teologia para leigos

16 de setembro de 2012

OS ALTOS INTERESSES DA NAÇÃO

Há não muitos meses, ouviu-se a Drª Manuela Ferreira Leite e o Dr. Rui Rio proclamar que os Municípios que não tivessem sido capazes de ‘pôr as contas camarárias em dia’ deveriam ser dispensados de eleições e passar a ser geridos por uma equipa de técnicos… E eu lembrei-me de rodar os ponteiros do relógio para trás …



O Estado Novo



«Quando Salazar passou a ser presidente do Conselho de Ministros [ver Nota de pé de página], o funcionamento do Governo mudou logo. Salazar era um novo tipo de primeiro-ministro, tratando os assuntos de Estado de forma muito diferente dos seus antecessores, fossem da Ditadura ou da República. Toda a informação e iniciativa estavam concentradas na sua pessoa; mais ninguém tinha acesso a tudo e muito menos tinha direito a agir de moto próprio. Os ministros eram técnicos a quem cabia transformar as ordens do seu senhor em propostas concretas, sob a forma de projectos de lei e decretos que eram depois submetidos a Salazar para aprovação. Salazar nunca escondeu as suas intenções sobre a matéria. Numa entrevista ao Diário de Notícias, a 12 de Julho de 1932, afirmou:

“É possível que se modifique radicalmente a maneira de trabalhar do Governo, substituindo-se à ânsia reformadora de que somos vulgarmente atacados, a resolução ordenada dos maiores problemas e substituindo-se os frequentes Conselhos de Ministros (certamente de futuro destinados apenas a definir orientações gerais) pelas reuniões do Chefe do Governo com os ministros, por cujas pastas devem ser tratadas as questões.”

Os ministros entravam e saíam ao sabor da vontade de Salazar. Não tinham vida fácil.

Depois de a Constituição de 1933 ser aprovada, Salazar apresentou a demissão de todo o Governo, pedindo-lhe [o presidente da República] Carmona para se manter em funções e criar um novo executivo. (…)

A Constituição de 1933, que transformava o Estado português numa «república unitária e corporativa», era a peça central do regime; a sua aprovação por plebiscito a 19 de Março desse ano e a sua promulgação a 11 de Abril, assinalaram o momento em que a ditadura militar deu definitivamente lugar ao Estado Novo. (…)

Este ordenamento constitucional, com um presidente da República, escolhido por eleição directa, coexistindo com um presidente do Conselho de Ministros, pode suscitar uma comparação com a República de Weimar. Porém, em Portugal esse ordenamento resultou numa subordinação do presidente da República ao presidente do Conselho. O sistema não conseguia lidar com duas personalidades fortes capazes de se neutralizarem mutuamente. Para evitar um estado de paralisia, um tinha de assumir a liderança. Como o homem mais capaz e líder do Governo, que centralizava na sua pessoa, Salazar tinha a maior parte dos trunfos. (…)

Em Maio de 1932 – antes de Salazar se tornar primeiro-ministro – foi divulgada à imprensa uma primeira versão. Suscitou oposição entre as Forças Armadas, o que restava dos círculos republicanos, as facções políticas mais extremas da direita radical e as associações católicas e da Igreja. Mesmo depois do plebiscito de 1933, demorou muito tempo até a Constituição entrar em vigor e começar a funcionar em pleno, em larga media devido à oposição ao seu conteúdo. A primeira Assembleia Nacional reuniu-se em Janeiro de 1935, tendo Salazar entretanto diligenciado no sentido de garantir a sua lealdade. Numa entrevista com António Ferro, em finais de 1932, Salazar confessou:

“Eu sou, de facto, profundamente anti-parlamentar, porque detesto os discursos ôcos, palavrosos, as interpelações vistosas e vazias, a exploração das paixões não à volta duma grande ideia, mas de futilidades, de vaidades, de nadas sob o ponto de vista do interesse nacional […]. O Parlamento assusta-me tanto que chego a ter receio, se bem que reconheça a sua necessidade, daquele que há de sair do novo estatuto […]. Para pequeno parlamento – e esse é útil e produtivo, como no caso actual – basta-me o Conselho de Ministros.”

(…) As diferentes facções dentro do regime podiam manifestar as suas opiniões dentro das estruturas políticas do Estado Novo, mas tinham de se ater a limites bem definidos: outras vozes não podiam fazer-se ouvir.

Realizou-se um plebiscito para aprovar a Constituição, o primeiro teste da União Nacional como entidade mobilizadora e do próprio Estado Novo. «Nós queremos um Estado forte», clamava uma mãe com uma criança num cartaz de campanha desenhado por Almada Negreiros; o Diário da Manhã adiantava dez razões para se aprovar o documento: uma delas «é a morte dos partidos que tiveram a «Nação a saque» e a ressurreição da verdadeira política nacional (TUDO PELA NAÇÃO, NADA CONTRA A NAÇÃO)».

Salazar falou ao país a 16 de Março na sede da União Nacional, sendo o seu discurso difundido pela rádio. Disse aos portugueses que, pior do que as crises financeiras que se sucediam a um ritmo prodigioso, era a crise no pensamento económico que varria o mundo e levara a que as sociedades se fracturassem. A utilidade social da riqueza fora esquecida e substituída pela satisfação da vaidade; os trabalhadores tinham sido reduzidos a máquinas; a família fora ignorada:


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“Assim temos como lógico na vida social e como útil à economia a existência regular da família do trabalhador; temos como fundamental que seja o trabalhador que a sustente; defendemos que o trabalho da mulher casada e geralmente até o da mulher solteira, integrada na família e sem a responsabilidade da mesma, não deve ser fomentado: nunca houve nenhuma boa dona de casa que não tivesse imenso que fazer.”

