teologia para leigos

23 de abril de 2012

A RADICALIDADE DE JESUS DE NAZARÉ

O específico cristão






Quando, em tempos de crise austera, se pergunta aos cristãos ‘que esperança devem oferecer?’ está-se a procurar perguntar pela especificidade da condição cristã. Ora, tal desafio só pode ser resolvido recorrendo ao ‘testemunho de vida’ daquele que nos grafou de ‘cristãos’, ou seja, daquele de que nos dizemos seguidores: Jesus, o Cristo. Os cristãos, portanto, são os seguidores de Jesus e, por isso, deveriam ser designados mais propriamente por ‘jesuanos’ e não por ‘cristãos/messianos’. (Jesus de Nazaré rejeitou o título de Messias / Kristos[1], por causa das conotações políticas, violentas, de tal título; cf Jo 6:14-15 - «Aquela gente, ao ver o sinal milagroso que Jesus tinha feito, dizia: «Este é realmente o Profeta que devia vir ao mundo!» Por isso, Jesus, sabendo que viriam arrebatá-lo para o fazerem rei, [‘messias’] retirou-se de novo, sozinho, para o monte»).


Preâmbulo – caridade ou metanóia?

Os seguidores de Jesus são os que vêem nele a felicidade durável, plena, a felicidade radical que verdadeiramente vale a pena, e têm nele a esperança - esperam n'Ele a felicidade! Mas tais sentimentos – a felicidade e a esperança – são, antes de tudo, sentimentos muito humanos: são humanos antes de serem religiosos ou teologais. Todas as pessoas esperam ser felizes − muito antes de quererem ser ricas esperam ser felizes! − e vivem pouco alegres enquanto não palpam a felicidade. A felicidade, portanto, tem que ser algo que se palpe, que se encontre, que se veja, que possa ser demonstrada na vida real do dia-a-dia, que se viva: a esperança e a felicidade têm que ser para hoje e têm que ser palpáveis, sensíveis, vivíveis e acessíveis. Não basta serem um desejo ou uma expectativa – têm que ser um dinamismo, uma vida propulsora!

A alegria e a felicidade dos que escutaram Jesus de Nazaré pela primeira vez, remete-nos imediatamente para a memória do primeiro alvo do discurso das Bem-aventuranças [Mt 5]: FELIZES! QUE SEJAM FELIZES! «Felizes os pobres porque deles é o Reino dos Céus» (v.3) E Lucas refere, como timbre ou sinete da missão de Jesus, a seguinte proclamação: «O Espírito do Senhor está sobre mim e enviou-me a anunciar a Boa-Nova aos pobres». (Lc 4:18) Portanto, a primeira achega à pergunta inicial que está contida no título deste texto, é esta: o específico cristão é o anúncio duma denúncia!, na medida em que, proclamar que Deus elege de forma exclusivista os ‘pobres’ (‘anawim) como os únicos destinatários da FELICIDADE do REINO de DEUS, é uma insuportável afronta. Proclamar que os ‘anawim são os primeiros (nos planos de Deus) significa que os outros serão os últimos. Trata-se de uma revolução política de 180º!, insuportável, seja em que país ou tempo for. O versículo 18 de Lucas é uma revolução política, é um convite a uma revolução total, é um rastilho de pólvora lançado a rabear sob os alicerces do poder imperial naquela longínqua província do Império Romano, a Judeia. Nos versículos 18 e 19 de Lucas não há traços de assistencialismo, de reformas ou remendos a operar no sistema imperial e eclesiástico: eles convocam a uma inversão absoluta das estruturas, incompatível com melhorias ou pensos rápidos. É uma inversão completa: atinge as estruturas sócio-políticas (v.18) e as estruturas religiosas (v.19). A força destas palavras de Jesus de Nazaré é reforçada, ainda mais, pela introdução de uma pequena palavra: «hoje» (v.21) – Deus quer que a mudança comece já, aqui, na vida do dia-a-dia, dentro da História, em nós, e não apenas após a nossa morte ou nos finais dos tempos.

Eis o pórtico do «programa de vida» de Jesus, julgamento erguendo-se como júbilo para alguns (Mt 5:3; Lc 6:20b) e como abalo catastrófico (Lc 6:24) para outros (para estes, desencadeador do pior dos ódios contra Jesus; cf. Lc 4:28-29).



