teologia para leigos

3 de novembro de 2011

DUAS MANEIRAS DE CRER EM DEUS - O SEQUESTRO DE DEUS E DAS MASSAS

Manifestação_«CONTRA A AUSTERIDADE»


Crer a partir de


Jesus pregou as Bem-aventuranças a partir de uma situação bem concreta: a daquele que, «sendo rico, se fez pobre por nós»; a daquele que «se humilhou tomando a forma de servo…» E não as pregou no mesmo sentido a todos: para os ricos, tinham que soar como chicotadas que S. Lucas recolheu quando escreveu: «Ai de vós, ricos, porque já tendes vossa consolação!» Para os pobres tinha que ser aquela confortadora palavra de esperança que o próprio Lucas recolheu naquela cena inaugural de Nazaré: «Fui enviado para dar uma notícia aos pobres». [Lc 4:18b]


Os preâmbulos da Fé

A teologia tradicional havia elaborado uma doutrina subtil e precisa sobre a Fé e seus “preâmbulos”: como a Fé podia ser toda dom de Deus e toda livre responsabilidade dos homens; como podia ser ao mesmo tempo um acto racional e uma entrega ao que supera toda a razão humana… Longe de mim pôr em dúvida a legitimidade de tais colocações. Mas tenho a impressão de que, além disso, seria necessário falar de outro tipo de preâmbulos da Fé: daquilo que poderíamos chamar a situação existencial do crente. Porque não se pode crer da mesma forma a partir de qualquer situação, a Fé deverá ter inevitavelmente um ou outro carácter a até me atreveria a dizer que um ou outro conteúdo.

Efectivamente, crer em Deus não é admitir ou não admitir a existência lá, fora do mundo, de um ser de características especiais um pouco como se pode admitir ou não admitir a existência de Ovnis nos espaços siderais, o que, em última análise, não afectará muito a nossa vida concreta. Crer em Deus significa admitir um princípio último de inteligibilidade, de sentido e de valor do todo, incluindo a minha própria vida, de modo que eu me deixe determinar por ele em toda a minha existência e na avaliação e uso de tudo o que me cerca. Crer em Deus significa crer que existe um sentido e um valor absolutos na realidade e na vida: é crer num princípio de esperança e de bem-aventurança e entregar-se sem reservas, incondicionalmente, a ele.

Para dizê-lo em linguagem mais habitual nas tradições religiosas, crer em Deus significa crer que, apesar de todas as aparências contrárias, os indivíduos e a história em seu conjunto têm salvação. A figura de Deus acaba sempre sendo, para o homem à mercê de tantas contingências, a de um Avalista Absoluto, um Salvador.

Não vale a pena crer num Deus fundamento do ser, primeiro princípio e explicação da origem de tudo, se não é ao mesmo tempo fiador da história: fiador de que a história em geral, e a pequena história da minha própria vida em particular, devem ter valor e sentido, são algo que vale a pena ser vivido, e não uma absurda sucessão de frustrações, de horrores e desatinos. Não se pode crer em Deus mais do que como fonte de valor e de sentido do mundo em geral e da minha vida particular, e têm razão em declarar-se ateus os que não podem ver na vida mais do que frustração e absurdo. Crer em Deus poderia reduzir-se a crer no valor verdadeiramente absoluto da existência humana.


De onde se divisa Deus?

Com o que dissemos já fica insinuado por que não se pode crer igualmente em Deus – ou talvez não se possa crer no mesmo Deus – a partir de qualquer situação: é que nem de todas as situações se pode falar igualmente do sentido da vida. Aí estão os aproveitadores, os poderosos, os ricos, os que se propuseram como ideal de vida gozar do que conseguem arrebatar aos outros. Destes diz S. Paulo sem meias-palavras que «seu Deus é seu ventre» [Filipenses 3:19], isto é, o que permite satisfazer sua insaciável voracidade de possuir, de poder e de prazer, à custa de quem quer que seja. In God we trust: «Em Deus confiamos», escreveram sobre sua moeda os adoradores do dólar: é Deus que me permite conservar e aumentar a situação adquirida frente aos azares da fortuna ou às lutas dos demais homens, presumivelmente tão ávidos como eu mesmo. Neste ponto, Deus não pode ser outra coisa senão o fiador e suporte dos egoísmos particulares, e por isso há tantos deuses-ídolos como indivíduos egoístas.