O que havia a fazer? Deixar a produção a salvo dos conflitos de classe e confiar no Estado para guiar a economia nacional:

“Nós queremos para nós a missão de fazer com que um elevado critério de justiça e de equilíbrio humano presida à vida económica nacional. Nós queremos que o trabalho seja dignificado e a propriedade harmonizada com a sociedade. Nós queremos caminhar para uma economia nova, trabalhando em uníssono com a natureza humana, sob a autoridade dum Estado forte que defenda os interesses superiores da Nação, a sua riqueza e o seu trabalho, tanto dos excessos capitalistas como do bolchevismo destruidor. Nós queremos ir na satisfação das reivindicações operárias, dentro da ordem, da justiça e do equilíbrio nacional, até onde não foram capazes de ir outros que prometeram chegar até ao fim.”

(…) A nova Constituição, prosseguia Salazar, centrava-se no homem e nas suas aspirações; as instituições políticas que ele delineava serviam, acima de tudo, para ajudar os indivíduos a satisfazer as suas aspirações. (…) Por fim, Salazar comentou o assunto na ordem do dia: «Estou convencido que dentro de vinte anos, a não se dar qualquer retrocesso na evolução política, não haverá na Europa assembleias legislativas. (Já não direi o mesmo de assembleias puramente políticas.)» Ainda assim, o Governo por si só não podia assumir toda a tarefa legislativa, dadas as suas outras funções. Havia ainda lugar para um parlamento; especialistas técnicos, como os existentes nas corporações, podiam aconselhar a actual Assembleia Nacional na sua missão e poderiam talvez, no futuro, assessorar directamente o Governo, após este ter conferido a si próprio o monopólio legislativo. (…) Nas suas (de Salazar) palavras:

«Uns após outros os anos vão passando e sempre nos ombros frágeis de alguns homens a mesma cruz pesada, mas sempre também no coração o mesmo anseio, o mesmo ardor, a mesma fé a iluminar a vida, a embelezar a luta, até que outros rendam os soldados exaustos ou mortos.» (…)

Pouco depois da primeira sessão do novo parlamento, a 12 de Janeiro de 1935, e da eleição presidencial, a 17 de Fevereiro (tendo sido reclamados 726 402 votos), procedeu-se a uma revisão constitucional que reforçou o poder do Governo e, mais especificamente, o do próprio Salazar. (…) O primeiro-ministro podia agora dirigir-se à Assembleia Nacional quando muito bem entendesse. Mais importante ainda, a revisão limitava a iniciativa dos deputados (que eram impedidos de propor medidas que aumentassem a despesa) e o tipo de decretos sujeitos à sua aprovação; também permitia ao Governo, e não só à Assembleia Nacional, consultar a Câmara Corporativa sobre legislação proposta. No espaço de duas semanas, a Assembleia Nacional tinha claramente frustrado Salazar pelo número de propostas de lei e avisos prévios introduzidos pelos deputados. Salazar encontrou-se com estes a 19 de Fevereiro para os admoestar e tornou pública a sua crítica através de uma entrevista a O Século. Parte do problema, admitiu, era a falta de disciplina partidária entre os noventa deputados que agiam como indivíduos destituídos de um propósito comum:

“A Câmara não tem tido de facto nem com a União Nacional, por um lado, nem com o Governo, por outro, a intimidade de relações e de colaboração que seria para desejar. Não é por isso estranhável que até o presente tenham abundado os avisos prévios e os projectos de lei, tocando muitas vezes questões dum melindre e de uma delicadeza enormes, sem que o Governo tenha tido conhecimento desses projectos senão pelos jornais.”

O resultado, dizia Salazar, era que a unidade de objectivos que caracteriza a ditadura estava a ser desbaratada pelos deputados. Toda a confusão devia ser evitada:

“A Câmara tomará a auto-disciplina que lhe falta. Aproximando-a mais e mais do Governo, regular-se-ão os seus movimentos, de maneira que nenhum deles destoe do conjunto. Todos esses movimentos têm de contribuir para a unidade governativa e legislativa. Não podem provocar a dispersão.”

Tal como os ministros, os deputados andavam ao sabor de Salazar. (…)

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Uma revisão subsequente da Constituição nesse mesmo ano deu outro passo importante no sentido de uma posição conservadora, estipulando que a educação pública devia ser ministrada de acordo com os preceitos da moral e doutrina cristãs.»


Salazar – uma biografia política
Filipe Ribeiro de Meneses
D. Quixote, 2009, pp. 127-139


NOTA: Salazar fora um dos mais influentes membros do partido político criado pela Igreja Católica - o CCP, Centro Católico Português - fundado em 1917. Em 28 de Maio de 1926, a partir de Braga, o general Gomes da Costa lidera um golpe militar que derrubaria a República. Só quase dois anos depois é que, na véspera do seu 39º aniversário, a 27 de Abril de 1928 toma posse como ministro das finanças. Salazar só chegará a primeiro-ministro (Presidente do Conselho de Ministros) em 1932, onde se manterá ininterruptamente até 1968.