teologia para leigos

19 de abril de 2012

CRISTÃOS E CARIDADEZINHA 2/2

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Jesus: instinto de posse, pobreza e comensalidade

Rua do Rosário_Porto



Jesus e os pobres (‘anawim)

Jesus não era um «consagrado» ao serviço do culto sacerdotal, não «amava uma igreja» ou um movimento religioso, não era ‘nazireu’ [Act 21:17-26; Jesus nunca teria aceitado a hipocrisia da contradição estratégica, que, aqui nos Actos, Paulo aceitou…]. (Cf. a Carta aos Hebreus 8:4-5 e a respectiva denúncia)

Jesus não era um asceta, não vivia à parte do comum dos mortais, não usava vestes cerimoniais ou símbolos distintivos, língua cultivada, vocabulário fino, nem tinha subordinados às suas ordens. Tal como se proclamava na catequese do século II, «os cristãos não se distinguem dos demais homens, nem pela terra, nem pela língua, nem pelos costumes. Nem, em parte alguma, habitam cidades peculiares, nem usam alguma língua distinta, nem vivem uma vida de natureza singular. Nem uma doutrina desta natureza [refere-se ao cristianismo] deve a sua descoberta à invenção ou conjectura de homens de espírito irrequieto, nem defendem, como alguns, uma doutrina humana.» [A Diogneto] «Os cristãos não se distinguem dos demais homens» − Jesus também não!

No entanto, Jesus escandalizou o seu tempo (também) pelo tipo de gente que Ele permitia que o acompanhasse. Terá Jesus usado de «discriminação positiva» e escolhido, como comunidade de vida, preferencialmente gente pobre por uma questão de oportunismo populista? Terá, Jesus, defendido ‘interesses particulares’ – feito uma «opção de classe», no sentido marxista-leninista – jogando apenas num tabuleiro? Não creio. Introduziu, no seu jeito de ser, uma ética humana radical, o «princípio da igualdade na consideração de interesses» [Peter Singer], aquele que se aplica a todas as pessoas, independentemente da raça, sexo ou desempenho num teste de inteligência. «O princípio da igualdade na consideração de interesses actua como uma balança pesando os interesses imparcialmente; ignora totalmente a quem pertencem os interesses que ponderam». «Significa que pondera interesses, considerados simplesmente como interesses e não os nossos interesses, os interesses dos Australianos ou dos Europeus». [Peter Singer, Ética Prática, Gradiva2 2002, 39.38]

No entanto, Jesus fez uma escolha deliberada – não usou de hipocrisia ou infantilidade, e não fez acepção de pessoas. É certo que afirmou que Deus quando envia o sol e a chuva os envia igualmente sobre bons e sobre maus, sobre justos e pecadores [Mt 5:45], mas isso não só não quer dizer que Deus pouco se importa que haja bons e maus, como quer afirmar que Deus sabe que há gente boa e gente má (Deus faz ‘análise social’) e que conta com esse dado da realidade na relação de amor pedagógico que quer manter com a humanidade [Heb 3:7-19].

 «É tudo gente boa» − é afirmação que não se coaduna com a postura que Jesus adoptou. Os evangelhos o mostram: há uma evidente tensão social em torno de Jesus. E porquê? Porque Jesus usa de uma ética que ajuíza acções, Jesus usa de um Decálogo que se formula pela positiva e que retoma a originalidade e a essencialidade das coisas [Mt 19:8; Lc 14:5-6; 1 Cor 9:9] – essa a sua radicalidade, o não se ficar apenas pela aparência, mas o inquirir até às fontes. Jesus não julgou a moralidade das consciências individuais, mas optou pelos pobres, no sentido da definição de Gustavo Gutierrez: «pobres são os que morrem antes de tempo».


Rua das Liceiras_Porto


Jesus sabia que – tal como hoje em pleno século XXI − a «pobreza absoluta» abundava ao seu redor e que o problema da pobreza era (e ainda é), sobretudo, um problema de má distribuição. Ao afirmar que Deus concretizava, em primeiro lugar, o seu amor junto dos pobres [Lc 4:18-19] e que isso já estava em marcha com ele [v.21], Jesus arriscava-se a liderar um «movimento de marginais», movimento mal visto aos olhos do poder militar romano e do poder religioso.

«O Espírito do Senhor está sobre mim,porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres [Lc 4:18] – forte proposição!

