Teólogo Peter Hünermann |
Uma análise da actual crise eclesial
- como Bento XVI lidou com o caso da Fraternidade Pio X
Artigo de Peter Hünermann
Bispo Fellay, cismático, da Fraternidade Pio X |
“O problema fundamental da questão actual
não reside no fato de que o trabalho foi realizado depressa e correndo, que um
velho cardeal torpe se encontrou desbordado, que as comunicações funcionaram
mal ou que estamos diante de um pontífice que tem a tendência de tomar decisões
solitárias. [...] Tampouco se trata do anti-semitismo do bispo Williamson, por mais
desleal e repugnante que seja. O núcleo do problema é de natureza teológica;
referia-se à concepção da igreja em seus aspectos tanto institucionais como
éticos”, escreve Peter
Hünermann em artigo publicado no sítio espanhol Religión Digital, 5-05-2009. A tradução é
do Cepat.
Peter Hünermann é professor
emérito de Teologia
Dogmática na Universidade de Tübingen e presidente de honra da Associação Europeia de Teologia
Católica.
As informações sobre a crise que
sacode a Igreja católica por conta da suspensão da
excomunhão dos quatro bispos da Fraternidade Pio X,
fundada pelo arcebispo Marcel
Lefebvre, se atropelaram umas às outras ao longo das últimas
semanas. Os relatórios críticos relativos a alguns detalhes do procedimento e
as pessoas implicadas eram de uma tal natureza que comprometiam seriamente o
Vaticano. As tomadas de postura de bispos e de Conferências Episcopais, a exasperação
de muitos cristãos, as reacções judaicas como consequência da graça concedida a
um negador do Holocausto, são indícios da profundidade da crise, enquanto que a
alegria que saudava um gesto de reconciliação por parte do Papa ressoava de uma
maneira estranha. A aspereza e a diversidade das reacções reclamam
uma análise objectiva para compreender algo da situação e esclarecer o que está
em jogo.
Quando um bispo católico procede,
sem mandato do Papa,
à ordenação episcopal de qualquer pessoa, ordenante e ordenado são punidos com a excomunhão.
Esta sanção retira dos interessados a possibilidade de assegurar qualquer
ministério na celebração da missa ou de outros ofícios litúrgicos, a faculdade
de receber ou administrar sacramentos ou sacramentais e, por último, o direito
de obter ou exercer serviços, funções ou tarefas eclesiásticas. A razão
teológica destas medidas corresponde à unidade institucional da Igreja,
expressão fundamental de sua unidade na fé e de seu envio simultâneo a todos os
povos.
Suspender a excomunhão pressupõe,
como condição inicial, um ato sincero de arrependimento e de conversão por
parte daquele que foi ordenado de maneira válida, porém ilícita. Esta
manifestação de contrição é essencial como primeiro passo (cf.
os cânones 1371, 1258, 1347 e 1341 do Código
de Direito Canônico
de 1983). Se estas condições deste primeiro passo foram cumpridas, pode
seguir-se um segundo passo, a saber, a suspensão da excomunhão. Esta decisão conduz a uma
negociação destinada a determinar a nova situação do interessado
na Igreja. Dito de outra maneira, a suspensão da excomunhão significa que a
pessoa é
reconhecida como um interlocutor
que, de volta à Igreja, se arrepende abertamente de seu delito. À espera do
final da negociação, o bispo ilicitamente ordenado permanece “suspenso”, isto
é, privado do exercício dos direitos normalmente reconhecidos a um bispo. Não
obstante, é recebido na comunhão eclesial.
Raízes do conflito
Sabe-se por um decreto de 21 de Janeiro
de 2009 emanado da Congregação
dos Bispos – que havia ditado o decreto da excomunhão – que,
baseado em uma carta de 15 de Dezembro de 2008 dirigida ao cardeal Darío Castrillón Hoyos,
presidente da Comissão
Pontifícia Ecclesia Dei (especialmente competente para o caso Lefebvre), Bernard Fellay, o sucessor de Lefebvre, havia
solicitado, para si e para os outros três bispos excomungados, a suspensão da
sanção pronunciada em 1 de Julho de 1988. O decreto cita a carta em questão:
“Estamos sempre animados pela firme
vontade de permanecer católicos e de colocar todas as nossas forças a serviço
da Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo, que é a Igreja católica romana.
