O consenso de Berlim
O Muro de Berlim_Berlim |
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«A AUSTERIDADE SUICIDA» – pelo Nobel Joseph Stiglitz
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(12 minutos de ‘mobbing’ na ManPower; força o cursor até aos 17 m 03 s; termina aos 26m 50s)
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«O medo – uma retórica… culpabilizante! E legitimadora da austeridade»
Por António Casimiro Ferreira, sociólogo
É sobre os efeitos da austeridade que fala o novo livro do sociólogo António Casimiro Ferreira. No livro "Sociedade da Austeridade e Direito do Trabalho de Excepção" fala-se dos efeitos da austeridade que alimenta o medo. Medo, diz António Casimiro Ferreira, que surge associado a uma ideia de sacrifício e de culpa, reforçado pelo discurso.
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Abril de 2010
A «Troika», composta pela Comissão Europeia, pelo Banco Central Europeu [BCE] e pelo Fundo Monetário Internacional [FMI], intervém no processo de negociação colectiva na Grécia e exige uma diminuição dos salários de cerca de 25% no sector público. Em Junho, o mesmo trio emite um procedimento especial intimando o governo romeno a «adoptar um código do trabalho revisto e uma legislação sobre a negociação colectiva que reduza o custo do emprego e melhore a flexibilidade dos salários».[1] Por último, um ano depois, a Comissão Europeia interpela a Bélgica para que reforme o seu sistema de indexação dos salários, argumentando que «os custos unitários da mão-de-obra aumentaram [ali] mais rapidamente do que nos três países vizinhos (França, Alemanha, Holanda)».[2]
Grécia, Roménia e Bélgica… Desde há alguns meses, Bruxelas pôs a evolução dos salários no centro da sua estratégia de resolução da crise que está a abalar a Europa. Mais: intima as autoridades nacionais a obterem reduções. No entanto, o Tratado de Maastricht, que entrou em vigor em 1 de Novembro de 1993, estipulava que «a Comunidade não prestará apoio nem ajuda às actividades dos Estados-membros em matéria de remuneração» (artº 2.6), cláusula essa que foi retomada no Tratado de Lisboa.
A questão dos salários foi, desde o início, excluída das prerrogativas comunitárias, mas as obrigações impostas pela União – do controlo dos défices públicos ao da dívida – visavam em parte garantir a «moderação salarial». Este comando, porém, fazia-se à distância, sem intervenção directa, coisa que agora já não acontece. E segundo o presidente da Comissão Europeia, a evolução recente da evolução de Bruxelas nada tem de anedótico. «O que se está a passar actualmente», − afirma José Manuel Durão Barroso − «é uma revolução silenciosa, de pequenos passos, rumo a uma mais forte governação económica. Os Estados-membros aceitaram atribuir às instituições europeias – e espero que o tenham compreendido bem – poderes importantes em matéria de vigilância».[3]
Os governos decidiram coordenar-se para levar a cabo, à escala europeia, uma política comum de regressão salarial. O pacto «euro mais», adoptado em Março de 2011, acelera o desmantelamento dos modelos de negociação colectiva. A União Europeia [EU], além da limitação das dívidas e dos défices públicos – que deseja ver inscrita na legislação de cada país −, pretende doravante intrometer-se nas negociações nacionais para impor a sua concepção da disciplina salarial. O «pacote sobre a boa governação europeia» («six-pack»), que o Parlamento Europeu aprovou em Outubro de 2011, associa mesmo obrigações jurídicas a esse pacto, o qual é um simples compromisso político entre Estados.
Este dispositivo que contém seis actos legislativos europeus, foi adoptado com carácter de urgência e com grande discrição. Regido pela Direcção-Geral dos Assuntos Económicos e Financeiros (DGECFIN), pelos ministros da Economia e pelo BCE, prevê que um «painel de instrumentos» dê o alarme em caso de «desequilíbrio macroeconómico» ou de um «desvio de competitividade» que Bruxelas considere muito importante. O país que não se conforme com essas recomendações será passível de sanções financeiras.
