Participar,
mas como?
A democracia participativa não é fácil de definir porque este horizonte – à imagem da utopia descrita pelo escritor uruguaio Eduardo Galeano[1] – afasta-se à medida que dele nos aproximamos. Em termos gerais, o que está em causa é envolver os habitantes nas decisões públicas, através de práticas e instrumentos diversos que os tornem actores mais amadurecidos e, portanto, mais capazes de cooperarem entre si. Ao fazê-lo, não há que temer os conflitos mas, pelo contrário, proporcionar-lhes espaços em que o confronto os torne fecundos em vez de estéreis.
O politólogo espanhol Pedro Ibarra descreve a democracia participativa como o cruzamento de duas modalidades complementares: primeiro, a «participação por irrupção», ligada aos protestos, ocupações e outras formas de reivindicar que todos tenham o direito de influir nas decisões públicas; depois a «participação por convite», em lugares de discussão e noutros espaços formais concedidos pelas instituições aos cidadãos para que eles se exprimam sobre a gestão do território e sobre os valores que devem inspirar as leis e as políticas[2]. Para avaliar a intensidade da interacção entre habitantes e instituições, a socióloga norte-americana Sherry Arnstein criou, em 1969, uma «escala da participação», ligada à capacidade de produzir empowerment – dito de outro modo, de proporcionar novos conhecimentos e, ao mesmo tempo, dar aos cidadãos o real poder de decidir[3].
Os processos de participação têm como objectivo influir na transformação da realidade e dos imaginários sociais, a partir de acções de pressão, resistência e dissidência. O professor de Ciência Política espanhol Joan Subirats descreve estas últimas como práticas «limite» capazes de criar «novos imaginários sociais» e novas visões do futuro[4]. Contudo, tal como mostram as redes de decrescimento, de economia solidária e de comércio justo, tais experimentações implicam renúncias pessoais que não são de pouca importância, razão pela qual apenas conseguem ser características de uma minoria. À semelhança do que se passa com os «Indignados», estas formas de participação auto-organizada produzem muitas vezes resultados incertos, que visam menos modificar imediatamente as políticas e os projectos do que estimular transformações culturais de longo prazo, embrião de uma nova sociedade.
Objectivos locais
As formas de «participação por convite» também não dão resultados garantidos. No entanto, nascidas de um pacto social, dispõem naturalmente de objectivos e de campos de manobra bem definidos, com base nos quais os cidadãos decidem aderir ao processo. O resultado a que chegam dependerá de uma combinação de factores: a clareza dos objectivos, a vontade política, o apoio de que goza a iniciativa, a qualidade da discussão, a coesão e a maturidade dos tecidos sociais, a arquitectura do «percurso participativo» (incluindo as estruturas de mediação e as técnicas de facilitação) e as reacções suscitadas em cada fase.
É certo que o percurso participativo pode ser prejudicado por ambições excessivas, mas a sua marginalidade em relação às instituições e o perigo de insignificância em termos de resultados concretos também podem desmotivar muitos habitantes. Com efeito, a sua desconfiança em relação às instituições já os leva a desinteressarem-se das formas de participação activa, que lhes parecem desprovidas de influência[5].
A maioria das experiências interessantes de democracia participativa fixa objectivos locais. É o caso do orçamento participativo no Kerala (Índia) e no Rio Grande do Sul (sul do Brasil), ou ainda de experiências em curso no Lácio e na Toscânia (Itália) ou em Poitou-Charantes (França) – todas se prendem com temáticas sectoriais particulares. Na Europa, contudo, esta ideia tarda a enraizar-se, como se o Estado, não crendo na capacidade que os seus habitantes têm de tomar decisões solidárias que sejam vantajosas para as camadas mais fragilizadas, conservasse o «monopólio» da justiça e da distribuição do bem-estar.
Nem por isso deixam de ser múltiplos os factores que estão na origem deste «imperativo deliberativo»: em primeiro lugar, a complexificação e fragmentação da sociedade tornam mais difíceis a intensificação e o recenseamento das necessidades; a seguir, a maior consciência dos direitos aumenta os conflitos; além disso, a crise do neoliberalismo acentua a urgência de uma redistribuição mais justa dos recursos; e, por fim, o desenvolvimento das técnicas que permitem melhorar a qualidade de vida torna mais difícil a escolha entre as mesmas[6].