Aceitamos seus ensinamentos em um espírito filial. Cremos firmemente no primado
de Pedro
assim como em todas as suas prerrogativas e é por esta razão que a situação
atual nos faz sofrer muito”.
O decreto afirma, na sequência, que o Papa
decidiu, por conta desta carta e indubitavelmente de contactos
anteriores, suspender
a sanção da excomunhão e de “examinar a fundo” as questões
pendentes, a fim de chegar em breve a uma “solução completa e satisfatória do
problema inicial”.
O texto expressa a esperança de que,
graças às conversas, “poderá realizar-se a comunhão plena com a Igreja”.
Na realidade, as discussões internas
na Igreja haviam começado em 1970. O Vaticano
II havia tomado uma série de decisões sobre a liberdade
religiosa, o ecumenismo, o diálogo com outras religiões ou,
inclusive, a
relação papa-bispos (palavra chave “colegialidade”) e havia posto o
acento sobre temas tais como o sacerdócio comum dos fiéis. O arcebispo Lefebvre
havia participado do Concílio com o grupo de bispos conservadores. No final das
deliberações, havia aprovado o Concílio e seus documentos. Mas a partir de 1970
rechaçou, unido a
outros tradicionalistas, como heréticos os textos do Vaticano II
favoráveis ao ecumenismo, ao diálogo inter-religioso, assim como às liberdades
de consciência e de religião.
Depois de várias entrevistas
infrutíferas, o arcebispo foi destituído de seu cargo pelo Papa Paulo VI. As instâncias romanas não
deixaram, contudo, de prestar atenção aos seus feitos e gestos. Por um indulto
da Congregação dos
Ritos, fechado em 1984,
a Fraternidade Pio X
foi autorizada, sob certas condições, a celebrar a missa segundo o rito tridentino.
Esperava-se, em vão, poder integrar com isso a Fraternidade e o próprio Lefebvre. Houve
ainda outras tentativas de reunificação.
Com este decreto, João Paulo II
publicou um Motu
Proprio em que expunha os motivos das excomunhões. Nele se
dizia: “Pode-se descobrir a razão deste acto cismático em uma concepção
imperfeita e contraditória em si da própria tradição”. Depois o Papa exortava os
católicos a permanecer fiéis à tradição eclesial e a meditar sobre a maneira
como esta se desenvolve “desde o Concílio
de Nicéia até o Vaticano
II”. A ordenação episcopal não autorizada leva ao cisma, como
indica o decreto da Congregação
dos Bispos. João
Paulo II, por sua vez, precisa o carácter herético do cisma. Os
dois aspectos são importantes.
Por que é que a reforma litúrgica joga um papel neste
conflito?
A reforma litúrgica empreendida pelo Vaticano II é um
sinal de desenvolvimento vivo da tradição e de sua purificação contínua. A
Igreja, por outro lado, se aplica a si mesma a máxima lex credendi, lex orandi:
a
regra da fé é a regra da oração. Mas os pontos doutrinais
incriminados por Lefebvre
foram, de modo totalmente evidente, incorporados à renovação conciliar da
liturgia. Dois exemplos mostram-no claramente. Na antiga liturgia, uma prece da
oração da Sexta-feira Santa rezava assim: “Rezemos
pelos hereges e cismáticos, a fim de que o Senhor Nosso Deus se digne arrancá-los de todos
os seus erros e conduzi-los ao seio da nossa santa mãe a Igreja católica e
apostólica”.
Era assim que se rezava depois do Concílio de Trento
pelos protestantes
e ortodoxos. Depois do Vaticano II, esta
prece fica assim: “Rezemos por todos os nossos irmãos e irmãs que crêem em Jesus Cristo,
a fim de que o Senhor Nosso Deus os conduza pelo caminho da verdade e os
congregue na unidade da santa Igreja”. Aqui há algo mais que uma
diferença de estilo. Parte-se da fé comum e se expressa o interesse comum pela
unidade da fé. Na oração, a unidade plena é pedida como um dom de Deus.