Freguesia da Sé_Porto

Desta memória de Jesus de Nazaré − que nos ficou nos textos bíblicos − não sobram traços de assistencialismo, caridade distributiva ou piedade caritativa: estas nunca poderão constituir a especificidade cristã! É usual interpretar os relatos de banquetes messiânicos de Jesus, ditos «relatos da multiplicação», − «Multiplicação dos pães e dos peixes» (Mt 14,13-21; 15,32-38; Mc 6,34-44; 8,1-9; Lc 9,10-17; Jo 6:1-15) − como suporte teológico para a pastoral soció-caritativa. Porém, concluir isso é dizer pouco acerca da Boa Nova que Jesus foi, realizou e proclamou. Qualquer leitura teológica baseada na aparência dos textos pode levar-nos a acentuar aspectos que estão ausentes da mensagem de Jesus (p. ex., Jesus nunca teorizou sobre o pecado,[2] pelo que não faz muito sentido acentuar a condição de pecador, sobretudo, numa linha de desvalorização ou culpabilização da natureza humana: ex - «Ó ditosa culpa que tão grande Redentor nos mereceu ter!», in Precónio Pascal; «As previsões, as previdências, as providências de Deus mediante nós podem não dar certo pela falta do homem pecador»; «Podemos estar em ausentes, não acudir no dia em que nos chamem. Podemos não responder ao apelo (excepto no Vale do Juízo), Terrível favor. Podemos fazer falta a Deus. Eis a situação em que ele se pôs, a má situação. Pôs-se no caso de ter necessidade de nós. Que imprudência! Que confiança!»; in Charles Péguy, O pórtico do mistério da segunda virtude; nos relatos da Multiplicação, verdadeiramente, não há lugar a nenhuma multiplicação, mas sim a distribuição / partilha, estado igualitário, comunhão partilhante de destino – «pois é de vida e de vida partilhada que as nossas vidas se alimentam», JT Mendonça, Pai Nosso que estais na terra).

Quando regressamos aos evangelhos constatamos que Jesus nunca se preocupou com a organização soció-caritativa (nunca fundou padarias ou IPSS’s…), mas os discípulos sim!, bem que o queriam: uma fé pobrezinha tende rapidamente a verter-se num programazinho! (Lc 9:12) «Reparando que uma grande multidão viera ter com Ele, Jesus disse então a Filipe: «Onde havemos de comprar pão para esta gente comer?» [Jesus] Dizia isto para o pôr à prova» (Jo 6:4). Jesus era muito malandro…

Jesus nunca fala da pobreza, mas de «acolhimento e libertação dos pobres» (Lc 9:11: «Jesus acolheu-as [as multidões de pobres] e pôs-se a falar-lhes do Reino de Deus, curando os que necessitavam.»), mas os discípulos só pensavam em organizar o projecto de Jesus segundo um modelo empreendedor / empresarial: «Tiago e João, filhos de Zebedeu, aproximaram-se dele e disseram: «Mestre, queremos que nos faças o que te pedimos.» Disse-lhes: «Que quereis que vos faça?» Eles disseram: «Concede-nos que, na tua glória, nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda.» (Mc 10:35-37)

A Boa Nova de Jesus não é remendar o sistema, mas proclamar: arrependei-vos (‘metanoite’) e acreditai na Boa Nova.»! Assentai alicerces novos! («Depois de João ter sido preso, Jesus foi para a Galileia, e proclamava o Evangelho de Deus, dizendo: «Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo: arrependei-vos e acreditai no Evangelho.», cf. Mc 1:14-15)

Metanoia!, quer dizer, mudai de 180º a vossa vida. Virai do avesso os vossos critérios, reestruturais-vos de alto a baixo!

O anúncio de Jesus traz colado a si uma denúncia estrutural que desestabiliza. Uma denúncia estrutural e não piedosa, não religiosa. Assistencialismo em Zaqueu? Como? Zaqueu (Lc 19) virou a sua vida do avesso. Zaqueu foi contra o que a Lei mandava; Zaqueu rebentou com a Lei divina (Ex 22,3.6; Lv 5,21-24; Nm 5,6-7). Com o seu gesto, Zaqueu deixou em maus lençóis o assistencialismo. Mais uma vez, não podemos fundamentar, neste relato, a actividade soció-caritativa como actividade cristã específica.

