O caso Jon Sobrino como sintoma
«Digo-vos que, se eles se calarem, gritarão as pedras.»_Lc 19:40 |
Participando do movimento de solidariedade que emerge de diferentes lugares da Igreja em favor de Jon Sobrino, o teólogo Andrés Torres Queiruga oferece sua contribuição para o debate analisando este caso em seu significado no âmbito eclesial.
O Prof. Dr. Andrés Torres Queiruga é professor da Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha. Ele é licenciado em Filosofia e Teologia pela Universidade de Comillas, Espanha, é doutor em Filosofia pela Universidade de Santiago de Compostela, Espanha, e doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Itália. Entre suas obras publicadas em português, destacamos A revelação de Deus na realização humana (São Paulo: Paulus, 1995); Recuperar a Criação. Por uma religião humanizadora. São Paulo: Paulus, 1999. Repensar a ressurreição. São Paulo: Edições Paulinas, 2004. Em 2004, participou do Simpósio O Lugar da Teologia na Universidade do Século XXI, promovido pela Unisinos. Na ocasião, Queiruga concedeu entrevista à IHU On-Line na edição número 103, de 31 de maio de 2004. Já havia concedido outra, na edição número 92, de 15 de março de 2004
Jon Sobrino |
"A censura romana ao cristão e teólogo Jon Sobrino suscitou um autêntico plebiscito de solidariedade em grandes, vivos e variados setores de toda a Igreja. Um fenômeno tão notório, que transcende o significado meramente pessoal em relação a um autor amado e respeitado.
Nos últimos tempos tenho a sorte de coincidir com Jon nos trabalhos comuns da revista Concilium. Se antes eu admirava sua obra, agora admiro e agradeço muito mais a pessoa cristã, humilde e comprometida, fraterna e cordial, sempre pensando – ele, gravemente vulnerado pela enfermidade – no sofrimento dos pobres e humildes, de todas as vítimas da história. Por isso, não vou aqui fazer uma defesa de sua teologia, com a qual me sinto identificado e da qual aprendo sempre naquelas dimensões em que o meu pensamento, embora aberto a elas e contribuindo para sua fundamentação, não sabe entrar com a lucidez e a paixão que caracterizam o seu pensamento. Além disso, sua resposta às acusações basta a si mesma, sem necessidade de apologias externas.
Esta é a razão pela qual vou refletir sobre dois aspectos, dos quais o documento romano me parece ser um grave sintoma. Sintoma que dá o que pensar e que deve ser pensado em sua importância eclesial, pois indica que algo muito grave está sucedendo na presença da Igreja no mundo.
1. Antes de tudo, o tom do documento. Não é boa coisa quando escritos repletos de coração, com a inteligência posta ao serviço da fé e com a vida entregue evangelicamente aos mais pobres, são lidos com olhos de censor, ou pior, com espírito inquisitorial. Assombra, pelo menos a mim assombra muito o tom seguro e dogmático que se emprega para declarar rotundamente como “erros” propostas teológicas muito meditadas, inclusive quando poderiam ser discutíveis. Um tom somente equiparável com a segurança com a qual se afirmam como indiscutíveis outras propostas que podem ser legítimas, mas que de nenhum modo têm o direito de monopolizar para si a pretensão de serem as únicas que explicam a fé.
Uma teologia que, desde santo Tomás de Aquino e recolhendo uma ampla tradição, proclama tantas vezes que “de Deus não sabemos o que ele é, senão o que não é e como se relaciona conosco”, tem o dever de ser muito cautelosa e muito modesta quando se atreve a julgar, mais ainda, quando ultrapassa os limites do diálogo para chegar à condenação.
É algo que aparece agudizado por uma leitura unilateral e não empática que, em lugar de ler o autor em sua intenção e em sua perspectiva, o interpreta exclusivamente a partir da própria perspectiva. Uma leitura que, além disso, assombra mais de uma vez pelo fundamentalismo com que recorre a determinados textos bíblicos, com clara exclusão de outros, em geral mais próximos ao estilo e à intenção vital de Jesus de Nazaré. Para não falar por abstrações, bastem dois exemplos.
Uma das acusações que o documento faz à teologia de Jon Sobrino consiste em afirmar que é a “fé apostólica” e não a “igreja dos pobres” o lugar eclesial da Cristologia. Porém, trata-se realmente de verdades incompatíveis? Afirmar, como faz Sobrino, que “os pobres questionam dentro da comunidade a fé cristológica e lhe oferecem sua direção fundamental”, poderá significar para alguém que isso negue ou ponha em perigo a fundamentalidade da “fé apostólica”, e não antes, que suponha uma ajuda preciosa para sua correta interpretação?