 «Uma proposição não tem a particularidade de um sentir, nem a realidade de um nexo. É um dado dum sentir, à espera de um sujeito que o sinta. A sua relevância para o mundo actual, por meio dos seus sujeitos lógicos, transforma-a num engodo do sentir. De facto, uma multiplicidade de sujeitos pode senti-la com diferentes sentires e diferentes maneiras de sentir.» (…) «Cada proposição implica os seus próprios sujeitos lógicos, não podendo ser a proposição que é, a não ser que esses sujeitos lógicos sejam as entidades actuais que são.» [Alfred North Whitehead, Processo e Realidade, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa 20101, 292]

«Todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos nele.» [v.20b]

«Começou, então, Jesus a dizer-lhes: «Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir.» [v.21]

O cenário estava pronto para que a proposição fizesse sentido e tivesse impacto: Deus, na pessoa do filho de José e de Maria [v.22b], escolhia os pobres como os preferenciais destinatários da sua preocupação!

O desenvolvimento desta proposição está à vista de todos: a Jesus adeririam de imediato os ‘anawim, os pobres [Lc 7:21-22: «Nessa altura, Jesus curava a muitos das suas doenças, padecimentos e espíritos malignos e concedia vista a muitos cegos. Tomando a palavra, disse aos enviados: «Ide contar a João o que vistes e ouvistes: Os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, a Boa-Nova é anunciada aos pobres»]. Eis «um jubiloso clamor escatológico de Jesus. Para sintonizar o nosso ouvido com o seu conteúdo, escutemos a lista tanaítica e fixemo-nos no contraste: “Quatro coisas se podem comparar a um morto: o paralítico, o cego, o leproso e o que não tem filhos” [b. Ned. 64b Bar.]. A estes modos de vida não se pode chamar vida – estas pessooas, praticamente, estão mortas. Ora, chega AGORA (Lc 4:21; o acento está na palavra ‘hoje’) a ajuda aos que, sem perspectiva alguma, se encontravam numa situação de desespero absoluto. Ora, aos que pareciam mortos, a esses, oferece-se AGORA vida. Jorra a água da vida, terminou o tempo da maldição, o paraíso permanece aberto. A consumação do mundo começa AGORA.» [J. Jeremias, TNT, Sígueme 20098, 128]

Com Jesus de Nazaré começa um tempo novo, o tempo de Deus prometido em Isaías (35:5ss; 29:18ss − «tempo da salvação»; 61:1 − «tempo da boa-nova anunciada aos pobres»), tempo tão aguardado!


Trav. do Carregal_Porto



«A Boa-Nova é anunciada aos pobres» [Lc 7:22]

Mas a quem se refere a palavra ‘pobre’? A resposta a esta pergunta é crucial, e o próprio Jesus assim o acha, pois acrescentou, como recado aos discípulos de João Baptista, o seguinte: «e feliz de quem não se escandalizar com este anúncio que faço» (v.23). Jesus ao dizer que oferece a salvação aos pobres – a melhor tradução é «o reino pertence unicamente aos pobres»; cf. Lc 6:20; Mt 5:3; cf. J. Jeremias, TNT, Sígueme 20098, 142 – abre-nos a porta de acesso ao núcleo central da sua mensagem: só quem se tornar pobre é que poderá esperar ser salvo! No que diz respeito ao quem é quem, há dois pontos de vista.

Para os evangelhos, Jesus aceitou partilhar o seu destino com publicanos, pecadores, prostitutas, pequenos (Mc 9:42; Mt 10:42; 18:10.14; nunca traduzir por ‘crianças’), ‘pequeninos’ ou ‘os mais pequenos’ (Mt 25:40.45; nunca traduzir por ‘criancinhas’) e com os simples (por oposição aos sábios e entendidos; Mt 11:25s).

Para Jesus, estas mesmas companhias são descritas a uma luz distinta: elas são os pobres [Lc 4:18; 6:20; 7:22; Mt 11:5] e os cansados e oprimidos pelo peso da Lei [Mt 11:28].

A primeira terminologia tem claramente origem nos adversários de Jesus: Mt 11:19 par e Lc 7:34.
A segunda terminologia é de Jesus, tal como ficou na memória dos seus primeiros seguidores.

A primeira terminologia refere-se a gente que, socialmente, ou menosprezava a Thora (os Mandamentos de Deus) ou exercia profissões desprezadas (pastores, cambistas, cobradores de impostos, praticantes de jogos de azar ou fortuna, publicanos) ou eram ladrões e assassinos ou eram pessoas sem formação religiosa (era o caso dos discípulos de Jesus), sem sensibilidade piedosa e sem hábitos de culto religioso, atrasadas e incultas. Em suma, pessoas que eram apontadas a dedo, difamadas, pessoas para quem a porta da salvação de Deus estava fechada. [2Sam 5:6-10]

A segunda terminologia – os pobres, ‘anawim – tem duas conotações, consoante estamos em Lucas (6:20) ou em Mateus (11:5). Entre os dois textos, seguramente que o texto de Lucas é o original. Lucas pensa nos discípulos – no discipulado −  e na condição de quem quer dispor-se a seguir a Jesus: pode padecer pobreza, fome e perseguição. Em Mateus há claras referências ao Antigo Testamento: Isaías 57:15, «espírito humilde»; Is 66:2, «de espírito abatido»; Salmo 34:19, «coração contrito, apertado». Ou seja, em Mateus, os pobres são os humildes, os que se sentem pobres diante de Deus, os que se sentem como mendigos, de mãos vazias, conscientes da sua pobreza espiritual ante Deus.