Na outra face do mundo – «onde a cidade perde seu nome» – estão os desvalidos, os deserdados, os despojados, os que já não podem constatar que a sua vida tenha algum sentido, seja porque um acidente da sua sorte – doença, diminuição física ou mental, hostilidade ambiental – parece ter-lhes fechado os caminhos, seja porque os outros lhes arrebataram não só o que fazem, mas até mesmo o direito de ser. Também estes buscarão Deus como princípio de sentido: mas o seu Deus já não será o apoio para conservarem o que têm – porque não têm nada que valha a pena conservar –, e sim a força e a esperança que lhes faz descobrir um sentido em sua vida, mesmo com as limitações que não podem superar, ou que os impele a conquistar o que sem justiça nem razão lhes foi arrebatado.

Todos buscam em Deus protecção e salvação; mas para uns a salvação está em conservar e aumentar o que já têm, ao passo que, para outros, estará em viver sem o que não podem ter e em lutar por alcançar o que podem e deveriam ter.

Não se trata de demagogia fácil: trata-se de fidelidade a Deus mesmo, tal como se nos manifestou na tradição judeo-cristã. Nesta tradição, Deus não é um remédio, Objecto Abstracto (Ser Supremo, Absoluto, Necessário…), nem tampouco um Deus de coisas (dos astros, das forças naturais, dos fenómenos atmosféricos ou da fertilidade dos campos…). Estes eram os deuses dos Babilónios e dos Baal cananeus. O Deus de Israel foi, desde o início, um Deus de pessoas: o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob. O Deus que se preocupa com os homens na sua situação concreta, e que por isso pode ser reconhecido por eles a partir da sua situação concreta, que se apresenta como garantia de valor e de sentido das suas vidas ou, na linguagem bíblica, como «promessa» de bênção e protecção. É o Deus que ouve os gemidos do seu povo, esmagado pela dura escravidão do Egipto e o incita e ajuda a libertar-se dela.

Sem demagogia, é preciso admitir que acontecem, inevitavelmente, duas maneiras de crer em Deus, duas concepções de Deus: para os auto-satisfeitos, espera-se que Deus seja o mantenedor do status quo: um Deus que ratifica o passado no presente – mesmo que seja um passado de injustiça – e o torna permanente, estável e duradouro. É o Deus da estabilidade, da ordem estabelecida. Para os desvalidos, Deus não pode ser apresentado como mantenedor de um status quo, pois fá-lo mais como promessa e garantia absoluta de um futuro novo e melhor. Deus não é só um confirmador do passado no presente, mas é antes de tudo um criador de futuro. (…) Deus é um Deus de esperança, e o que se espera d'Ele não é o que se encontra já predeterminado e já contido no passado, mas o novo, que pode ser criado no futuro. A partir da experiência do mal e da injustiça não se pode crer num Deus conservador: só se pode crer num Deus renovador e – não tenhamos medo das palavras – revolucionário. Este foi, exactamente, o Deus de Israel e o Deus de Jesus.


Um Deus de Justiça

Por agora não insistirei nesta contraposição entre um Deus conservador e um deus revolucionário, que a alguém possivelmente pareça impertinente ou mesma escandalosa. Passo a falar simplesmente do Deus de Justiça.

Neste ponto, a sensibilidade moderna assume uma postura decidida: ou Deus é justo, isto é, ama todos os homens e preocupa-se igualmente com todos eles, ou, pelo contrário, não há lugar para Deus. Um Deus injusto aparece como inadmissível. Pensar que eu posso estar tranquilo na minha capela dando graças à divina Providência porque aliviou a minha dor de dentes ou porque fez com que não me faltasse nada, e pensar que a mesma Providência não se preocupa de forma alguma com as crianças esqueléticas que morrem de fome no Biafra, ou com os camponeses que são mortos por interesses de uns poucos em El Salvador, é algo simplesmente inadmissível.

Se Deus existe, ele deve querer que todos os homens possam viver uma vida digna de homens. Se isto não se realiza é porque algo interferiu na vontade de Deus. Como é sabido, boa parte do ateísmo moderno provém da escolha desta última alternativa. Os crentes, pelo contrário, devem defender que as injustiças, as desigualdades, as opressões e abusos entre os homens são algo que não é, nem pode ser querido por Deus: são algo que talvez, em parte, possa ser atribuído às próprias limitações da condição do ser finito e, sobretudo, à vontade do homem contra Deus, que por isso mesmo é uma vontade ‘pecadora’.