Portanto, se é verdade que todo o tipo de actividade assistencial é útil (nem sequer se discute a sua utilidade ou premência!), para os cristãos isso será sempre inespecífico. O Banco Alimentar contra a Fome, a Caritas, as IPSS’s, revista CAIS, a sopa dos pobres, peditórios e tômbolas, dezenas e dezenas de iniciativas movidas por centenas de voluntários extraordinariamente generosos que dão o melhor de si para aliviar o sofrimento das vítimas dum sistema político perverso, tudo isso será sempre «pôr remendo novo em pano velho». (Mt 9:16) De fora fica o Micro crédito, pois é um meio-termo entre a dádiva totalmente gratuita e o crédito bancário institucional (portanto, menos especificamente cristão, ainda). De fora ficam, também, afirmações como «para os cristãos um estilo de vida frugal testemunha melhor do que mil palavras a Fé em Deus» (J T Mendonça, Pai Nosso que estás na terra); e fica de fora pela ambiguidade que encerra e por ficar aquém da proclamação de Jesus na sinagoga de Nazaré.

É importante – urgentíssimo! – confrontar todas as iniciativas ditas de «responsabilidade social» (estatais e empresariais) com a mensagem de Jesus. Aos cristãos, sobretudo, impõe-se um juízo crítico sobre essa realidade que, à nossa volta, cresce como cogumelos. Como por exemplo: é compatível com o evangelho acções de ‘solidariedade social’ por parte de empresas que cometem as mais escandalosas injustiças em matéria de contratação laboral ou praticam fuga ao fisco transferindo lucros para offshores? É compatível com o evangelho de Jesus as dádivas (em serviços, géneros ou dinheiro) à Igreja Católica por parte de empresas que buscam nisso publicidade, prestígio, mas nunca repartição social de todos os seus lucros? (Mt 19:21-26; Lc 16:27)


Av. da Ponte_Porto


À procura dum paradigma

Diante do sofrimento monstruoso de que os povos foram vítimas nos últimos sessenta anos, surgiu, na teologia, a necessidade de encontrar uma categoria que reunisse em si esmagamento (Kenosis) e salvação em Deus. Os teólogos, da América Latina, «Ellacuría e Sobrino consideram que o «Servo de Yahvé» é a categoria bíblica mais adequada para interpretar teologicamente a realidade dos povos crucificados. Essa figura teológica proporciona uma «soteriologia histórica» pessoal e colectiva. O Servo de Yahvé, dos Cantos de Isaías, é eleito para instaurar o direito e a justiça nas nações [Is 42:1.4.6] e para trazer a salvação; é luz das nações [Is 42:6; 49:6]; carrega com os crimes humanos, «embora não tenha cometido crime algum, nem praticado qualquer fraude.» [Is 53:9] (Juan José Tamayo, Hacia la comunidad_5, Trotta, 20042, 177)

A alegria cristã e a esperança cristã, face à monstruosidade da injustiça mundialmente globalizada, só podem ser alicerçadas na alegria e na esperança do Servo de Yahvé, aquele que carregou com as vítimas, pois só nele se casam vitimização violenta, clamor e escuta por parte de Deus:

«O meu servo ficará satisfeito com a experiência que teve. Ele, o justo, justificará a muitos, porque carregou com o crime deles. Por isso, ser-lhe-á dada uma multidão como herança, há-de receber muita gente como despojos» (Is 53:11-12)

Trata-se, de facto, duma relação cultual nova, duma nova teo-logia. «Por isso, ao entrar no mundo, Cristo diz [a Deus]: ‘Não quiseste nem te agradaram sacrifícios, oferendas e holocaustos pelos pecados − e, no entanto, eram oferecidos segundo a Lei.  Disse em seguida: Eis que venho para fazer a tua vontade. Suprime, assim, o primeiro culto, para instaurar o segundo». (Heb 10:5-9)

O mesmo diálogo, que leva a uma revolução teológica, é agora entre Jesus de Nazaré e um escriba: «Amar o próximo como a si mesmo vale mais do que todos os holocaustos e todos os sacrifícios [todos os actos religiosos].» Vendo que ele [o escriba] respondera com sabedoria, Jesus disse: «Não estás longe do Reino de Deus.» (Mc 12:33-34)