O segundo exemplo diz respeito à oração da
Sexta-feira Santa pelos judeus. O texto antigo dizia: “Oremus et pro
perfidis Judaeis, a fim de que o Senhor Nosso Deus tire o véu de seus corações
e que reconheçam Jesus Cristo, nosso Senhor”. A oração que continuava esta munição
estava redigida assim: “Deus eterno e todo-poderoso, Tu tampouco excluis da Tua
misericórdia os judeus, que recusam crer em Ti. Escuta as súplicas que Te
apresentamos por causa da cegueira deste povo, a fim de que reconheçam a luz da
Tua verdade [...] e sejam arrancados do poder das trevas”. A nova liturgia se expressa nestes termos: “Oremos também pelos judeus, aos quais o
Senhor falou em primeiro lugar. Que os guarde na fidelidade à sua Aliança e no
amor de seu Nome, a fim de que alcancem a meta à qual são destinados por seu
desígnio de salvação”. São apenas dois exemplos. Ilustram o facto de
que a reforma litúrgica não se reduz a algumas modificações rituais, mas que
introduz inovações também em relação ao conteúdo.
bispo Fellay |
Contexto político e ideológico
As raízes políticas da actual
situação de crise se misturam com os argumentos teológicos dirigidos contra a
liberdade religiosa, a liberdade de consciência, o diálogo inter-religioso e o
ecumenismo. O próprio Lefebvre, com a sua Fraternidade, se situava
claramente na dependência da Acção Francesa, e isto desde os anos
1970. A Acção Francesa dizia-se católica, ao passo
que seus membros dirigentes eram ateus. Combatiam encarniçadamente a República
francesa. Em 1926, esta organização de
leigos pretensamente católica, à qual pertenciam também sacerdotes, foi condenada por Roma, mediando a intervenção o arcebispo
de Bordeaux.
No começo de 1939, depois da eleição
de Pio XII,
a Ação Francesa
se submeteu à Igreja, antes de se alienar, durante a ocupação alemã, sob as
bandeiras do marechal
Pétain.
Foi dissolvida depois da Libertação de 1945.
Os laços de Lefebvre com esta
ideologia se tornaram manifestos quando introduziu, para os tradicionalistas
franceses, uma peregrinação anual à tumba de Pétain. É assim que numerosos antigos partidários de Pétain e também os companheiros de Jean-Marie Le Pen entraram em
contato com a Fraternidade.
Touvier, carranca de proa das deportações de judeus na França, condenado pela colaboração com a Gestapo e as SS, foi enterrado (depois
de ter morrido em prisão) e gratificado com um vibrante elogio por um sacerdote
lefebvrista de Paris, Philippe
Laguérie. Este
mesmo sacerdote, especialista em ocupações de igrejas parisienses, foi, em
2002, sacerdote em Bordeaux, onde se produziu novamente a ocupação de uma
igreja. Tendo
criticado os métodos usados no Seminário de Ecône, Laguérie entrou estrepitosamente em
conflito com Bernard
Fellay, seu superior. Esse é o motivo de sua exclusão da Fraternidade.
Com alguns simpatizantes da Fraternidade Pio X, Laguérie reconciliou-se com Roma em 8 de Setembro de 2006
e foi nomeado imediatamente superior de uma sociedade de vida apostólica de
direito pontifício fundada por ele, o Instituto Bom Pastor.
Esta sociedade, que dispõe de um estabelecimento em Roma, abriu em
seguida um Seminário tradicionalista, e outro no Chile (que teve que
fechar as suas portas).
Em 1988, quando já se podia prever
que Lefebvre
chegaria ao cisma ao ordenar bispos, um
pequeno grupo de seus partidários decidiu ir a Roma e entabular conversações, para saber em que condições
poderiam permanecer em comunhão com Roma. Seus interlocutores eram o Prefeito da
Congregação da Fé, Joseph Ratzinger, e o ex-abade primaz dos Beneditinos, o
cardeal Augustin Mayer,
que estavam na época encarregados dos contatos com o grupo de Lefebvre. A
declaração que os dissidentes hostis ao cisma assinaram compreendia os cinco
pontos seguintes:
1. Uma promessa de fidelidade à Igreja católica e ao Papa
enquanto chefe do Colégio Episcopal.