Fariam bem os redatores do documento em submeter a esse teste o próprio Jesus de Nazaré. Então se encontrariam com a surpresa de ver que ele, nada menos que ele apresenta, como critério decisivo para a fé em geral – através de algo que está na parábola do Juízo Final – precisamente a atenção aos pobres: os justos, os que na verdade conheceram o Senhor, não são os que confessaram a fé de palavra, senão os que deram de comer ou beber... a ”um dos irmãos meus mais pequeninos”. Com o documento na mão, o texto fundacional de Mt 25, 37-43 sairia condenado com muito mais razão do que qualquer um dos de Jon Sobrino.
Outra acusação, Teo-logicamente, a Jon Sobrino, como a Rahner e a tantos teólogos e teólogas, se baseia em que não lhes agrada chamar Jesus de maneira direta de “Deus”, servindo-se de diversos recursos teológicos para expressar a fé em sua divindade. Sobrino está consciente, como o deveria ser todo teólogo sério, que o problema não está em recitar a palavra que expressa a “divindade”, senão em acercar-se com cuidado, a partir de uma compreensão responsável, ao mistério de seu significado: ou seja, “àquilo que queremos dizer quando falamos da “divindade” de Jesus. Um significado que nunca conseguiremos desentranhar com clareza, porque sempre ultrapassará nossos conceitos. Refere-se a isso, remete a isso, por exemplo, a citação que oferece o seguinte documento: “Jesus está intimamente ligado a Deus, pelo que será preciso expressar de alguma forma sua realidade como realidade que é de Deus (cf. Jo 20, 28)?
Os autores do documento vêem aí um não, porque pensam – e estão em seu direito, contanto que não o convertam em exclusivo – que a divindade deve afirmar-se de modo direto. Mais ainda, recorrendo à dificílima doutrina da communicatio idiomatum, “isto é, a possibilidade de referir as propriedades da divindade à humanidade e vice-versa”, e tomando não só a Escritura, senão também os Concílios ao pé da letra, lhe contrapõem, sem mais, afirmações diretas como esta: “Na linguagem cristã é possível dizer, e se diz, por exemplo, que Jesus é Deus, que é criador e onipotente”.
Não vou negar que, com as devidas mediações e com um forte trabalho hermenêutico, esta frase possa ter um sentido correto. Mas, aqui também me agradaria que ousassem submeter a esse teste Jesus de Nazaré. Para tal, remeto a palavras suas, por certo incomparavelmente mais seguras, por serem do próprio Jesus, do que aquelas que, com claro matiz metodológico, aduzem quase sem exceção o documento. Pois bem, quando alguém o interpela, não já com palavras que, com todo o respeito, o situam do lado transcendente, como de-Deus, senão com uma palavra bem simples e comum, chamando-o de “bom”, a contestação de Jesus é de evidente recusa, possivelmente irado: “Por que me chamas bom? Ninguém é bom, senão Deus” (Mc 10,18). O que teria respondido, se o tivessem chamado de “Deus”? E qual seria então o veredicto do documento?
2. Porém, não se trata de limitar-se a casos concretos. Mais grave, em meu parecer, resulta ser o clima geral do qual nascem. Porque, estes casos e outros que caberia citar em abundância, são pontas de iceberg de uma obscura maré de fundo que trata de afogar todo o âmbito da vida comunitária e da reflexão teológica.
Resulta verdadeiramente incompreensível, de que maneira possa ser que nosso mais alto governo eclesiástico não aprenda as lições do passado; não já de um passado remoto, senão inclusive do mais recente, com testemunhos tão estremecedores como os de Bernhard Häring e Yves Congar, e, em geral, daqueles grandes teólogos que, primeiro silenciados e reprimidos, se tornaram logo a seguir o espírito do Concílio, sendo oficialmente reivindicados e inclusive, em alguns casos, elevados a cardeais. Resulta incompreensível que numa comunidade que, para sua existência e sua missão, só tem sentido e justificação na vivência da fraternidade e no espírito de serviço, e na qual seu Fundador alerta de maneira expressa contra o ocultamento – a luz que deve estar “sobre a montanha” -, continuem procedimentos hoje inaceitáveis numa democracia normal.
Resulta incompreensível que se julgue e interprete mal um homem que dedica sua inteligência ao esclarecimento teológico e sua vida ao serviço da proclamação mais nuclear do Evangelho: “bem-aventurados os pobres”. Mais, muito mais incompreensível resulta tudo isso, quando este homem, este cristão e este teólogo é, sem metáforas, um mártir, ou, caso se queira, como justamente recorda o excelente escrito Cristianisme i Justicia, alguém a quem a Igreja primitiva venerava como “confessor”, porque havia sofrido o martírio sem chegar a morrer nele.