«Fazer a vontade de Deus» é retomar o espírito dos profetas, reclamar pelo direito e pela justiça. «O verdadeiro discípulo (Lc 6,39-42; 13,25-27) - «Nem todo o que [rezar muito] me diz: ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino do Céu, mas sim aquele que faz a vontade de meu Pai que está no Céu. Muitos me dirão naquele dia: ‘Senhor, Senhor, não foi em teu nome que profetizámos, em teu nome que expulsámos os demónios e em teu nome que fizemos muitos milagres?’ E, então, dir-lhes-ei: ‘Nunca vos conheci; afastai-vos de mim, vós que praticais a iniquidade.’» (Mt 6:21)

Eis em que consiste «o segundo culto» que agrada a Jesus de Nazaré: não é inaugurar mais espaços de oração, mas praticar a justiça, retomar o espírito dos Profetas. (Mt 5:23-24)

«Em seguida [o Rei] dirá aos da esquerda: ‘Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, que está preparado para o diabo e para os seus anjos! Porque tive fome e não me destes de comer, tive sede e não me destes de beber, era peregrino e não me recolhestes, estava nu e não me vestistes, doente e na prisão e não fostes visitar-me.’ Por sua vez, eles perguntarão: ‘Quando foi que te vimos com fome, ou com sede, ou peregrino, ou nu, ou doente, ou na prisão, e não te socorremos?’ Ele responderá, então: ‘Em verdade vos digo: Sempre que deixastes de fazer isto a um destes mais pequenos, foi a mim que o deixastes de fazer.’ Estes irão para o suplício eterno, e os justos, para a vida eterna.» (Mt 25:41-46)

A vontade do Pai é laica e não piedosa. A vontade do Pai é que identifiquemos a transcendência que está encerrada na economia e nas políticas que visam a eliminação da aflição económica: não ter emprego, não ter dinheiro para comer, beber, vestir, ter saúde, ter casa e pagar as dívidas que levam (naquele tempo e hoje…) à cadeia (Mt 25:41-46). A vontade do Pai é uma política activa: «paz, pão, habitação, saúde, educação».

Dois aspectos.

1.   No rosto desfigurado do Cristo crucificado, os discípulos reconheceram a actualização d’O Servo de Yahvé:  «Eu, porém, sou um verme e não um homem, o opróbrio dos homens e o desprezo da plebe. Todos os que me vêem escarnecem de mim; franzem o sobrolho e abanam a cabeça [“como foi possível ter-se chegado tão baixo…!?”].» (Sl 22:7-8)

2.   «Morte de Jesus (Mt 27,45-56; Lc 23,44-49; Jo 19,25.28-30) - Ao chegar o meio-dia, fez-se trevas por toda a terra, até às três da tarde. E às três da tarde, Jesus exclamou em alta voz: «Eloí, Eloí, lemá sabachtáni?», que quer dizer: Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?» (Mc 15:33-34; Salmo 22:7b).

A imagem de repugnante desfiguração (‘viram a cabeça para o lado’) e de absoluto abandono (‘Meu Deus, meu Deus…’) que a vítima dá de si pode parecer uma figura de estilo literário (uma perífrase?), mas não é. «O opróbrio dos homens e o desprezo da plebe», a que se refere o Salmo 22 e que está posto na boca de Jesus crucificado (Sl 22:7b), é uma radiografia social, é um retrato realista da condição dos marginalizados, dos ‘anawim (dos pobres). Não se trata de um comentário moral.[3] Iguais expressões se encontram em Isaías: 49:7; 52:14; 53:3. A prova de que é assim está no versículo 25, referindo claramente que se refere aos ‘anawim: «Pois Ele não desprezou nem desdenhou a aflição do pobre, nem desviou dele a sua face; mas ouviu-o, quando lhe pediu socorro.» (Sl 22:25) Ainda dentro do mesmo Salmo 22, o v. 27 vem reforçar, digamos assim, a Bem-aventurança divina: «Os pobres comerão e ficarão saciados» [v.27] (este versículo recorda o «Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus. Felizes vós, os que agora tendes fome, porque sereis saciados.», cf. Lc 6:21).