Segundo Pippa Norris, professor de Política Comparada na Universidade de Harvard, o défice democrático (o fosso entre a realidade da democracia e as aspirações cidadãs) resulta da crise ética da classe política, cujos desbaratos, privilégios e abusos suscitam desencantamento e hostilidade[7]. A modernização social acentua também esta reconquista, na medida em que transformou os cidadãos em críticos mais exigentes. Tudo isso influi na percepção da legitimidade das instituições e converge para uma «construção social da realidade» das nossas democracias.
A experiência islandesa
Numa tal situação, a perspectiva de uma integração dos instrumentos de democracia directa no sistema representativo torna-se indispensável. Uma sentença do Tribunal Constitucional italiano de Julho de 2012 exprimiu bem este espírito do tempo, ao defender o resultado dos referendos ab-rogatórios de 2011 (contra a privatização forçada de certos serviços públicos) quando o governo queria contornar a vontade dos eleitores apresentando-os como «conselhos aos legisladores».
O quadro dos instrumentos, tradicionais, da democracia directa (referendos, plebiscitos, iniciativas legislativas populares, eleições destinadas a revogar mandatos), há outros, menos formais, que estão a ganhar vida: centrados na qualidade do debate esgrimido entre instituições e indivíduos, apoiam-se em jurados cidadãos ou em processos de investigação deliberativos graças aos quais pequenos grupos sociologicamente representativos aprofundam certos temas.
Recorrendo ao método da «porta aberta», outras experiências acolhem quem quiser nelas participar. É o caso, nos Estados Unidos, dos Fóruns Cívicos Agenda 21 ou dos balanços participativos organizados em mais de mil e quinhentas cidades (entre as quais Nova Iorque e Chicago), bem como das reuniões em que os habitantes discutem o sistema de saúde ou a reconstrução após a passagem do furacão Katrina.
Na Islândia, depois da crise de 2008, o movimento popular impôs um amplo espectro de «percursos participativos» de grande escala. O de Reiquiavique foi acompanhado pela reescrita colectiva da Constituição em duas fases: aos debates entre os cidadãos sucedeu uma comissão de vinte e cinco cidadãos eleitos a nível nacional. Apesar de ter acabado por ser bloqueada pelo Parlamento, a experiência reconhece a necessidade de um «percurso constituinte comum» para refundar a confiança nas instituições.
Para aceitar a imperfeição e os limites dos processos participativos, convém evitar julgá-los à luz de ideias abstractas e irrealistas, ou de exemplos mais radicais mas desligados do seu contexto[8] e colocar esta questão: uma experiência deste tipo, mesmo que incompleta, eleva o nível da democracia que existia antes de ela ocorrer? Com efeito, é neste confronto com o «antes» que cada uma destas experiências revela o seu valor acrescentado e confirma que os esforços assim investidos valem a pena.
Giovanni Allegretti
Investigador no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra (Portugal).
Le Monde diplomatique – edição portuguesa, SUPLEMENTO “Uma democracia a reconstruir”, de Setembro de 2012.
[1] Editorial, «Le temps des utopies», Manière de Voir, nº 112, Agosto-Setembro de 2010.
[2] Ler Igor Ahedo e Pedro Ibarra, Democracia participativa y desarrollo humano, Dykinson, Madrid, 2007.
[3] Sherry R. Arnstein, «A Ladder of Citizen Participation», Journal of the American Planning Association, University of California, Los Angeles, Julho de 1969.
[4] Joan Subirats, «If Participatory Democracy is the Answer, Wath is the Question?», Eurotopia, nº 5, Bandau (Alemanha), Setembro de 2008, www.tni.org/eurotopia.
[5] Leonardo Avritzer e Boaventura de Sousa Santos, «Para ampliar el Canon democrático», www.eurozine.com.
[6] Loïc Blondiaux e Yves Sintomer, «L’impératif déliberatif», Politix, vol. 15, Paris, 2002.
[7] Pippa Norris, Democratic Deficit: Critical Citizens Revisited, Cambridge University Press, 2011.
[8] Graham Smith, Democratic Innovations, Cambridge University Press, 2009.