A gravidade, repito, não reside tanto no fato concreto, senão na situação que está delatando, pois tudo indica que obedece a um programa de fundo – não me atrevo a pensar que conscientemente planejado – de travar, senão de anular, o movimento de renovação aberto pelo Concílio Vaticano II. E, muito em concreto, desvirtuar fortemente – apesar do reconhecimento expresso de sua legitimidade e inclusive de sua necessidade – o saudável impacto da Teologia da Libertação como dimensão irrenunciável na reconfiguração de toda a teologia. Sob manifestos verbais de aceitação, são muitos os teólogos que têm – que temos – a sensação de que aquilo que certos intentos de resistir à renovação não conseguiram no diálogo conciliar, levam tempo querendo impô-lo depois por via autoritária.
Compreendo que é muito sério o que estou dizendo, e asseguro que de todo coração desejaria equivocar-me. Porém, ainda sob o risco de equivocar-se, a teologia está obrigada em consciência a trazer para a luz do diálogo e do exame comunitário tudo o que possa ameaçar a autêntica compreensão do Evangelho e da missão da Igreja. E inclusive, se o diagnóstico resultasse ser equivocado, a Igreja sempre sairia ganhando de um diálogo fraterno no tom e rigoroso nos conteúdos.
O Vaticano II, apesar de uma firme herança “hierarcológica” (em palavras de Congar), pôs todo o empenho em promover uma Igreja comunitária e fraternal: um “povo de Deus”, no qual a categoria fundamental seja o “serviço” e não o poder, a participação e não o mandato, a co-responsabilidade e não o verticalismo decisionista. A isso apontava, sem lugar à menor dúvida, o espírito do Nazareno: “Já sabeis que os chefes dos povos os tiranizam e que os poderosos os dominam. Porém entre vós não pode ser assim. Nem muito menos: quem queira ser importante, que sirva os outros, e quem queira ser o primeiro, que seja o mais serviçal” (Mc 10,42-43). A isso está apontando há muito tempo o melhor do processo cultural que, confluindo com o apelo de Jesus, exige um esforço incessante por obter modos de governo cada vez mais democráticos. E, quem afirme que o “mistério da Igreja” não é redutível à categoria política de “democracia”, somente o fará com justiça acentuando a exigência na direção marcada pelo Evangelho: se não democracia, muito mais – nunca muito menos- do que uma democracia.
Pois bem, por muito que nos custe reconhecê-lo, com honestidade histórica e fidelidade eclesiológica, a muitos de nós resulta bastante difícil negar que o anterior pontificado supôs uma travagem, quase violenta, em todos os processos que iam para uma Igreja mais participativa, mais comunitária, mais corresponsável, mais de base: mais “democrática”, no melhor e mais evangélico sentido da palavra.
Se essa evolução sucedia no plano prático e de governo, o mesmo sucedia também e está sucedendo no plano teórico e teológico. A explosão de criatividade pós-conciliar, com suas falhas inevitáveis, mas também com seus frutos evidentes e, sobretudo, com a legitimidade de trabalhar, por claro encargo conciliar, na realização de seu espírito, está a tempo sendo energicamente freada. Pouco a pouco, uma teo-logia – repito, em princípio, legítima como qualquer outra que seja séria e responsável – tratou de ir se impondo por via autoritária, considerando-se a teo-logia: a única que encarna e representa a fé da Igreja. Não sei até que ponto, nesse processo, se foi ou se é consciente de que assim se corre o risco não só de silenciar vozes legítimas que ajudam a apresentar outros aspectos do inesgotável Mistério de Deus, senão de impor, de maneira absoluta, um “ídolo conceitual” ali onde só pode estar o apelo vivo da Palavra e o impulso incessante da fé.
Se cabia abrigar esperanças de uma mudança e se muitos saudamos com gozo a promessa da encíclica Deus caritas est, gestos como este, por desgraça dolorosamente confirmados pela instrução Sacramentum caritatis, parecem fechar o horizonte. Com uma teo-logia assombrosamente pré-conciliar, sem lugar para um verdadeiro diálogo atualizador, pondo de relevo temas que pareciam amplamente superados na teologia mais moderada... o novo documento dá a impressão de querer fechar o círculo da restauração.
Desde logo, resulta muito difícil poder nele reconhecer o mais genuíno da intenção e do apelo conciliar: abrir as janelas ao mundo, as portas à cultura e a verdade divina a todos os seres humanos: “Esforçar-nos-emos em manifestar aos homens desta época a verdade pura e sincera de Deus, de tal forma que todos a entendam com clareza e a sigam com agrado”, dizia a mensagem inicial dos padres conciliares.
Pode ser todo um indício o fato de que não são os textos do Concílio, senão antes o Catecismo da Igreja Católica, o que a Notificação recomenda com mais insistência.