2. A decisão de aceitar
o parágrafo 25 (sobre a função do ensinamento dos bispos) da Constituição Dogmática Lumen Gentium do Vaticano
II.
3. A obrigação – com a promessa de
evitar qualquer polémica – de fazer um esforço de
estudo e de comunicação com a Santa Sé a propósito dos ensinamentos do Vaticano
II, assim como das reformas ulteriores que pareciam,
aos assinantes, dificilmente conciliáveis com a tradição.
4. A decisão de reconhecer
a validade da missa e dos sacramentos celebrados com a intenção
requerida e conforme os ritos das edições oficiais promulgadas por Paulo VI e João Paulo II.
5. A promessa de respeitar a disciplina geral da Igreja,
assim como as leis eclesiásticas, especialmente as contidas no Código de Direito Canônico
de 1983, sem prejuízo da disciplina particular outorgada à Fraternidade.
Baseado nesta declaração, Roma
autorizou a fundação da Fraternidade São Pedro
como sociedade de direito pontifício, assim como a abertura de um Seminário em Wigratzbad/Allgäu (Alemanha). O
cardeal Ratzinger
visitou este Seminário, mas a Conferência
Episcopal alemã, que não havia sido informada sobre a
declaração de fidelidade de 1988, rechaçou por unanimidade incardinar os
sacerdotes formados nele. O documento de apresentação oficial da história da Fraternidade São Pedro
cita, é verdade, o Motu Proprio “Ecclesia Dei”
e aprova a concepção conciliar da tradição que nele é mencionada.
Não obstante, nem a fundação da Fraternidade São Pedro
(18 de Julho de 1988) nem sua ereção canônica (18 de Outubro seguinte) como “sociedade clerical de vida apostólica de direito
pontifício” se viram acompanhadas de um reconhecimento formal e
público do Vaticano II.
E, assim, se foram criando fundações análogas sobre esta mesma base.
B. Fellay & Papa Bento XVI |
A evolução depois da eleição de Bento XVI
No começo do verão de 2005,
aconteceu uma primeira conversação entre Bernard
Fellay e o Papa
recentemente eleito. É muito verosímil que Fellay tenha colocado as condições às
quais, segundo ele, devia ficar subordinada uma reconciliação de Roma com a Fraternidade Pio X.
Com efeito, num comunicado de 8 de Setembro de 2006 se poder ler:
“A Fraternidade
Pio X lembra que não poderá aceitar uma solução em matéria de
comunhão eclesial que confine a missa tridentina a um estatuto particular. É
necessário que a missa da tradição duas vezes milenar goze na Igreja de um
direito de cidadania pleno e completo. (Esta missa) não é apenas um privilégio reservado
a alguns; é um direito de todos os sacerdotes e de todos os fiéis da Igreja universal.
Eis aqui o motivo pelo qual a Fraternidade
Pio X convida os sacerdotes e fiéis a congregar-se em uma
campanha de oração”.
Em 2006, foi aprovado pelo Vaticano
o Instituto Bom Pastor,
com Laguérie
à sua frente. O decreto romano de ereção autoriza a nova sociedade a utilizar o
missal tridentino, a versão tridentina do pontifical romano para as ordenações
sacerdotais e o breviário romano (na edição de 1962), tudo isto a título de rite propre e não apenas como concessão. Além disso, os
estatutos do Instituto aprovados por Roma estipulam que a sociedade tem a
obrigação de “trabalhar na definição da autêntica
doutrina da Igreja”.
Em um comunicado oficial, o Superior Geral
precisa: “Cada membro fundador declara pessoalmente reconhecer o magistério
autêntico da Santa Sé
em inteira fidelidade ao magistério infalível da Igreja” (Estatutos, 11,62). Mais ainda:
os membros do Instituto estão obrigados, enquanto diz respeito a eles, a
“permitir à Santa Sé,
através de uma crítica série e construtiva do Vaticano II, propor uma interpretação autêntica deste”.