A sensibilidade moderna, como já se disse, percebe isto lucidamente: mas não se trata de algo novo. Na Bíblia temo-lo superado de maneira insuperável: «reconhecer Yahvé», identificá-lo como Deus verdadeiro e autêntico ao lado dos deuses falsos ou ídolos, é comprovar que ele faz justiça, ao passo que os ídolos estão ao serviço dos interesses particulares dos seus devotos. Ele libertou o povo da escravidão do Egipto; ele protege a todo o momento o órfão, a viúva, o desvalido, o estrangeiro, aqueles que eram as possíveis vítimas da opressão naquele tipo de sociedade:

«Porque o Senhor, vosso Deus, é o Deus dos deuses e o Senhor dos senhores, o Deus supremo, forte e temível, que não faz distinção de pessoas nem se deixa corromper com presentes. Ele faz justiça ao órfão e à viúva, ama o estrangeiro e dá-lhe pão e vestuário. Amarás o estrangeiro, porque foste estrangeiro na terra do Egipto.» [Dt 10:17-19]

duas coisas a notar aqui.

Em primeiro lugar, o Deus verdadeiro não pode fazer acepção de pessoas, ama a todas da mesma forma, é simplesmente justo. Mas isto, paradoxalmente, leva à conclusão de que Deus jamais é neutro; pelo contrário, é sempre «parcial» e até mesmo «apaixonado» em favor da justiça. Não pode ficar indiferente enquanto os homens abusam dos fracos e esmagam os seus direitos: precisamente, porque ama todos por igual e não faz acepção de pessoas, quando alguém é injustamente oprimido, espoliado ou maltratado, Deus deve estar inexoravelmente a favor daquele que sofre injustiça e contra aquele que a comete.

Em segundo lugar, é preciso notar que a justiça de Deus da qual se fala é, na realidade, uma justiça que os homens devem fazer cumprir. Mais ainda, somente à medida que realizarem a justiça inter-humana querida por Yahvé, os homens poderão auto-denominar-se servos e fiéis de Yahvé. «Reconhecer Yahvé – crer em Yahvé – é praticar a justiça».

Se voltarmos agora ao tema sugerido pelo título inicial destas linhas, a saber, a possibilidade e as condições da Fé a partir da experiência do mal e da injustiça, poderíamos começar a sugerir algumas conclusões:

1.Aquele que experimenta o mal e a injustiça poderá crer em Deus se puder reconhecer que este mal e esta injustiça não são queridos por Deus.

2.Dificilmente reconhecerá isto se constatar que o mal e a injustiça são feitos ou fomentados por aqueles que dizem acreditar em Deus.

3.Pelo contrário, poderá ser induzido a crer se constatar que a Fé em Deus é força eficaz para a luta contra os males e contra as injustiças que se dão entre os homens.

4.Crer em Deus será, então, crer numa interpelação e numa exigência absoluta de justiça entre os homens.


As desculpas dos cristãos acomodados

Crer num Deus assim não é, precisamente, cómodo. De início, não é cómodo para aquele que pretende encontrar sentido para a sua vida numa situação de poder ou de prazer montada sobre a injustiça. Mas também não o é para aquele que, sentindo na sua carne a dilaceração da injustiça, se sente interpelado a empreender uma luta titânica contra a mesma. Yahvé não foi um Deus fácil, nem para o faraó, nem para os hebreus: para o primeiro, porque lhe tirou a mão-de-obra barata com que edificava a sua glória; para os segundos, porque os fez comprar a sua libertação à custa de um esforço duro e tenaz.

Por isso, não é de estranhar que todos busquem noutra parte, e não nesse apelo à justiça responsável, o Deus das suas crenças. São bem conhecidos os refúgios dos auto-satisfeitos:

O Deus da metafísica ou da cosmologia, Causa Primeira, Fundamento do Ser, Grande Arquitecto, Absoluto… (Tais deuses oferecem excelente e abundante pábulo à contemplação… e obrigam apenas a um profundo reconhecimento intelectual.) Ou então, o Deus do culto e do rito, que se contenta com incenso e cerimónias bem ordenadas, ou com as horas de tranquila quietude da cela. Ou então, o Deus da ortodoxia e da teologia justa e exacta… que também não obriga a mais do que medir bem as palavras sobre ele. Estes e outros podem ser os belos ídolos que constroem os que estão decididos a viver consolidados à custa do espólio, do suor e do sangue dos demais. Isto também não é novo: os profetas já trovejaram contra as mil formas de religião que pretendiam escamotear o seu património de justiça e de amor concreto ao irmão.