3. Apesar de tudo, a esperança. Falei antes de “fechar o horizonte”, porém isso não é nem pode ser verdade, se cremos que o mundo e a Igreja estão habituados e animados pelo Espírito de Deus. Marcado por uma longa história, o que estamos vivendo é um episódio, não um destino. E, nem uma simples olhadela pode reduzir tudo à obscuridade, nem uma fé viva pode desconhecer sinais de esperança.
Começando pelo próprio documento. Se as primeiras notícias falavam de “condenação”, o resultado acaba numa advertência que, por injusta que nos possa parecer, não é um facto meramente disciplinar. Tenha existido, ou não, essa mudança e fosse ou não devido ao clamor da resistência que despertou ao longo da geografia eclesial, tudo indica certa acolhida do direito do sensus fidelium a manifestar-se e fazer sentir sua participação ativa no pensamento e no governo da Igreja.
Jon Sobrino_sobrevivente do massacre dos padres jesuítas |
Na verdade, se este acontecimento deixa algo claro, é que este sentimento se faz cada vez mais vivo na consciência eclesial. O Papa e os bispos não são a Igreja, pois, conforme aos seus ministérios e carismas, ela consiste em discernir e tratar de realizar sua vontade em bem da humanidade. Quando as tensões não rompem a unidade, constituem uma viva recordação desta verdade fundamental. Assim o demonstra o fato de que ela transcendeu os meios, de que o Geral da Companhia de Jesus respeitou e apoiou a decisão em consciência de Jon Sobrino.
Da mesma forma em que o demonstram as resistências de vários episcopados, sobretudo o francês, aos intentos romanos de impor a missa em latim, com óbvia concessão “lefèvbriana”, ao que convém somar as vozes de numerosos liturgistas, teólogos e inclusive hierarcas frente a intentos restritivos de traduzir (unicamente) “por muitos” e não “por todos” o pro multis da consagração. São fatos talvez demasiado isolados, mas que constituem sinais de uma clara mudança de clima.
Como sinal muito importante, talvez mais do que possa parecer de imediato, que porém constitui, de algum modo, um novum na história do papado, é a declaração de Bento XVI indicando que seu próximo livro sobre Cristo quer ser uma proposta teo-lógica, e que, como tal, se apresenta aberta ao diálogo e à discussão. Se as manifestações do magistério, quando começam a ajuizar questões diretamente teológicas, procedessem assim, tenho a convicção de que seriam talvez menos “potentes” em aparência, porém muito mais eficazes e, por suposto, mais fraternalmente evangélicas na prática.
Finalmente, um mínimo de perspectiva histórica, que simplesmente remonte apenas um século para trás, mostra que o horizonte segue aberto e que a vida da Igreja continuará seu caminho de renovação. A repressão antimodernista de começos do século passado foi de um autoritarismo e de uma violência hoje unanimemente reconhecidos pelos historiadores. Porém não pôde impedir o florescer do renascimento patrístico, exegético, litúrgico e pastoral. Já em 1950, o duro freio à Nouvelle Théologie foi uma autêntica marretada na grande maioria dos espíritos. Mas, não foi capaz de cortar o trabalho renovador de seus protagonistas, que acabaram encontrando o mais alto apoio possível: o do maior dos concílios ecumênicos de toda a história. Não há nada de ilusório em pensar que também a estreiteza deste novo clima acabará sendo re-absorvida pela vitalidade da consciência eclesial, pela vida do Espírito na Igreja e no mundo.
As grandes experiências históricas – e a conciliar o é, sem lugar a dúvidas -, uma vez acontecidas, já não podem ser apagadas. De fato, apesar de todas as resistências e obstáculos, a renovação tanto da teologia quanto da consciência comunitária das pessoas que em geral crêem, tem sido e está sendo de tal calibre e profundidade, que a situação acabaria sendo literalmente irreconhecível para a maioria dos teólogos que escreviam em meados do século vinte. O simples fato de que hoje se possam escrever reflexões como as numerosas às quais se soma esta, constitui sua mais sólida confirmação. A nova situação criada a partir do Vaticano II faz com que se possa escrever justamente como manifestação de fidelidade à própria consciência no serviço do Evangelho.
Porque, quem queira lê-las com espírito límpido e no sentido da verdadeira fraternidade, deverá reconhecer que são feitas, não a partir da rebeldia, senão da responsabilidade, e escritas não a partir da distância indiferente, senão a partir do amor e do interesse por uma comunhão eclesial mais viva e autêntica. Porque se fazem na convicção de que a liberdade crítica dentro da Igreja é a melhor mostra de fidelidade e a única garantia de que o Evangelho não fique paralisado ou presa da rotina, senão que continue sendo Boa Notícia, Boa Nova carregada de futuro, para bem de todos os homens e mulheres.
Andrés Torres Queiruga
02 Maio 2007