Convém ter presente o espírito desta
“pré-história” se se quiser compreender a carta pela qual Fellay tentou obter
a suspensão da excomunhão, carta que é citada no decreto da Congregação dos Bispos
que pronuncia esta sentença em 21 de Janeiro de 2009. No dia 24 de Janeiro, Fellay fez saber aos seus subordinados que,
nesta carta ao cardeal
Castrillón Hoyos,
havia escrito entre outras coisas o seguinte:
“Estamos dispostos a escrever
o Credo com o nosso sangue, a firmar o juramento antimodernista e a profissão de fé de Pio
V. Aceitamos e fazemos
nossos todos os Concílios até o Vaticano
II, em relação ao qual expressamos reservas. Este Concílio queria ser um Concílio que se distinguisse dos
outros (ver os discursos dos Papas Paulo
VI e João
Paulo II). Em tudo isto, estamos convencidos de permanecer
fiéis à linha de conduta que nos foi traçada por nosso fundador, Mons. Marcel Lefebvre,
e esperamos que seja logo reabilitado”.
Fraternidade Pio X |
A confissão de fé de Pio V resume
brevemente os ensinamentos do Concílio
de Trento. Este texto não esgota evidentemente a perspectiva ecuménica
do Vaticano II,
posto que acaba com a afirmação de que aquele que prestar juramento de apoio a
este formulário “condena, rechaça e cobre de anátema todas as heresias que
foram condenadas, rechaçadas e cobertas de anátema pela Igreja”.
Ao considerar os propósitos tão
peremptórios que figuram na carta de Fellay
pedindo a suspensão da excomunhão, é preciso perguntar como é que o Papa e os cardeais da
cúria implicados neste assunto puderam crer que ali havia a expressão de um ato sincero de
arrependimento.
Esta questão brota quando se tem
conhecimento de outro texto assinado por Fellay.
Neste órgão de informação da Fraternidade
excomungada (2009, n. 2) se insere a carta pela qual Fellay torna público
a suspensão da excomunhão. Ali se lê:
“Expressamos ao santo Padre a nossa
gratidão filial por esta decisão que, para além da Fraternidade Sacerdotal São Pio X,
será um benefício para toda a Igreja. Nossa Fraternidade deseja poder ajudar cada
vez mais o Papa a usar os remédios necessários para superar uma crise que não
tem comparação no passado e que sacode violentamente no presente o mundo
católico. João Paulo
II havia qualificado esta situação de apostasia
silenciosa. Para além desta gratidão ao santo Padre e a todos
aqueles que ajudaram a realizar este corajoso
gesto, nos alegramos com o fato de que o decreto de 21 de Janeiro
declare necessárias conversações com a Santa Sé – conversações
que permitem à Fraternidade
Sacerdotal expor as razões doutrinais de fundo que, segundo
ela, constituem a fonte das dificuldades da Igreja”.
O problema teológico de fundo
A suspensão da excomunhão só pode
vir depois de uma súplica expressa e penetrada de contrição. Mas, uma vez mais,
Fellay
confirma a postura de Lefebvre
ao afirmar, alto e bom som, que ele está disposto a assinar com seu próprio sangue o
juramento antimodernista e a confissão de Pio V. O sentido desta frase
devia estar claro para todos, tanto para o Papa como para os cardeais
envolvidos. As conversações
que se arrastam desde 1970 não param de girar em torno dos mesmos
pontos. Os outros textos de Fellay
que citamos e cujo humor é idêntico antes e depois da suspensão da excomunhão,
confirmam que não se produziu nenhuma mudança de nenhum tipo neste campo. A
aprovação prévia por parte do Papa dos estatutos do Instituto Bom Pastor
aparecia como um prelúdio,
que agora se estende à Fraternidade Pio X.