Mas não somente o insatisfeito injusto pretende buscar e encontrar Deus onde ele não está. Também aquele que sofre injustiça pode fazer o mesmo, numa tentativa de safar-se da tarefa, previsivelmente ingrata, de libertar-se a si mesmo e, assim, contribuir para a libertação de todos. A escravidão do Egipto pode parecer mais apetecível do que o longo caminhar pelo deserto. Pode-se ceder à tentação de exigir um mágico Deus libertador que exonere o homem de todo o esforço na construção de uma vida com sentido.

Esta pode ser a tentação máxima do homem que sofreu a injustiça: porque é que Deus não vem e não me tira desta situação? Ouve-se, como que o eco do Calvário: se é Filho de Deus, porque é que o seu Pai não vem e não o salva?

Custa muito compreender que toda a libertação que é simplesmente outorgada e imposta de fora, isto é, não assumida nem trabalhada pelo próprio homem a partir da sua liberdade e da sua responsabilidade, seja na verdade alienante e anuladora do mesmo homem como homem. Deus respeita e ama muito o homem para querer substitui-lo e anulá-lo. (…) Deus sabe que só é dom digno do homem o que se lhe oferece como tarefa para a sua liberdade e responsabilidade.

A partir da experiência da injustiça, pode ser muito fácil não querer crer em outro Deus a não ser no Deus mago, cujo reino seria um irresponsável e infantilizado reino do Eldourado.

E ainda deveríamos falar da tentação reducionista: a de querer confundir a justiça de Deus com qualquer realização mais ou menos mesquinha da nossa pobre justiça humana, que raramente chega a ser mais do que uma barganha de injustiças equilibradas e compensadas. O Reino de Deus não poderá ser nunca simplesmente identificado com qualquer realização sociopolítica concreta: é algo sempre utópico, escatológico, porque é absoluto. Mas nem por isso é menos real: é algo sempre eficaz e operante, ao mesmo tempo como impulso e como juízo de tudo quanto fazemos.


O sequestro de Deus e a apostasia das massas

(…) Muitos parecem continuar discutindo se o marxismo é ou não essencialmente ateu. O que parece claro é que Marx teve que definir-se como ateu, porque intuiu perfeitamente que Deus havia sido sequestrado pelos defensores de uma ordem injusta que ele, com todas as suas forças, queria derrotar. E assim continuamos. Os movimentos sociais continuarão sendo ateus enquanto os guardiões da religião não resgatarem Deus das mãos dos poderosos e mostrarem claramente que Deus, longe de ser o ópio com que aqueles acalmam o povo, é, pelo contrário, interpelação absoluta à igualdade fundamental e à justiça e, por fim, motor da mudança social num mundo estruturado injustamente. Somente assim se poderá acreditar em Deus a partir da experiência da injustiça.

Mas não nos enganemos. Então o princípio de Vincent Cosmão “quando Deus é apresentado como fiador da ordem estabelecida, o ateísmo converte-se em condição necessária para a mudança social” começará a funcionar inversamente: quando Deus se converter em interpelação absoluta à justiça e em motor de mudança social, os defensores da ordem injusta terão que converter-se efectivamente à justiça ou, pelo contrário, terão que ser declarados simplesmente ateus.


Crer é converter-se


Em resumo, «crer a partir de» é sempre um «converter-se a partir de».

 Para aquele que vive na experiência do mal e da injustiça, crer será converter-se, desde o desespero ou da apatia opiácea, à responsabilidade activa em favor da justiça, que surge e se afirma garantida por uma promessa que, por ser divina, deve ser indefectível.

Para os que vivem auto-satisfeitos à custa dos outros numa ordem injusta, crer em Deus será converter-se, a partir da sua satisfação, numa efectiva justiça e solidariedade que só se dará com renúncias efectivas e dolorosas.

Em última análise, talvez só se trate de cumprir as palavras de S. João: «Por este sinal sabemos que já O conhecemos: se cumprirmos os seus mandamentos. Quem diz que O conhece e não cumpre os seus mandamentos está mentindo e não há verdade nele». [1Jo 2:4]

Crer em Deus, reconhecê-lo como tal, é guardar os seus mandamentos, cada um a partir da sua situação. E mandamento de Deus não é outro senão amar como Ele ama, e nisto está toda a justiça.

Josep Vives

[Josep Vives, “CRER A PARTIR DE”, in: «Crer, só se pode crer em Deus. Em Deus só se pode crer – Ensaios sobre as imagens de Deus no mundo actual», José I. Gonzalez Faus & Josep Vives, Ed. Loyola, S. Paulo, Brasil, 1988]