«Neste verso [o poeta] pode ter-se inspirado no Livro da Sabedoria (2:12-20) quando coloca na boca dos dissolutos as seguintes palavras contra o justo: “Armemos laços ao justo porque nos incomoda, e se opõe à nossa forma de actuar. Censura-nos as transgressões da Lei, (…). Provemo-lo com ultrajes e torturas para avaliar da sua paciência e comprovar a sua resistência. Condenemo-lo a uma morte infame, pois, segundo ele diz, Deus o protegerá.”» (L. A. Schökel, o. cit.)

O Servo de Yahvé regressou no rosto do Cristo crucificado. Este revive no rosto dos marginalizados da nossa cidade. O mesmo aspecto repugnante têm, hoje, os “arrumadores” das nossas ruas (toxicodependentes, alcoólicos, etc.). A miséria social repugna. Facilmente desencadeia violência (cf, crime cometido pelos jovens das Oficinas de S. José, Porto, sobre um travesti marginal). Monsenhor Óscar Romero dizia: «Todo o que estorva é eliminado».

Trav. de Cedofeita_Porto


As multidões de pobres maltrapilhos que acorriam atrás de Jesus para o ouvir eram repugnantes, eram nojentas. Para os evangelhos, Jesus aceitou partilhar o seu destino com publicanos, pecadores, prostitutas, pequenos (Mc 9:42; Mt 10:42; 18:10.14; nunca traduzir por ‘crianças’), ‘pequeninos’ ou ‘os mais pequenos’ (Mt 25:40.45; nunca traduzir por ‘criancinhas’) e com os simples (por oposição aos sábios e entendidos; Mt 11:25s). São gente que, socialmente, ou menosprezava a Thora (os Mandamentos de Deus) ou exercia profissões desprezadas (pastores, curtidores de peles, cambistas, cobradores de impostos, praticantes de jogos de azar ou fortuna, publicanos) ou eram ladrões e assassinos ou eram pessoas sem formação religiosa (era o caso dos discípulos de Jesus), sem sensibilidade piedosa e sem hábitos de culto religioso, atrasadas e incultas. Em suma, pessoas que eram apontadas a dedo, difamadas, pessoas para quem a porta da salvação de Deus estava fechada. [2Sam 5:6-10]

Onde está, hoje, o desfigurado Servo de Yahvé que repugna?
Conhecemos o seu paradeiro?
Acantonados nos nossos condomínios fechados, sabemos, nós, dos seus condomínios amuralhados?
Onde está, hoje, o «verme» (não) humano desfigurado?
Como identificar o rosto do «Crucificado» do século XXI, que mora na nossa cidade?


O específico cristão

O específico cristão que ofereça uma esperança-não-ópio (ancorada no coração da história da humanidade e não num céu adventicial qualquer: cinema, poesia, budismo, paisagem, arte, êxtase inefável, canto gregoriano, etc.) só pode ser uma comunidade de acolhimento (do pobre), de louvor e de partilha de destino! Sem esta condição, tudo aquilo é alienação. Nisto se resume o específico cristão.

1.   O específico cristão não é a Cruz, mas o crucificado, não é a memória dum acontecimento ocorrido há dois mil anos, mas a presença moribunda da vítima, hoje. No tríduo pascal, em vez de nos prostrarmos diante da Cruz deveríamos acolher e reverenciar os marginalizados da nossa sociedade – o primeiro lugar para a vítima (forma de denunciar e destruir/queimar, em holocausto, a cruz – em noite de Alelluia dever-se-ia fazer uma fogueira com a Cruz pascal…)!

2.   O específico cristão não é rezar, pedir graças a Deus, mas dar graças, louvar (palavras que estão na raiz da palavra ‘eucaristia’), ‘namorar em Deus’ na alegria da nossa fragilidade colectiva – em primeiro lugar o louvor numa simplicidade de ‘anawim, de vítima!

3.   O específico cristão é entrar no mundo dos ‘anawim, carregarmos as vítimas às costas, ser Simão de Cirene (Mt 27:32). «A melhor forma de nos solidarizarmos com as vítimas não é vê-las sofrer de longe e de fora, mas entrar no seu mundo, colocarmo-nos do seu lado, partilhar a sua morte e, em última instância, tornarmo-nos vítima. «Não há libertação do pecadodiz Jon Sobrinosem carregar com o pecado; não há erradicação da injustiça sem carregar com ela». Assim, não há libertação nem reabilitação das vítimas sem tornar-se vítima, como o fez o Servo de Yahvé, como o fez Jesus de Nazaré, como o próprio Deus fez. Tudo o mais é assistencialismo, paternalismo.» (Juan José Tamayo, Hacia la comunidad_5, Trotta, 20042, 177) – em primeiro lugar, partilhar (todo) o destino das vítimas.