Assim, a suspensão da excomunhão
representa um ato que equivale a um erro de governo (Amtsfehler, faute de gouvernement). Esta decisão concede aos
bispos da Fraternidade Pio X, de maneira
deliberada e sem que se tenham cumprido as condições canónicas, a comunhão
eclesial e o fim do cisma, mesmo que o estatuto que teriam na Igreja
não tenha sido previamente determinado. Este erro de
governo torna-se mais grave pelo fato de que significa uma dispensa no que se refere à
recepção global do Vaticano II. A não aceitação de alguns
ensinamentos decisivos do Concílio fica expressa claramente na petição de Fellay. Mas este
erro agravado contradiz a fé e os costumes, fides et mores, cuja salvaguarda foi confiada
ao sucessor de Pedro
de uma maneira especial pela Igreja universal.
Coloca-se, pois, a questão de saber se um Papa pode dispensar-se de um
Concílio legitimamente convocado, de tal modo que este Concílio
pudesse ser recebido parcialmente, excluindo alguns enunciados essenciais. A
resposta é um
“não” categórico. O Papa
e os cardeais estão obrigados por um Concílio legítimo e recebido assim como
por suas decisões, do mesmo modo que cada fiel. Os bispos Lefebvre e Fellay não deixaram
na sombra este ou aquele aspecto secundário do Concílio. Para eles, não se
tratava nem se trata de detalhes na redação dos textos conciliares, mas de
orientações centrais quanto à inteligência da fé e à compreensão da Igreja
assim como o Concílio as propõem a todos os católicos.
As páginas oficiais da internet da Fraternidade Pio X
repetem, inclusive por estes dias, que a liberdade religiosa e alguns outros
ensinamentos do Vaticano II contradizem o Syllabus de Pio IX. A mesma
reprovação alcança o decreto conciliar sobre o ecumenismo: “Os protestantes e outros não-católicos não
têm nenhuma fé” (mensagem da Fraternidade
Pio X citada pelo The Tablet,
31 de Janeiro de 2009). Vê-se que crédito se pode dar ao testemunho de Fellay a
propósito do juramento antimodernista e da confissão de fé tridentina.
A obra doutrinal do Vaticano II
compreende, entre outros temas, a revelação divina em suas etapas e formas históricas, a
Escritura e sua interpretação, as perspectivas que derivam do mistério da
Igreja e fundam o ecumenismo e o povo de Deus, as relações com as outras
religiões e com a sociedade actual. Estes diversos ensinamentos não
foram formulados em definições dogmáticas formais. Por outro lado, não se pode,
na minha opinião, resumir uma problemática tão elaborada e tão complexa em dez
ou quinze cânones atravessados de anátemas. Trata-se, contudo, de asserções
essenciais, que são indispensáveis para a Igreja na situação histórica da
modernidade.
Estes textos normativos foram
longamente debatidos; foram discutidos em função de possíveis objecções e
dificuldades. Os documentos do Concílio expressam o consenso eclesial surgido
da invocação ao Espírito, da escuta da Escritura, da eucaristia, da oração e da
reflexão dos padres conciliares. Levada a um tal consenso, a Igreja crê desde
as origens estar em situação de escutar o que o Espírito diz às comunidades. A
importância central destes temas aparece de maneira clara desde que se tenta
retirá-los da vida da Igreja de hoje. Pode um Papa
dispensar da adesão a palavras de fé tão fundamentais, com vistas a suspender
uma excomunhão contraída por causa de heresia? Não.
A estas questões essenciais
concernentes à fé se acrescenta aqui um aspecto que está intimamente ligado a
estas e que se refere aos costumes. Com efeito, não é casualidade que se
encontre entre os quatro bispos excomungados um anti-semita que nega o Holocausto,
notoriamente conhecido como tal há anos. Uma pessoa que nega ou minimiza de algum modo a empresa monstruosa que foi
o genocídio nazista do povo judeu, essa pessoa é um pecador público que não pode ser
admitido ao sacramento da penitência sem ter dado sinais claros,
constatáveis em sua vida, de arrependimento e de conversão, sinais que poderiam
ser considerados em uma eventual suspensão da excomunhão. Lamentos enunciados simplesmente com a
ponta dos lábios não são suficientes.