«Mateus 11:5 e Lucas 4:18 é uma citação de Isaías 61:1 entendida como predição: «a anunciar a boa nova aos pobres (lebasser ‘anawim) eu fui enviado». Este ponto é muito importante, sobretudo pelas expressões paralelas: veja as locuções tais como «os desesperados», «os que se encontram cativos (da culpa?)», «os prisioneiros» (v.1), «os aflitos» (v.2), «os de espírito abatido» (v.3). Isto revela-nos que «os pobres» são todos aqueles que são oprimidos em sentido amplíssimo: todos os que sofrem opressão ou não se podem defender, os desesperançados, os que não têm salvação. Num sentido mais amplo, os conceitos de ‘ani / ‘anaw são empregues noutros pontos da literatura profética. Originalmente foi uma denominação para designar os desgraçados. Mas, nos profetas, tal palavra abarca também os oprimidos e os pobres que sabem que estão completamente à mercê de Deus. (…) Lucas pensa na opressão exterior e Mateus pensa na necessidade interior. A tradição mateana das bem-aventuranças formulou-se numa igreja que estava em luta contra a tentação farisaica de se fazer justiça pelas próprias mãos. A tradição lucana formou-se numa igreja que se via gravemente oprimida e que necessitava de consolo.» [J. Jeremias, o. cit., 137-138]

Por último «os pecadores» [Mt 9:9-13; Mc 2:13-17: 4 vezes a palavra ‘pecadores’] correspondem a um tipo moral de pessoas que não só «não temem a Deus» como não concedem algum valor à Thora [Sl 12:4-9; 28:5; 36:2; 73:11; 74:10.18.21; 94:1-7]. Serão castigados, pois é inerente à justiça e ao poder de Deus rejeitar os que rejeitam a sua vontade ética para com os homens. A literatura sapiencial aconselha a que não nos misturemos com esse tipo de gente [Pr 4:14; 9:7; 18:5; 24:24; 25:5.26], a que não tenhamos nenhum trato de familiaridade com ela, de modo a não sermos contaminados – a Lei e a sua espiritualidade são excludentes. [cf. Esther Miquel Pericás, Amigos de esclavos, prostitutas y pecadores, EVD 20071, 329-337]. Jesus, porém, não se importa.


Praça da Batalha_Porto

 O Chamamento de Levi (Mt 9,9-13; Lc 5,27-32) - Jesus saiu de novo para a beira-mar. Toda a multidão ia ao seu encontro, e Ele ensinava-os. Ao passar, viu Levi, filho de Alfeu, sentado no posto de cobrança, e disse-lhe: «Segue-me.» E, levantando-se, ele seguiu Jesus. Depois, quando se encontrava à mesa em casa dele, muitos cobradores de impostos e pecadores também se puseram à mesma mesa com Jesus e os seus discípulos, pois eram muitos os que o seguiam. Mas os doutores da Lei do partido dos fariseus, vendo-o comer com pecadores e cobradores de impostos, disseram aos discípulos: «Porque é que Ele come com cobradores de impostos e pecadores Jesus ouviu isto e respondeu: «Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os enfermos. Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores.» [Marcos 2:13-17]

«As más companhias de Jesus não são seguramente criminosos, assassinos e ladrões, mas pessoas cuja atitude e comportamento de alguma forma questiona a legitimidade da moral religiosa judaica. Ao tratar com eles em termos de amizade e companheirismo, Jesus desdenha abertamente os conselhos de toda a tradição moral judaica dando a entender que não rejeita aqueles que põem em perigo a identidade religiosa e a integridade moral do povo eleito. Aos olhos de todos, Jesus aparece como um potencial traidor do Judaísmo.» [Esther Miquel Pericás, o. cit., 329-337]

«Se o seguimento público de Jesus incluía pecadores notórios que não se haviam arrependido nem realizado a restituição [de acordo com as exigências habituais da Thora] e se Jesus proclamava publicamente que estes precederiam os justos no Reino – inclusivamente iam à frente dos justos, daqueles a quem João havia convencido a arrepender-se – então, é compreensível o estalido de indignação pública.» [E. P. Sandres, Jesús y el Judaísmo, Trotta 20041, 368]