Em matéria de salários, o indicador escolhido para mostrar o equilíbrio desta arquitectura nada tem de anódino: preferiu-se o custo unitário da mão-de-obra [CUMO] à parte das riquezas atribuível aos salários.[4] Enquanto o primeiro indicador reflecte a evolução das remunerações relativamente à restante União Europeia, o segundo analisa a distribuição das riquezas em trabalho (salários) e capital (lucros). O termo «competitividade» disfarça mal a natureza do projecto: a intensificação da concorrência entre os assalariados europeus, no seio de uma União cujos criadores, no entanto, afirmavam que ela iria favorecer a cooperação dos seus membros face ao exterior…
Foi a breve trecho construído um novo modelo, a Alemanha, que as reformas de Schröder [1998-2005] transformaram em padrão de modernidade. Em 30 de Março de 2010, declarou Christine Lagarde, então ministra da economia francesa: «A Alemanha realizou um excelente trabalho ao longo dos últimos dez anos, melhorando a competitividade e exercendo uma forte pressão sobre os seus custos de mão-de-obra.»[5]
Um pouco mais tarde, Jean-Claude Trichet, então governador do BCE, insistiu: «As empresas alemãs souberam adaptar-se rapidamente à globalização. (…) O facto de prestarem muita atenção aos custos de produção e de encetarem reformas para tornar a economia mais flexível pode servir de exemplo a todos os países vizinhos.»[6]
escultura na estação de comboios, em Berlim |
Todavia, se Gerhard Schröder se viu tão depressa cognominado «camarada dos patrões», foi talvez porque a sua batalha pela competitividade se saldou numa derrota social. Sem esquecer que a estratégia alemã de desinflação competitiva – aumento da competitividade das exportações através da redução dos salários – constitui um perfeito contra-exemplo de cooperação europeia.[7] No final dos anos 90, a Alemanha justificara esta política com a deterioração da sua balança comercial e a perda de eficácia da sua economia na sequência da unificação; presentemente, os indicadores privilegiados pela ortodoxia em vigor estão positivos. Mas a que preço!
«Criámos um dos melhores sectores de baixos salários na Europa», congratulou-se Gerhard Schröder no Forum Económico Mundial de Davos, em 2005. Desde 2003, as políticas de flexibilização do mercado do trabalho (leis Hartz) empobreceram consideravelmente a Alemanha. O trabalho temporário tornou-se um sector em si mesmo, foram suprimidos alguns subsídeos de desemprego proporcionais ao rendimento e surgiram os «mini-empregos» (empregos flexíveis pagos a 400 euros por mês). Em 2008, 33% dos trabalhadores foram admitidos com contratos precários e 6,5 milhões (28%) tinham empregos «de salário baixo» (menos de dez euros por hora).[8]
As convenções colectivas tornaram-se também muito vulneráveis. De todos os países da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico [OCDE], a Alemanha é o que teve a mais lenta progressão dos salários entre 2000 e 2009. Em termos reais (ou seja, levando em conta a inflação), estes baixaram 4,5%, ao mesmo tempo que subiram 8,6% em França e 22% na Finlândia.[9]
Os défices comerciais de uns condicionam os excedentes dos outros
Ao apresentarem a Alemanha como um modelo de saída da crise, muitos esquecem-se de lembrar que Berlim consegue vender os seus produtos, porque os seus parceiros lhos compram.[10] As exportações alemãs dependem, pois, do consumo de outros países da região, ela própria tributária do poder de compra das populações.[11] Ou, por outras palavras: os défices comerciais de uns condicionam os excedentes dos outros. De tal maneira que, segundo Martin Wolf, economista britânico e editorialista do Financial Times, a eliminação da crise actual implica que, neste domínio, «a Alemanha se torne menos alemã».[12] Mas os oráculos de Bruxelas não desistem: as capitais europeias são convidadas a imitar Berlim. Esta perspectiva constitui o resultado lógico de uma velha dinâmica.
Na década de 1980, o sistema monetário europeu (SME) impôs aos seus membros uma política de ancoragem ao marco alemão e a submissão efectiva a uma dupla ortodoxia − monetária e orçamental – ditada pelas autoridades monetárias alemãs. Nessa altura, diferentes medidas ainda permitiam que os Estados melhorassem os seus custos relativos de produção: desvalorização (jogando com as taxas de câmbio) e desinflação competitiva (jogando com os salários, a fiscalidade, etc.). Mas, no início da década de 1990, os critérios de ajustamento estrutural impostos pelo Tratado de Maastricht consagraram a opção de uma coordenação liberal das políticas económicas, resultante da relação de forças entre os grandes países.
Ao mesmo tempo que a França reclamava, da Alemanha recém-unificada, a moeda única como garantia de integração europeia, o chanceler Helmut Kohl impunha, em resposta, o modelo alemão de banco central e a sua obsessão anti-inflacionista. O défice público não deverá ultrapassar 3% do produto interno bruto (PIB), a dívida pública 60% do PIB e os governos deverão visar um «elevado grau» de estabilidade dos preços (ou seja, «uma taxa de inflação que não ultrapasse 1,5 pontos da taxa média dos três Estados-membros que apresentem as mais baixas taxas de inflação»). Nesta altura, as remunerações não foram objecto de qualquer orientação directa.