Quando o cardeal Secretário de
Estado exige, no dia 4 de Fevereiro de 2009, a Richard Williamson uma
retratação rápida para torná-lo beneficiário da suspensão da excomunhão, parece
uma farsa e uma desqualificação pública da disciplina penitencial.
O resultado é desastroso. Esta suspensão da excomunhão
representa um
exercício da função episcopal que ofende e contradiz gravemente a fé e os costumes.
Na minha opinião, esta decisão é nula e sem valor, mesmo que
não seja mais que em função do cânon 126, assim redigido: “É nulo o ato
realizado por ignorância ou erro quando afecta o que constitui sua substância
ou recai sobre uma condição sine qua non”.
O editorial do L’Osservatore Romano de 26/27 de Janeiro
de 2009 queixa-se amargamente dos ataques injustificados contra o Papa e afirma
que a decisão pontifícia estava inspirada pelo “novo estilo” que há na Igreja e
que, desejado pelo Concílio,
prefere a “medicina da misericórdia” à condenação. À
vista dos fatos, se pode inscrever tal discurso na conta da ingenuidade.
O próprio Papa
não parece medir o alcance da sua maneira de agir tal como se observa depois de
longos anos, e tal como ela culmina em sua mais recente decisão: na audiência geral de 29 de Janeiro de 2009 declarava ter
agido por misericórdia ao mesmo tempo que afirmava que detestava o
Holocausto...
Seminário de Ecône_Fraternidade Pio X |
Hermenêutica do Vaticano II
O problema fundamental da causa actual
não reside no fato de que o trabalho foi realizado depressa e correndo,
que um velho
cardeal torpe se encontrou desbordado, que as comunicações funcionaram mal
ou que estamos diante de um pontífice que tem a tendência de tomar decisões
solitárias. Tudo isto é evidentemente deplorável, posto que aqui há
opções de grande alcance e cheias de consequências. Mas o essencial não está aí.
Tampouco se trata do anti-semitismo do bispo
Williamson, por mais desleal e repugnante que seja. O núcleo do problema é de natureza teológica; referia-se à concepção da igreja
em seus aspectos tanto institucionais como éticos.
Da maneira como exerceu seu mandato, o Papa quebrantou
muito profundamente a confiança dos fiéis no ministério de Pedro enquanto testemunha da fé e dos
costumes. Ao mesmo tempo, a sua decisão expõe a Igreja ao perigo de contar, nas
suas fileiras, com bispos e sacerdotes (actuais e futuros) que não estejam de
acordo com a fé e os costumes da Igreja católica. O Papa não
pode fazer depender a interpretação autêntica do Vaticano II de
negociações com um grupo cismático e herético. Pode-se pensar que de
agora em diante uma
profunda sombra corre o risco de pairar sobre uma grande quantidade de “declarações autênticas” da Congregação da Fé
relativas à interpretação do Vaticano
II.
Estas indicações, que se referem à
maneira de governar, apresentam ainda outro aspecto. Pouco tempo depois de ter
assumido o cargo, Bento XVI explicava, em sua mensagem de
Natal de 2005 à cúria romana, como ele compreende e interpreta o Concílio Vaticano II.
Aborda a problemática que hoje nos preocupa com a ajuda das expressões “hermenêutica
da descontinuidade” e “reforma da continuidade”.
Com o título de reforma da continuidade, insiste
no fato de que a única Igreja existe, continuamente,
antes e depois do Concílio, com sua identidade fundada sobre a fé. As mutações
produzidas no mundo moderno levaram a Igreja, guiada pela fé, a adoptar um novo
posicionamento: “Como consequência de uma nova definição das relações entre a
fé da Igreja e alguns elementos importantes do pensamento moderno, o Vaticano II reviu e também
corrigiu algumas decisões históricas, mas nessa descontinuidade aparente
preservou e aprofundou sua verdadeira identidade” (AAS 98, 2006, 51).
O Papa explica isto a propósito da liberdade
religiosa, descrevendo a situação antiga e opondo-a à situação nova.