«Na prática, a oferta, por parte de Jesus, da salvação aos pobres é extremamente escandalosa.» [J. Jeremias, o. cit., 133]

«O Reino pertence unicamente aos pobres. (…) A primeira Bem-aventurança afirma: a salvação está destinada unicamente aos mendigos e pecadores. É o que lemos, expressamente, em Marcos 2:7 (é o que se conclui do convite para o banquete escatológico). Jesus repetiu sem conta que a salvação é para os pecadores, não para os justos (piedosos). Deus concede a revelação, não aos teólogos eruditos, mas aos incultos [Mt 11:25s par. Lc 10:21]. Para as crianças [Mc 10:14] e para aqueles que, com espírito filial, são capazes de dizer ‘Abba [Mt 18:3], Jesus abre o Reino.» [J. Jeremias, o. cit., 142]

O modo de olhar de Jesus evidencia uma guerra de pontos de vista: uma guerra entre os que apontam o dedo vs os que se compadecem! Entre um e outro existe uma diferença górdica: o primeiro olhar é moralizante e culpabilizante ao passo que o segundo é analítico. O primeiro não procura explicações sistémicas enquanto que o segundo quer responder à pergunta: como foi possível ter-se chegado a isto? O primeiro pergunta pela culpa pessoal; o segundo pergunta pela culpa integral (pessoal e social). O primeiro ignora a dimensão estrutural enquanto o segundo propõe uma salvação holística da pessoa. De qual dos lados está Jesus? Juan José Tamayo di-lo assim:

«A prática de Jesus é uma prática unitária, que engloba as diferentes dimensões do ser humano: subjectividade e historicidade, individualidade e sociabilidade, corporalidade e espiritualidade. Orienta-se para a salvação integral, como o mostra o concílio Vaticano II (1962-1965) num texto antológico: “Com efeito, há que salvar a pessoa humana e renovar a sociedade humana (…), (salvar) o ser humano, mas o ser humano em sua unidade e totalidade, corpo e alma, coração e consciência, inteligência e vontade”». (Gaudium et Spes, nº 3)

«A prática de Jesus é includente, conflituosa, processual e crítico-pública.» (Juan José Tamayo, Hacia la comunidad_Nº5, Trotta, Madrid 20042, 116ss)

Na encíclica Sollicitudo rei socialis (1987), João Paulo II refere-se a atitudes e estruturas de pecado (nº 36) que são anti-Reino e cuja eliminação exige «uma atitude diametralmente oposta: a entrega por bem do próximo, de quem está disposto a “perder-se” − no sentido evangélico − pelo outro, em vez de o explorar, e a “servi-lo” em vez de o oprimir para proveito próprio» (nº 38). A propósito disto, João Paulo II cita vários textos dos evangelhos sinópticos: Mt 20:25; Mc 10:42-45; Lc 22:25-27.

A encíclica entende o desenvolvimento dos povos, não como um dever apenas individualista, como se fosse possível alcançá-lo através de esforços de cada um isolados, mas como «um imperativo (ético) para todos e cada um dos homens e da mulheres, para as sociedades e as nações, para a Igreja católica e para as outras igrejas e comunidades eclesiais com as quais estamos plenamente dispostos a colaborar neste campo» (nº 32). Isso pressupõe desmascarar e «denunciar a existência de mecanismos económicos, financeiros e sociais…» (nº 16).

«A oferta do Reino de Deus para os pobres não se fica, portanto, no plano dos bens meramente espirituais, no plano do consolo anímico. Tem uma dimensão histórica, social, económica, política, tal como se evidencia na contraposição repetidas vezes e de diversas formas estabelecida (…) entre a sorte dos ricos e a dos pobres.» (Lc 6:20-26) [Juan José Tamayo] Seguramente que isto pesou na hora de julgar a Jesus. «Assim que viram Jesus, os sumos sacerdotes e os seus servidores gritaram: «Crucifica-o! Crucifica-o!» Disse-lhes Pilatos: «Levai-o vós e crucificai-o. Eu não descubro nele nenhum crime.» [Jo 19:6] Provavelmente os argumentos oficiais das autoridades não passaram de jogos políticos, meros embustes, desculpas face à evidência [Jo 19:14-16].

Jesus escolheu ser o defensor das vítimasacabou vítima da dominação dos senhores deste mundo, vítima de «Babilónia, a grande, a mãe das prostitutas e das abominações da terra.» Vítima, mas apenas por instantes [cf. Ap 17:14]

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