Em 1999, com a criação do euro houve uma viragem: a moeda única passou a interditar que os Estados efectuem qualquer desvalorização ou que actuem de qualquer outra maneira sobre as taxas de câmbio para melhorar a sua competitividade. Consequência: os salários passaram a ser a última variável de ajustamento de que os Estados dispõem para melhorar os seus custos relativos de produção. Esta situação acaba por exercer uma pressão constante sobre o poder de compra dos trabalhadores europeus. Ao longo deste período, as políticas de negociação colectiva passaram por uma mutação fundamental e tornaram-se profundamente defensivas. Sob pressão das reestruturações em curso e do aumento do desemprego em massa, muitos sindicatos europeus (com os alemães à cabeça) reviram as suas reivindicações pela bitola baixa. Negociando sob a ameaça de prejudicarem a competitividade nacional, a sua prioridade deixou de ser o aumento dos salários, passando a ser a conservação do emprego.
Uma longa série de acordos de empresa, que ratificaram aumentos do tempo de laboração em troca de postos de trabalho, ilustra a tendência, em toda a Europa, para a desvalorização da negociação por sector, como em 2004 na Siemens (Alemanha) ou em 2005 na Bosch (França). O alongamento do tempo de trabalho equivale a uma redução do custo do trabalho. «A Confederação Europeia dos Sindicatos (CES) pensava que a moderação salarial era um momento necessário num período de muito desemprego (12% a 13% na União)», conta Jean Lapeyre, nessa altura secretário-geral da organização. «Pensávamos que devíamos fazer esse esforço para proteger o emprego. (…) Mas, depois, sentimo-nos traídos e enganados pelos empregadores, porque a parte salarial continuou a regredir sem que o emprego melhorasse.»[13]
Num tal contexto, foi cerceada a própria natureza do salário. Até então objecto de deliberação política por excelência, o salário passou a ser reduzido à categoria de vulgar factor de pressão inflacionista ou de melhoramento da competitividade. Coisa que corresponde a afastar definitivamente a questão crucial da redistribuição das riquezas.
Na União, os actores económicos que assim se apoderam desta questão negligenciam facilmente o papel da esfera política nas opções económicas. Segundo eles, a única ambição dos parceiros sociais – chamados à «responsabilidade» − só pode ser uma necessária redução do CUMO: «Os parceiros sociais deverão continuar a dar provas do mesmo sentido de responsabilidade e a negociar, nos Estados-membros, acordos salariais concordantes com os princípios gerais definidos nas grandes orientações das políticas económicas».[14]
Teoricamente afastado do âmbito das competências sociais de Bruxelas, o salário foi projectado para o âmbito das políticas económicas comuns. Ora, a sujeição macroeconómica da União só deixa como perspectiva o dumping salarial organizado. Visto não poder encarar-se, de momento, no quadro do direito europeu nenhum quadro de negociação colectiva europeia, nem nenhuma harmonização por cima, a negociação só é concebível… com base em reduções, como se fosse impossível imaginar uma coordenação das negociações com vista ao aumento de salários.
Anne Dufresne
Socióloga, investigadora do Fundo Nacional de Investigação Científica (FNRS), na Bélgica. Autora do livro «Le salaire, un enjeu pour l’euro-syndicalisme. Histoire de la coordination des négociations collectives nationales», Presses Universitaires de Nancy, 2011.
in Le Monde Diplomatique – edição em português, Fevereiro de 2012.
[1] Carta de intenções do governo da Roménia ao FMI, 16 de Junho de 2010.
[2] Comissão Europeia, «Avaliação do Programa Nacional de Reforma e do Programa de Estabilidade 2011 da Bélgica», Bruxelas, 7 de Junho de 2011.
[3] Discurso no Instituto Europeu de Florença, 18 de Junho de 2010.
[4] Ler François Ruffin, «Não há dinheiro para os salários?», Le Monde Diplomatique – edição portuguesa, Janeiro de 2008.
[5] «Lagarde au Conseil des ministres allemand», Le Figaro, Paris, 30 de Março de 2010.
[6] «Les pays de la zone euro doivent faire dês efforts», Le Figaro, 3 de Setembro de 2010.
[7] Ler Till Van Treeck, «Vitória de Pirro para a economia alemã», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Setembro de 2010.
[8] Para mais pormenores, ler Bispinck Reinhard e Schulten Thorsten, «Trade Union Responses to Precarious Employment in Germany», WSI-Diskussionpapier, nº 178, Dezembro de 2011.
[9] Organização Internacional do Trabalho (OIT), «Relatório mundial sobre os salários 2010-2011. Políticas salariais em tempos de crise», Genebra, Novembro de 2011.
[10] Cerca de 40% das exportações alemãs destinam-se à zona euro.
[11] Recorde-se a compra por Portugal – supérflua! − de 2 submarinos à Alemanha, o mesmo tendo acontecido entre a Alemanha e a Grécia. [Nota do Editor deste blog]
[12] Martin Wolf, «A Disastrous Failure at the Summit», Financial Times, Londres, 14 de Dezembro de 2011.
[13] Entrevista concedida à autora.
[14] Recomendação do Conselho Europeu a respeito das grandes orientações das políticas económicas, 15 de Junho de 2001.