Tais desenvolvimentos só podem ser aprovados. O que irrita é que, na secção que
trata da hermenêutica da descontinuidade, o Papa não evoca nunca os
tradicionalistas. Cita unicamente os “progressistas”,
que, segundo ele, não
retém mais que o espírito do Concílio, mas minimizando o texto, porque este
estaria trufado de fórmulas manuseadas, que só se teriam conservado em atenção
ao compromisso. Daí resulta que Bento XVI aprova o Concílio, mas contempla os
riscos ligados à sua recepção de um ponto de vista totalmente unilateral.
Este Papa não é um homem que rechace o Vaticano II ou que
não o compreenda. Não é um homem incapaz de consagrar à fé palavras e
meditações profundas, um homem que não procure colocar toda a sua força a
serviço do Evangelho. Tudo isto é incontestável. Mas o texto citado mostra que o Papa,
consciente da crise que atravessa a aceitação da Igreja na sociedade moderna, está
convencido de que a Igreja não superaria a prova senão recuperando os
círculos decididamente tradicionais.
Fraternidade tridentina... |
Conclusão
Da minha parte, penso – e insisto:
salvo um juízo mais esclarecido – que estamos diante de um escandaloso erro de governo, tomada a expressão em um
sentido teológico.
Como sair da crise?
Não existe jurisdição que possa pedir contas ao Papa assim como a qualquer outro
funcionário nem, eventualmente, condená-lo. Esta possibilidade não se dá para o
Papa
assim como para um chefe de Estado no exercício de suas funções. Não há
heresia. Se este fosse o caso, o colégio cardinalício
seria a instância competente e deveria constatar que já não temos mais Papa, porque um Papa herético perde ipso facto seu cargo.
Erros de governo que provocaram
escândalos foram frequentes na história da Igreja e do papado. O desenlace
deste tipo de crise foi o mais frequentemente laborioso e difícil. No caso
presente, a saída da crise é particularmente delicada porque muitos cardeais e
bispos tiveram conhecimento dos fatos desde 1988 e assumiram toda esta evolução
com o Papa.
É tanto como dizer que a situação actual representa um desafio extraordinário: exige
de todos os actores simplicidade,
humildade
e renúncia a toda sede de poder, em
resumo, um retorno ao espírito do Evangelho.
Esta exigência se impõe a todo o
povo de Deus, a todos os fiéis, incluídos o Papa, os cardeais, as Conferências Episcopais,
os sacerdotes, os diáconos e os agentes de pastoral. A Igreja, o Papa e os bispos recuperarão sua
liberdade de acção pública apenas quando confessarem e corrigirem o erro de
governo contra a fé e os costumes da Igreja. Um Papa que se deixa ditar, a si mesmo e
aos seus colaboradores, condições prévias por um grupo cismático, tal Papa não é livre. E se escamoteia esta
constatação, tem-se inevitavelmente a impressão de que as autoridades romanas cederam a
pressões externas e não são mais que marionetes da opinião pública e dos
média. Meios tradicionalistas já tomam posições neste sentido.
É incontestável que as decisões
tomadas são nulas. Sobre a questão de saber como difundir a informação, há
várias respostas possíveis, começando pelas respostas negativas. Assim, não
bastaria que o cardeal
Giovanni Re,
que assinou o decreto de suspensão da excomunhão, declare sua nulidade, ‘porque
o Papa reconheceu publicamente que esta decisão era sua também’.
A segunda questão urgente que coloca
a saída da crise diz respeito à reparação, passo a passo, dos prejuízos
causados, especialmente da perda de credibilidade que a Igreja acaba de
encaixar no mundo e em seu próprio seio. Porque a Igreja encontra-se diante de um enorme monte de escombros. As decisões justas pedem muita
oração, um esforço de conversão em todos os níveis, o consolo do Espírito Santo
e de seus sete dons. Os passos concretos a dar e uma auto-catarse da Igreja
anunciam-se extremamente árduos.
IHU-Unisinos, Brasil.
14
de Maio 2009
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/22239-uma-analise-da-atual-crise-eclesial-artigo-de-peter-h%C3%BCnermannPara ler mais:
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