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Jesus: instinto de posse, pobreza e comensalidade
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Renúncia ao instinto de posse e comensalidade
Jesus não pretende ter ocupações com a melhor gestão dos bens de subsistência: tem outras pré-ocupações. «Não possuais ouro, nem prata, nem cobre, em vossos cintos; nem alforge para o caminho, nem duas túnicas, nem sandálias, nem cajado; pois o trabalhador [o discípulo] merece o seu sustento.» [Mt 10:9-10] O anúncio do Reino (o exemplo cristão) deve assentar no desprendimento e numa dinâmica do provisório!
Jesus não exclui ninguém da sua mesa: a comensalidade era a parábola do Reino! Partilhar da mesa é sinal «de paz, de confiança, de fraternidade e de perdão: numa palavra, comunhão de mesa é comunhão de vida». [Joaquim Jeremias, Teologia del Nuevo Testamento, Sígueme 20098, 141; cf. 2Rs 25:27-30; Jer 52:31-34]
Jesus, diante duma sociedade baseada nos «códigos de honra e desonra, no patrocínio e na clientela» [J.-D. Crossan], propõe a vida de partilha de bens e de comunhão de destino como forma de realizar antecipadamente a vontade de Deus [Mt 8:11 par], que é a de que os bens têm destino e uso universais: são para ser partilhados e não capturados ou excluídos do colectivo pelo direito privado usurpador. Jesus declara que os bens têm um valor de uso superior ao valor de posse. (a Reforma Agrária já não deverá exigir «a posse da terra a quem a trabalha», mas a «distribuição justa» dos frutos da terra) A acumulação de riqueza é «desonestidade», injustiça [Lc 6:24-25; 16:9] – a riqueza de uns é a pobreza de outros; a saciedade de uns é a fome de outros; o riso de uns é o choro de outros. [Lc 6:20-21] Para além do mais, a riqueza é evanescente, caduca, efémera! [Mt 6:19]
O dinheiro convertido em ídolo, em Deus – Mamon – a quem se venera e a quem tudo se submete e oferece (inclusivamente, vidas humanas na pira do holocausto do neoliberalismo), é o maior concorrente da vida em Deus. [Mt 6:24; «não podeis servir a dois senhores»]
(hoje temos que traduzir Mamon por «os mercados»; cf. Michael J. Sandel, professor de filosofia política em Harvard, autor de What Money Can’t Buy: The Moral Limits of Markets: ver link)
Há uma linhagem que vem de Moisés [Ex 32], passa por Amós [5:21-24], Isaías [1:10-17], pelo salmista [115:4-8], por Karl Marx, etc. que desenvolve o tema do fetichismo das mercadorias e do dinheiro. Tal é o apego dos ricos ao dinheiro que não atendem (nunca atendem!!!) às razões humanas [Lc 16:20-21] nem às divinas [Lc 16:30-31]. Além do mais, é bem claro que aqueles a quem nós chamamos «benfeitores» são inimigos do Reino (são anti-Reino; Lc 22:25), pois nunca serão capazes de lutar contra o sistema que os faz ser benfeitores (que os faz ser ricos e, portanto, poderosos), mas fabrica os outros como pobres lázaros: «Abraão respondeu-lhe: ‘Se não dão ouvidos a Moisés e aos Profetas, tão-pouco se deixarão convencer, se alguém ressuscitar dentre os mortos.’» [Lc 16:31]
Jesus reconheceu que as relações não podem estar dependentes de convenções formais baseadas nos laços de sangue ou no poder do dinheiro: a família e os amigos ricos [Lc 14:12-14], regra geral, constrangem a liberdade individual e o espírito crítico tão necessários para a maturação pessoal e a revolução do mundo! São forças de bloqueio: Mt 12:46; Mc 8,11-12; Lc 11,29-32; Mc 10:23-25; Mt 19,23-26; Lc 18,24-27; Jesus; Buda; Aung San Suu Kyi [1945-].
O Cântico de Maria [Lc 1:51-53] é um belo poema ao desprendimento como escada de acesso aos dons de Deus, que apenas derrama a Sua graça sobre os que possuem um coração pobre, desprendido. [Mt 19:21]
O tributo
do templo - Entrando em Cafarnaúm, aproximaram-se de Pedro os cobradores do imposto do
templo e disseram-lhe: «O vosso Mestre não paga o imposto?»
Ele respondeu: «Paga,
sim». Quando chegou a casa, Jesus antecipou-se, dizendo: «Simão, que
te parece? De quem recebem os reis da terra impostos e contribuições? Dos seus
filhos, ou dos estranhos?» E como ele respondesse: «Dos
estranhos», Jesus disse-lhe: «Então, os filhos estão isentos.
No entanto, para não os escandalizarmos, vai ao mar, deita o anzol,
apanha o primeiro peixe que nele cair, abre-lhe a boca e encontrarás lá um estáter. Toma-o e
dá-lho por mim e por ti.» [Mt 17:24-27]
O desprendimento, que no Reino de Deus é
proclamado como salvação, é um desprendimento que quer chegar ao próprio coração
da consciência moral: ‘se não pago sou considerado revoltoso político, se pago
sou colaboracionista’… Jesus, diante das costumeiras dualidades (‘ou… ou’),
introduz uma terceira via, a via da liberdade dos Filhos de Deus: ‘não te limites
apenas à armadilha das dualidades; para sobreviver sê esperto e não embarques
em aventureirismos pseudo-revolucionários; submete a tua consciência apenas ao
poder de Deus’.[1]
Como diz o provérbio árabe: «O rei passa,
eu inclino-me e solto os gases…».
Lembremos, por fim,
que a versão de Mateus do Pai-Nosso [6:9-13] diz: «perdoa-nos as nossas dívidas assim como também nós perdoamos
aos nossos devedores», e que essa
versão é mantida na Didaké (8:2).
Até no Pai-Nosso ‘o Perdão’ é relacionado com o desprendimento extremo do
perdão de uma dívida…
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[1] Cf. Carter, W., «Paying the Tax to Rome as Subversive Praxis: Matthew
17:24-27», JSNT 76 (1999) 3-31.
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