo a eucaristia é altamente religiosa
para qualquer sistema desumano e opressor. A celebração, muitas vezes rotineira
e inautêntica − puramente religiosa, − da eucaristia em
sociedades onde há algum tipo de ditadura ou violência estabelecida vai pervertendo o
sentido profético e de protesto social da oração e do próprio cristianismo.
Deveríamos redescobrir todo o sentido pastoral de libertação e denúncia não
só da eucaristia, mas de toda a liturgia. (O baptismo como escolha de Cristo
como Senhor e a não-aceitação, no futuro, de nenhuma opressão humana; a oração
pessoal como um momento de tomada de consciência muito densa da
nossa liberdade diante das pessoas, coisas e ideologias, etc.). Assim, toda a
celebração cristã, que por definição não tem uma causa político-social, pode
ter profundas repercussões neste terreno na medida em que os cristãos que a
celebram se tornam conscientes do que, na realidade, estão proclamando. O vírus do
inconformismo que a liturgia cristã inocula não se deterá só nos
tipos de opressão socioeconómica.
Tenderá a remover os ídolos sempre novos que aprisionam o homem na
sociedade de consumo, na sociedade marxista totalitária, etc.
A suprema liberdade que constitui proclamar a Cristo como único Senhor
questiona qualquer sistema dominante. Está na raiz de muitas limitações à
liberdade religiosa e ainda das perseguições às Igrejas. A proclamação
eucarística, ao afirmar que a última palavra foi
pronunciada por Deus que se entregou em Cristo, afirma, ao mesmo tempo
que a mudança humana, a revolução e a acção política são, no melhor dos casos,
só a penúltima palavra. E que, sem nenhum programa revolucionário, a fé que
celebramos pode ter efeitos revolucionários.
Estes aspectos da Eucaristia, que a tornam significativa face à libertação,
evidentemente não são os únicos. Acreditamos tão-somente que, ao elaborar uma
espiritualidade da libertação na América Latina, devemos explicitar estas
dimensões, que também são próprias da celebração da Páscoa de Cristo que se
entregou pela redenção de seus irmãos.
Segundo Galileia [1928-2010]
Irmãozinhos de
Foucauld