A esperança cristã tem que ser palpável, sentida, vivida na verdade da comunhão realizada. Este é o drama da maior parte dos católicos em Portugal: suas vidas não são acolhidas pela Igreja; nas nossas celebrações reina o isolamento e o anonimato em matéria de partilha da intimidade; vive-se, não o amor, mas a simpatia com um reliquat de desconfiança; ‘vai-se a uma missa’ onde se sente a beleza do canto, a poesia da homilia e o êxtase da arte, onde se respira paz e consolo… mas a sós: quanto à vida de cada um, entra-se mudo e sai-se calado: ela não entra na partilha da palavra! (e ainda me querem convencer que a Missa é um ponto de chegada…). Não existem comunidades de acolhimento e partilha de destinos que coloquem o pobre no centro da sua vida: na verdade, depois da missa, rico e pobre ‘cada um come com os seus talheres’…, ouvem-se a si próprios.

Em 1Cor 11:33, Paulo exprime bem o que deve ser a comunhão eclesial: «Por isso, meus irmãos, quando vos reunirdes para comer, esperai uns pelos outros.» Esperamos pelo pobre para que a Ceia dominical comece? Esperamos pelo pobre para que a Ceia se prolongue depois da Ceia? Estamos – na vida quotidiana – lado-a-lado com o pobre? As nossas comunidades partilham os seus bens, fazem o real ou sonham um desejo?

«Nós não criamos o Reino de Deus. (…) mantemos [apenas] sempre aberta a esperança da vinda de Deus (…): “Maranatha”». (Edward Schillebeeckx, A identidade cristã: desafio e desafiada. A propósito da extrema proximidade do Deus não-experimentável, in «Deus no Século XXI e o Futuro do Cristianismo», coord. Anselmo Borges, Campo das Letras, 2007, 419)

O específico cristão é fazer com que não acabe o azeite na almotolia. É manter a lamparina acesa.

Eu não tenho dúvidas que a esperança e a alegria específicas que os cristãos em tempos de austeridade podem oferecer são a de se sentirem carregando-se uns aos outros em seus destinos de pobreza. «Cristo morreu como nasceu: extra-muros da cidade. Para enxergar a luz, o sol da Páscoa, é preciso saltar os muros». (Mensagem Pascal do bispo de Évreux, Jacques Gaillot, 1983)

Vizibilizar a esperança e assinalar um sentido cristão passa por acolher os frágeis e por partilhar o seu destino. Fazer nossa a causa dos pobres (caritas) confere Alegria ao Banquete do Reino (fides) e efectiva a Esperança (spe).

Esta é uma esperança e uma alegria específica, para hoje, palpável e bastante acessível, que se pode transformar em louvor.

Garanto que, a partir do pobre marginalizado (‘anawim), a solidão dos apartamentos se transforma em felicidade duradoura – para isso só é preciso tornar-nos pobres, também. «O pobre é o lugar eclesial da cristologia; fora dos pobres não há salvação» (Jon Sobrino), apenas problemas de consciência e boas intenções.

pb\Abril 2012



[1] ‘Cristo’, literalmente ‘ungido’. Por alguma razão esta designação aparece 7 vezes em Marcos, 16 em Mateus, 12 em Lucas e 19 em João. Ou seja, à medida que os testemunhos se vão afastando da pessoa de Jesus vão, ao mesmo tempo, carregando-o de atributos divinatórios, exaltatórios, criando distância entre nós e a figura daquele que «andou de lugar em lugar, fazendo o bem e curando todos os que eram oprimidos pelo diabo, porque Deus estava com Ele [Act 10:38] De todos os títulos, o «Profeta» e o «Filho do Homem» foram os que melhor acolhimento tiveram por parte de Jesus de Nazaré.
[2] Cf. Joachim Jeremias, Teología del nuevo testamento, Sígueme, Salamanca 20098, 139-144.
[3] Luis Alonso Schökel, Cecilia Carniti, Salmos I, EVD, 20083, 383.